O Islamismo-jihadista como ideologia política totalitária

bandeira do Estado Islâmico

Mas, dentro da estrutura organizacional do movimento, enquanto ele permanece inteiro, os membros fanatizados são inatingíveis pela experiência e pelo argumento; a identificação com o movimento e o conformismo total parece ter destruído a própria capacidade de sentir, mesmo que seja algo tão extremo como a tortura ou medo da morte.

Hannah ARENDT

 

1. Para a mentalidade secular do europeu e ocidental do século XXI, as ideologias políticas não usam uma linguagem religiosa, nem se legitimam com um fundamento divino. Desde a revolução francesa de 1789, onde surgiram os modernos conceitos de esquerda e direita e também de terror, que a modernidade política, europeia e ocidental, foi construída pela separação e emancipação da política face à religião. Aparentemente, essa evolução é um dado adquirido da modernidade contemporânea e válida em termos universais. Na realidade, o mundo globalizado de hoje mostra-nos que não é assim. As hipóteses que coloquei no meu livro “Islamismo e Multiculturalismo. As Ideologias Após o Fim da História” (Almedina, 2006), parecem hoje estar a confirmar-se em vários aspetos. Permito-me recordá-las aqui. Uma hipótese consistia em supor que a “reconfiguração ideológica não está apenas a ocorrer no plano interno das sociedades europeias e ocidentais.” Uma outra admitia que o Islamismo, “enquanto fenómeno ideológico, continua a ter um significativo potencial de expansão a nível internacional – não só dentro dos países islâmicos como fora destes, incluindo nas sociedades europeias e ocidentais” (pp. 10-11). Assim, proponho-me mostrar que, apesar da fraseologia religiosa, estamos perante uma ideologia, que é política e não se confunde com o Islão entendido como religião. Esta ideologia tem é origem num ambiente cultural islâmico. A sua compreensão é determinante para percebermos casos como o do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (“Islamic State in Iraq and the Levant” na transliteração de árabe para inglês). Vou ainda tentar mostrar quais são as características principais do Islamismo, destrinçando-a do Islão como religião e evidenciando o seu carácter totalitário. A evidenciação desta última característica será feita por referência ao trabalho clássico de Hannah Arendt “As Origens do Totalitarismo” (trad. port, 5ª ed. 2014, D. Quixote), originalmente publicado em 1951. Na altura, o contexto era o dos totalitarismos de origem europeia/ocidental, nazi e estalinista, bem mais familiares ao público europeu e ocidental.

2. Quais são, então, as características que nos permitem falar do Islamismo como uma ideologia política? (Abordarei, mais à frente, a especificidade do Islamismo-jihadista). Vou aqui recorrer à distinção que tracei anteriormente, no meu já referido livro de 2006, “Islamismo e Multiculturalismo. As Ideologias Após o Fim da História” (pp. 46-47). Uma primeira característica é a “recusa – feita, simultaneamente, por convicção e estratégia –, de separação entre o Islão como religião, do Islão como política e ideologia”. Daqui resultam, pelos menos, duas consequências nefastas. Uma para as sociedades configuradas por valores europeus e ocidentais, que é a “deslocação da ideologia do Islamismo para o terreno da religião, quando o terreno apropriado seria o da política e o das regras jurídico-constitucionais aplicáveis ao jogo político”. A outra é para os próprios muçulmanos, sobretudos os que rejeitam essa apropriação e/ou estão empenhados em modernizar a sua crença religiosa. “Assim vêem os seus intuitos reformadores bloqueados e descredibilizados”. Uma segunda característica é que os atores não são os partidos ou movimentos políticos, tal como os conhecemos no Ocidente. Para um ocidental, tudo seria mais fácil de compreender, e rotular, se a ideologia Islamista se corporizasse em “camisas negras” fascistas, grupos paramilitares de “camisas castanhas” nazis, ou outros equivalentes e usasse uma linguagem secular. Não é o caso. Frequentemente, são “grupos e movimentos, formais ou informais, hierarquizados ou descentralizados, aparentemente apenas com missões e objectivos religiosos”, mas, que, na prática, “prosseguem objectivos políticos (normalmente não assumidos explicitamente).” Em contexto europeu e ocidental, estes reclamam “ser tratados ao abrigo da liberdade religiosa e do respeito devido à religião. Desta forma, estamos perante aquilo que pode ser designado como ‘teopartidos’”. A terceira característica está em conexão com a segunda e resulta da sua forma de fazer política, “em rota de colisão com ideia secular de ‘política’ do mundo ocidental”. A forma de fazer política dos islamistas “pode ser designada como uma ‘teopolítica’ – ou seja, ‘política de Deus’, a partir da palavra grega teo –, devido à intrincada e deliberada mistura entre o religioso e o político”. No seu livro “Islam and Islamism”/Islão e Islamismo (Yale University, 2012), Bassam Tibi, académico de origem síria especializado em assuntos do Médio Oriente, chama a este fenómeno “the religionazed politics of Islamism”, ou seja, uma “sacralização da política” intencionalmente feita pelo Islamismo. A quarta caraterística é que “o seu horizonte ideal, em termos de Estado, é o Estado islâmico regido pela Sharia, o que, na linguagem política europeia e ocidental é qualificado como um Estado de tipo teocrático. Por extensão de ideias, o seu sistema de governo será “uma ‘teocracia’. Em termos de ideologias modernas, e numa linguagem secular, estamos perante uma concepção de Estado próxima das ideologias políticas totalitárias. De tudo isto pode inferir-se uma quinta característica, que é o uso – ou melhor, a apropriação –, de “forma explícita e deliberada, dos textos religiosos do Islão”, usando-os como ‘manifesto político’” e ‘constituição’. O Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL), corporiza bem esta característica, da qual um exemplo típico anterior se encontra na Carta do HAMAS/Movimento de Resistência Islâmica da Palestina.

3. Impõe-se clarificar melhor a característica totalitária desta ideologia não ocidental. O trabalho clássico de Hannah Arendt é bastante útil para este efeito. Quando fazemos a sua leitura, não a pensar nos totalitarismos nazi e estalinista, aos quais se refere originalmente o livro, mas no Islamismo atual, encontramos diferenças históricas e de contexto cultural, que não podem ser menosprezadas. Todavia, verificamos também existirem surpreendentes paralelismos. Por exemplo, quanto à subversão das regras democráticas, Hannah Arendt escreveu que “os movimentos totalitários usam e abusam das liberdades democráticas com o objectivo de as suprimir” (p. 414). Em várias partes do mundo árabe islâmico, Tunísia, Egito, etc. vimos como os movimentos islamistas aproveitaram a Primavera Árabe de 2011 para subvertê-la a seu favor, jogando o jogo eleitoral. Quanto ao fanatismo ideológico, esta frase soa também a familiar nos islamistas de hoje: “O Idealismo, tolo ou heróico, nasce da decisão e da convicção individuais, mas forja-se na experiência. […] Mas, dentro da estrutura organizacional do movimento, enquanto ele permanece inteiro, os membros fanatizados são inatingíveis pela experiência e pelo argumento; a identificação com o movimento e o conformismo total parece ter destruído a própria capacidade de sentir, mesmo que seja algo tão extremo como a tortura ou medo da morte” (p. 409). Não é difícil extrapolar tais características para o Islamismo-jihadista e o seu recrutamento e uso de jovens fanatizados ideologicamente, para a jihad na Síria, Iraque, etc. Tal está a ser feito, em número crescentemente significativo, em país europeus e ocidentais. Sinais dos tempos, há uma ou duas gerações atrás, provavelmente esses mesmo jovens sentir-se-iam ideologicamente atraídos por grupúsculos de extrema-esquerda, como o Baader-Meinhof na Alemanha e as Brigadas Vermelhas em Itália, ou outros equivalentes de extrema-direita neo-nazi. Outra curiosa similitude com o Islamismo, especialmente nas suas versões mais extremas, é uma característica apontada por Hannah Arendt, segundo a qual os movimentos totalitários se distinguem de outros “pela exigência de lealdade total, irrestrita, incondicional e inalterável de cada membro individual […] desprovidos de outros laços sociais – de família, amizade e camaradagem –, só adquirem o sentido de terem lugar neste mundo quando participam num movimento” (p. 428). Esta última frase trás à mente, no contexto da atual Europa, os jovens desenraizados, frequentemente de segunda e terceira geração de emigrantes, muçulmanos, ou convertidos, que são recrutados para uma “causa”. Esta dá-lhes a sensação de participarem numa “missão” global, a qual, paradoxalmente, apesar do risco óbvio de morte, parece dar sentido à sua vida. Tal como no contexto em que Hannah Arendt escreveu, a propaganda – hoje feita em grande parte pela Internet e redes socais –, é uma peça fundamental do totalitarismo na radicalização ideológica. “Por existirem num mundo que não é totalitário, os movimentos totalitários são forçados a recorrer ao que commumente chamamos propaganda.” (p. 453). No caso atual dos islamistas-jihadistas da Al-Qaeda, EIIL e outros, o terror parece ser uma peça importante da sua difusão propagandística.

4. Falta agora explicitar o que distingue o Islamismo do Islamismo-jihadista (ou só jihadismo). A diferença é mais evidente quando as comparações são feitas com as versões radicais do movimento, que se encontram no extremo do espectro político islamista. Uma análise desta ideologia política mostra que, todavia, apesar de existirem diferenças de maior ou menor relevo, não parece haver divergências ideológicas de fundo entre o Islamismo e o Islamismo-jihadista, nomeadamente quanto à ideia última de instalar o “Estado-Sharia”. A principal e mais óbvia diferença está nos meios utilizados. Ou seja, é mais uma diferença de estratégia do que de ideologia. A este propósito, Bassam Tibi fala, no seu já citado livro, em “islamistas-institucionalistas” (que admitem usar o jogo eleitoral das democracias para atingir os seus objetivos, tencionando alterar as regras quando atingirem o poder) e “islamistas-jihadistas” (que recorrem directamente à violência para objetivos em grande parte similares). Enquanto movimentos islamistas como a Irmandade Muçulmana e outros, hoje tendem a não recorrer a meios violentos e não usam o terror, os movimentos mais radicais – é o caso da Al-Qaeda ou do EIIL –, usam a violência e o terror para atingir os seus fins. Essa violência e terror é usada a coberto de uma pretensa “obrigação de jihad” (um conceito islâmico complexo com vários significados). Tais movimentos transformaram esse conceito, teorizado pelos teólogos-juristas do Islão clássico, de uma guerra com regras, que pode ser desencadeada em certas circunstâncias, numa forma de violência mais ou menos indiscriminada, contra não muçulmanos e muçulmanos “desviantes” da sua interpretação do Islão. Daí o neologismo “jihadista” hoje vulgarizado. É fácil ver que o EIIL cabe nesta categoria. Nos últimos meses, surgiu como protagonista maior da guerra sectária na Síria (fazendo alastrar o conflito ao Iraque). Impôs-se, também, como força dominante no terreno entre a miríade de grupos que tentam derrubar, pela sublevação armada, o governo de Bashar al-Assad. A sua ação, caraterizada pela violência e terror contra as minorias não muçulmanas, cristãos e yazidis, bem como contra os muçulmanos xiitas, vistos como “seita herética”, é extrema. Ultrapassa, até, o que já conhecíamos da Al-Qaeda. O bárbaro assassinato, por decapitação, dos jornalistas norte-americanos, James Foley e Steven Sotloff, e, mais recentemente, do britânico David Haines, funcionário de uma ONG humanitária francesa, dissipou quaisquer dúvidas que pudessem existir quanto às suas estratégias para impor o “Estado-Sharia”.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, versão expandida do artigo originalmente na edição impressa do Público, 27 de setembro de 2014, p. 52. Última revisão 1/02/2015

domínio público Bandeira (domínio público / Wikipedia) do Estado Islâmico do Iraque e do Levante/ Síria, também usada pelos islamistas-jihadistas do Al Shabaab (Somália) e Boko Haram (Nigéria).

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