A França e o multiculturalismo de gueto

Islamismo e Multiculturalismo

Está a criar-se uma sociedade explosiva em França e na Europa. Impõe-se urgentemente revertê-la.

1. Os recentes e dramáticos acontecimentos de 7/1 e de 9/1 em França trouxeram, de novo, para o centro do debate político, a discussão sobre o que deve ser uma “boa” sociedade numa democracia europeia do século XXI. No âmbito da teoria da democracia tende a ser consensual que deve ser aberta, plural e tolerar a diferença. Todavia, se isso gera um tendencial acordo, já é muito mais controverso saber qual a forma concreta como estas ideias se devem traduzir numa determinada sociedade. Mais polémico ainda é traçar o ponto até ao qual pode, ou deve, ir o grau de abertura e pluralidade de uma sociedade. Várias interrogações ocorrem aqui. A abertura ou pluralidade são um fim em si mesmos, devendo o Estado, através de políticas públicas, promover essa abertura e fomentar a diversidade cultural na sociedade? Deve antes ser neutral em relação à diversidade cultural, não interferindo nesses processos? Ou deve ainda, face à diversidade da sociedade, atuar como um elemento promotor da integração, numa certa lógica de homogeneização da cidadania?

2. A discussão desta problemática está estreitamente associada ao multiculturalismo. Porém, o termo é ambíguo e susceptível de múltiplos usos. Um primeiro passo em qualquer discussão séria sobre este assunto deve ser, por isso, a clarificação do uso que se está a fazer deste. Num primeiro sentido – que é provavelmente o mais usual na linguagem comum –, o multiculturalismo descreve um facto, uma realidade da vida que é a diversidade cultural. Esta é observável, por exemplo, em qualquer uma das grandes cidades europeias – Paris é um caso óbvio –, onde circulam pessoas com diferentes aspectos étnicos, de vestuário, etc. Num segundo sentido, usado sobretudo nas discussões mais especializadas, o multiculturalismo é uma política pública de Estado (fala-se, assim, em políticas multiculturais); tem também uma dimensão ideológica, explícita ou implícita, na medida em que há um objetivo político de promover a diversidade. O pressuposto é o de que todas as culturas têm um valor idêntico e de que a construção de uma “boa” sociedade assenta na diversidade cultural, vista como um fim em si mesmo.

3. Para a discussão que aqui pretendo efetuar dois outros usos do termo são fundamentais. O multiculturalismo que designo como cosmopolita, em que pessoas e grupos minoritários oriundos de diferentes culturas se integram numa cultura maioritária e fundem os seus valores com esta, num processo fundamentalmente enriquecedor para ambas e de influencias recíprocas. E o multiculturalismo de gueto, em que a presença num mesmo país e território, normalmente suburbano, é feita através de um acantonamento em áreas específicas. Por sua vez, os contactos com a cultura maioritária da sociedade de acolhimento, as interações e a partilha de valores com o mainstream dessa sociedade são mínimos. Nos anos 1950 e 1960, quando começou o atual processo de aumento da diversidade cultural das sociedades europeias e ocidentais – essencialmente devido a fluxos migratórios ligados, ou não, à descolonização –, a expectativa era a da criação de um multiculturalismo cosmopolita. Da França à Suécia, da Itália à Holanda, da Grã-Bretanha à Alemanha, a realidade hoje mostra-nos que predomina largamente um multiculturalismo de gueto. Como se chegou a esta situação? Tipicamente, há duas lógicas explicativas que se detectam, quer nas discussões comuns, quer nas mais sofisticadas: as que colocam a culpa na sociedade de acolhimento e no grupo maioritário; e as que colocam a culpa nas populações migrantes e nas culturas minoritárias. Na primeira ótica, mais ou menos subsidiária do multiculturalismo ideológico, a explicação normalmente esgota-se num catálogo de “fobias” e “ismos” – xenofobia, racismo, islamofobia e falta de políticas sociais-multiculturais dos países de acolhimento. Na segunda ótica, próxima da extrema-direita e da direita populista, os emigrantes e/ou minorias culturais tendem a ser vistos estereotipadamente como atrasados, preguiçosos e uma fonte de despesa social para o Estado, excluindo-se, motu proprio.

4. A prevalência deste quadro mental tem criado um terreno social e político perigoso, do qual os grandes ganhadores são, por um lado, o islamismo radical – no sentido ideológico do conceito –, e, por outro, a extrema-direita e a direita populista. Vou mostrar como se tem alimentado esta engrenagem. Em primeiro lugar, importa compreender como se estratificam as nossas sociedades atualmente. Por cima, temos uma elite política, empresarial, intelectual e social que, em graus variáveis, corporiza o multiculturalismo cosmopolita atrás referido. Esta elite é sobretudo uma criação dos efeitos conjugados dos processos de integração europeia e de globalização, nas suas múltiplas dimensões. Apesar das críticas que dirige a esses processos, especialmente à globalização, sente-se, de um modo geral, confortável, ganhadora. Está mais próxima dos seus pares noutros países do que do cidadão comum do seu próprio país. Depois, na pirâmide da estratificação social, temos uma larga faixa da população, usualmente designada como classe média. Esta tem sido a mais afetada pelas transformações dos processos de integração económica e de globalização. Se isso já era verdade antes da crise de 2007/2008, agora acentuou-se drasticamente. No fundo da pirâmide social, temos as camadas baixas e populares, de dimensão mais ou menos significativa em todos os países europeus. Juntamente com a classe média e média-baixa, está aqui o núcleo duro das populações mais agarradas aos valores nacionais tradicionais. Isto ocorre devido à prevalência de uma educação mais tradicional, a níveis mais baixos de qualificações e à de falta de meios económicos. É também a faixa da população tradicionalmente destinatária das prestações sociais.

5. As alterações demográficas ligadas ao envelhecimento da população europeia são também relevantes para compreender o problema. A França, com mais de 65 milhões de habitantes, mantendo um crescimento regular da população e com uma taxa de fertilidade média de cerca de 2,0 filhos por mulher, parece estar numa boa posição demográfica, pelo menos para padrões europeus. Esta apreciação geral esconde uma outra realidade que é a das taxas de fertilidade dos diferentes grupos que compõem a sociedade francesa. Em França, por limitações legislativas, não existem estatísticas oficiais que permitam aferir com rigor essa realidade. É muito provável que o dinamismo demográfico genérico seja assegurado à custa de grupos específicos, oriundos de culturas minoritárias e/ou de migrações. Se assim for, a sociedade francesa está atravessada por uma dupla clivagem. Uma clivagem geracional, do tipo da que vemos em Portugal no atual contexto de crise, a qual opõe pensionistas e reformados às gerações mais jovens. E uma clivagem (multi)cultural que se interliga com esta, em que os mais velhos são sobretudo do grupo cultural maioritário da sociedade e os mais jovens são, crescentemente, de grupos culturais minoritários, com origem em migrações.

6. Este conjunto de circunstâncias tende a criar em partes significativas da população do grupo cultural maioritário, habituadas, até um passado recente, a uma lógica monocultural, sentimentos de vulnerabilidade, receio e insegurança perfeitamente legítimos. Importa notar que são as camadas média, média-baixa e popular, as quais estão mais em contacto, e, sobretudo, em competição, por recursos escassos, com o multiculturalismo de gueto. Habitam zonas residenciais das cidades e subúrbios relativamente pobres, onde sentem, muitas vezes, a sensação desconfortável de serem “estrangeiros” no seu país. As suas qualificações, normalmente baixas, obrigam-nos a uma disputa com estes dos lugares no mercado de trabalho, que se torna quase predatória em tempos de crise. Sentem, correcta ou incorrectamente, a competição desses grupos nas prestações sociais em redução devido à austeridade. Veem os emigrantes e/ou minorias serem usados para baixar os salários e fornecer uma mão-de-obra barata, a qual quebra a força dos sindicatos que os protegiam. Por isso, nelas grassa o sentimento generalizado de serem perdedoras.

7. No passado, especialmente os partidos da esquerda, competiam por atrair a classe média e média-baixa, prestando especial atenção ao “proletariado”. Hoje não respondem aos seus problemas. Os interesses empresariais e da competitividade económica, ou os grupos minoritários e as políticas de identidade substituíram-nos. Ironicamente, o multiculturalismo ideológico e a diversidade cultural ocupam, em grande parte da esquerda intelectual e política, um papel similar ao que na direita tem a ideologia neoliberal e a competitividade. (Consoante o quadrante ideológico, sacraliza-se o mercado, ou a diversidade cultural. Comum a ambos está uma visão mais próxima da fé religiosa do que do espírito crítico.) Assim, no atual quadro ideológico, esta população oriunda do grupo cultural maioritário é vista como insensível à diferença cultural e suspeita de xenofobia (pela esquerda), ou sem espírito empreendedor e capacidade competitiva (pela direita), ambos pecados capitais. Resultado: largas faixas da população sentem-se politicamente abandonadas e sem representação política. Não é difícil perceber por que a extrema-direita e a direita populista têm aí um terreno eleitoral em crescendo.

8. Por último, impõe-se olhar para a questão na perspetiva dos grupos minoritários, especialmente nos que têm origem nos fluxos migratórios das últimas décadas. Frequentemente vêm de zonas rurais de países pouco desenvolvidos (Argélia, Tunísia e Marrocos, no caso francês), habituados a valores tradicionalistas muito diferentes dos valores que encontram à chegada. Por razões de pobreza, língua, religião ou outras, têm muita dificuldade em se integrar na sociedade de acolhimento. O seu acantonamento em guetos, devido à pobreza e à segurança conferida pela proximidade cultural com outros membros grupo, alimenta o processo de exclusão e dificulta a progressão social. Enfrentam a desconfiança das populações locais e o desinteresse dos empregadores, a não ser nas condições salariais já referidas de mão-de-obra barata e não sindicalizada. Na segunda e terceira geração, não se sentem, frequentemente, nem franceses, nem argelinos, marroquinos ou tunisinos, ou de qualquer outro país. O anonimato das grandes cidades, a falta de perspetivas de evolução social e económica gera frustração e, frequentemente, ódio ao próprio país do qual são nominalmente cidadãos. Essa frustração e descontentamento poderia ser enquadrada por ideologias e forças com capacidade de mobilização de massas, que dessem esperança num quadro democrático e de respeito do Estado de direito. Todavia, com a perda de atração política da esquerda secular europeia – o multiculturalismo ideológico não tem força política de massas –, este terreno ficou livre para o islamismo radical, que agora fornece uma identidade e uma causa a estes “rebeldes sem causa”. É esta sociedade explosiva que se está a criar em França e na Europa. Impõe-se urgentemente revertê-la.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes. Artigo originalmente publicado no Público, 13/01/2015

domínio público Imagem: capa do Livro de José Pedro Teixeira Fernandes, “Islamismo e Multiculturalismo. As Ideologias Após o Fim da História” (Almedina, 2006)

 

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