A Europa e o Islão: regresso ao passado?

L'islam - Politique et croyance

 

Os muçulmanos nem sempre têm consciência mas impuseram-se primeiro na Europa como concorrentes, com aspirações dominadoras. A maior parte dos países muçulmanos actuais eram então cristãos – o Egipto, a Síria, a Turquia… durante muito tempo os muçulmanos foram os mais fortes, os mais ricos, os mais civilizados.” Após vários séculos, o Ocidente acabou por levar a melhor, “pela força, mas também pelas ideias e pelo comércio”.

Maxime RODINSON

 

1. Em Março de 1989 o antigo ministro do interior trabalhista e ex-Presidente da Comissão Europeia, Roy Jenkins afirmava, numa entrevista ao jornal britânico The Independent, que os muçulmanos na sociedade britânica “não tinham evidentemente conseguido fundir aí a sua própria cultura e menos ainda a sua própria religião” e que o multiculturalismo lhe parecia “estar a ter principalmente efeitos perversos”. O pano de fundo desta entrevista foi o “auto-de-fé” dos muçulmanos britânicos de Bradford – que queimaram publicamente centenas de exemplares do livro Os Versículos Satânicos do escritor britânico de origem indiana, Salman Rushdie – seguido da fatwa (opinião legal sobre a interpretação da lei islâmica) do Ayatollah Khomeini, que se pronunciava no sentido da morte do escritor apóstata[1] Mais recentemente, em Outubro de 2001, após os atentados terroristas de 11 de Setembro em Nova Iorque e Washington, nos EUA, o historiador do Islão de formação marxista, Maxime Rodinson, foi entrevistado pela revista francesa Le Point sobre esses acontecimentos. Questionado sobre as razões do ódio ao Ocidente, este começou por se interrogar: “O que é o Ocidente para os muçulmanos? Um mundo cristão, por isso um mundo de infiéis, de não crentes, de pessoas que dizem horrores do profeta Maomé. Eles devem ser combatidos pela palavra se possível, se não, em certas circunstâncias, pela força. Em relação à questão de saber se os ressentimentos dos muçulmanos estão ligados à colonização, este afirmou o seguinte: “Isso começou bastante antes… Desde o século VII. Os muçulmanos nem sempre têm consciência mas impuseram-se primeiro na Europa como concorrentes, com aspirações dominadoras. A maior parte dos países muçulmanos actuais eram então cristãos – o Egipto, a Síria, a Turquia… durante muito tempo os muçulmanos foram os mais fortes, os mais ricos, os mais civilizados”. Após vários séculos, o Ocidente acabou por levar a melhor, “pela força, mas também pelas ideias e pelo comércio”. Interrogado sobre a grande divergência de opiniões face ao Islão, quanto ao facto de este pregar a paz ou conter em si o germe da violência, Maxime Rodinson chamou à atenção para a diversidade de leituras que os textos religiosos permitem: “Nenhuma religião é totalmente pacífica ou totalmente belicosa. Encontram-se no Alcorão suratas que pregam o amor, outras a violência. Os predicadores citam esta ou aquela passagem do Alcorão, consoante as suas preferências e as necessidades do momento. O texto contém coisas de facto contraditórias. Entre os versos mais antigos do Alcorão é indicado, por exemplo, que se pode beber vinho, outros, em seguida, proíbem-no. É por isso que as obras clássicas muçulmanas elaboraram a doutrina dita do «ab-rogante e do ab-rogado». Há aí uma contradição? Foi Deus que mudou de opinião.”[2] Em Novembro de 2004, pouco depois do atentado mortal da autoria de um muçulmano holandês, de origem marroquina, contra o realizador Theo van Gogh, em Amesterdão, e da turbulência que se seguiu, Helmut Schmidt, o antigo líder do Partido Social Democrata da Alemanha e ex-chanceler da República Federal afirmava, numa entrevista ao jornal alemão Hamburger Abendblatt, que “trazer milhões de gastarbeiter (trabalhadores-convidados) turcos para a Alemanha tinha sido um erro”, acrescentando, ainda, que “o conceito de multiculturalismo é difícil de pôr a funcionar numa sociedade democrática”. Segundo este, “os problemas que resultaram do influxo dos gastarbeiter turcos foi negligenciado na Alemanha e no resto da Europa. Estes só podem ser ultrapassados pôr governos autoritários”, como, por exemplo, Singapura”[3]. Entretanto, alguns meses antes, o historiador anglo-americano do Islão, Bernard Lewis, professor emérito da Universidade de Princeton, numa entrevista dada a um outro jornal alemão, o Die Welt, tinha afirmado que “a Al-Qaeda tem muitos aliados no Ocidente, nem todos conhecidos” e que entre os aliados conhecidos se contavam “as crescentes minorias islâmicas e convertidos na Europa”. Acrescentava ainda que o Islão radical tinha uma força atractiva parecida com aquela que o comunismo tivera no passado, pois “comunica às pessoas convicções e certezas” dando-lhes “um sentido de missão”: os seus “seguidores parecem unidos enquanto as democracias parecem profundamente divididas”. Ainda na mesma entrevista, e em resposta a questão sobre se a Europa formaria um contrapeso global aos EUA, Bernard Lewis afirmou: “Não. Próximos dos EUA, os futuros actores globais serão a China, a Índia e possivelmente uma Rússia próspera. Com segurança, ninguém sabe o que vai ser o regime dominante em Moscovo, mas certamente não vai ser comunista. A Europa vai ser parte do Ocidente arábico. As migrações e a demografia apontam nessa direcção. Os europeus casam-se tarde e têm poucos filhos, se é que têm algum. Mas permitem uma forte emigração: turcos na Alemanha, árabes em França, paquistaneses no Reino Unido. Essas pessoas casam-se cedo e têm muitos filhos. De acordo com as tendências actuais, a população europeia vai conter maiorias muçulmanas no final do século XXI, o mais tardar.”[4] Que pensar de todas estas afirmações verdadeiramente surpreendentes e até algo alarmantes? Estamos perante opiniões exageradas e desprovidas de qualquer sentido útil? Será que tudo isto se pode explicar como uma tendência para o racismo e a “islamofobia” das actuais sociedades europeias?

2. Até há algum tempo atrás os europeus tinham-se praticamente esquecido da existência do mundo árabe e islâmico. Nas últimas décadas, acontecimentos extremamente mediatizados como, por exemplo, a guerra israelo-árabe do Yom Kippur, em 1973, que provocou um choque petrolífero, a revolução iraniana de 1978-1979 que levou ao poder o Ayatollah Khomeini e provocou um segundo choque petrolífero, a guerra do golfo de 1991 para libertação do Koweit anexado pelo Iraque, os atentados terroristas de Nova Iorque e Washington em 11 de Setembro de 2001 e a guerra do Iraque de 2003, que levou à queda do regime de Saddam Hussein, lembraram aos europeus a sua existência bem real. Todavia, estes foram acontecimentos essencialmente longínquos, ocorridos no Médio-Oriente ou na América do Norte, e que, na percepção da maioria da opinião pública europeia, tenderam a ser vistos, para além da simpatia ou antipatia pelos protagonistas, como uma questão entre norte-americanos e árabes. Mais recentemente, em 11 de Março de 2001, um atentado terrorista em Madrid executado por extremistas muçulmanos, fez cerca de 200 vítimas mortais; e, em 7 de Julho de 2005, um outro atentado em Londres, também executado por radicais muçulmanos, provocou mais de 50 mortes. Estes dois últimos atentados trouxeram dois dados novos: ocorreram em solo europeu e não no longínquo Médio Oriente ou na América do Norte e a sua autoria directa deveu-se, não a cidadãos estrangeiros, como no 11 de Setembro nos EUA, mas essencialmente a cidadãos nacionais, respectivamente espanhóis e britânicos, oriundos das comunidades muçulmanas da emigração. Esta deslocação dos acontecimentos para o solo europeu, com protagonistas europeus, levanta, naturalmente, inúmeras interrogações ao nível das causas que estão na sua origem e das consequências que daí podem resultar. Numerosíssimas análises já foram feitas sobre estes dois atentados terroristas, ligando-os ou desligando-os da situação no Iraque ou na Palestina, só para referirmos os dois mais conhecidos pontos de conflitualidade no Médio Oriente. O que aqui me proponho fazer não é entrar directamente nesse debate, mas analisar a deslocação dos acontecimentos para solo europeu à luz de uma perspectiva histórica e política alargada. A hipótese que coloco é que estes podem ser o prenúncio de um novo tipo de relacionamento da Europa com o Islão, endógeno e exógeno, que vai ter consequências sobre o próprio funcionamento das sociedades europeias e a cidadania dentro do “Estado-Nação”. Para analisar a consistência desta possibilidade, impõe-se enunciar os principais traços que marcaram o relacionamento dos europeus com o Islão nos últimos dois séculos e meio, mais concretamente desde o final do século XVIII, que marcou um decisivo ponto de viragem nas relações de poder, a partir daí claramente favoráveis às potências europeias, imbuídas de um zelo colonial-civilizacional.

3. A expansão das potências europeias – Rússia, Grã-Bretanha, França, Áustria e Itália –, entre os finais do século XVIII e as primeiras décadas do século XX, que se dirigiu para os territórios do dar al-islam (a “terra do Islão”) no Sudeste da Europa geográfica (Balcãs, Crimeia e Cáucaso) e na margem Sul e Leste do Mediterrâneo (Argélia, Tunísia, Líbia, Egipto, Palestina e Síria), foi feita essencialmente à custa do poder imperial/“colonial” que dominava o Mediterrâneo e o Mar Negro desde o século XVI – os turcos otomanos. Na historiografia clássica europeia o marco simbólico da viragem decisiva nas relações de poder, ocorrida no século XVIII, é o tratado celebrado entre a Rússia e o Império Otomano, em 1774, após a derrota militar deste último – Tratado de Küçük-Kaijnardja, na actual Bulgária. Este tratado, pelo qual czar russo adquiriu o título de protector dos cristãos do Império Otomano, marcou o início da “questão do Oriente”, associada à decadência do “homem doente da Europa” – o Império Otomano, na designação do czar Nicolau I, nas vésperas da guerra da Crimeia (1853-1856). Várias crises marcaram o lento declínio do “homem doente da Europa”, as quais ocuparam a diplomacia europeia durante um século e meio. Em 1923, a celebração do Tratado de Lausana, que regulou a dissolução Império Otomano e a emergência da República da Turquia na Península da Anatólia marcou, convencionalmente, o encerramento diplomático da questão do Oriente. Se este foi, em grandes linhas, o quadro geral, vale a pena olhar, com um pouco mais de detalhe, para a situação no Sudeste da Europa (Balcãs), o principal ponto de embate entre as potências europeias e o dar al-islam, na margem Norte do Mediterrâneo. Para além da força das armas e da superioridade tecnológica, a demografia e as ideias desempenharam um papel importante nesse embate. Mas, com que instituições políticas e sociais se confrontou o ideário da Revolução Francesa e Americana, assente na soberania da Nação, nos Direitos do Homem e na cidadania laica, quando chegou ao Sudeste europeu – o Próximo Oriente, na designação do século XIX? Porque é que este ideário, associado à força das armas e da demografia, se revelou fatal para a o dar al-islam otomano que persistia na Europa do século XIX? (O dar al-islam árabe já tinha sido erradicado da Península Ibérica no final do século XV).

4. Os povos dos Balcãs, tal como os outros povos do Império, do Norte de África ao Médio Oriente e ao Cáucaso, foram governados segundo um sistema fundado na Xária, a lei islâmica, com vocação para regular todas as esferas da vida humana. Sob a chefia suprema do sultão-califa – que juntava ao poder político absoluto o poder religioso de liderança da umma, a “comunidade dos crentes” –, foi instituído o sistema do millet e aplicado o estatuto do dhimmi (ou zimmi) a todos os que não eram muçulmanos e que professavam “as religiões do Livro” (uma expressão da teologia muçulmana que abrangia cristãos, judeus e persas zoroastrianos, os primeiros povos a serem dominados pelo Islão triunfante do século VII e seguintes). Esta forma de governação marcou profundamente a realidade sociológica e política dos povos balcânicos, submetidos ao poder otomano a partir do século XIV, e subsistiu, em várias regiões, até uma fase tardia do século XIX. Este sistema, provavelmente pelo pouco conhecimento existente sobre o mesmo, tem-se prestado a diversas vulgatas e distorções, naïfs ou deliberadas, que falam da sua “originalidade histórica” e tendem a elogiar o carácter ímpar da sua “tolerância”. A mais recente vulgata pode encontrar-se nos teóricos do multiculturalismo empenhados na procura de modelos históricos para a sua nova forma de “cidadania diferenciada” e para as “políticas do reconhecimento” da identidade que pretendem promover. Por exemplo, o filósofo canadiano Will Kymlicka afirma que “na medida em que se pode considerar que o sistema do millet constituiu um precedente importante e um modelo para os direitos das minorias, importa examiná-lo em detalhe”, descrevendo-o como um sistema onde “em todo o império se respeitavam as tradições e práticas jurídicas de cada grupo religioso” e no qual “a sua liberdade de culto era garantida”[5]. Quanto ao sociólogo britânico Tariq Modood, um dos mais entusiásticos proponentes do multiculturalismo no Reino Unido, diz que “o sistema do millet do Império Otomano, que remonta à Constituição de Medina do Profeta Maomé no século VII, foi chamado a primeira sociedade plural da história”[6] Mas vejamos, em concreto, como é que funcionava este “modelo para os direitos das minorias” no âmbito da “primeirasociedade plural da história”. Tomemos como exemplo os Balcãs, onde se calcula que durante o período de governação otomana, os dhimmi constituídos por populações cristãs, essencialmente ortodoxas, ou judaicas, representariam mais de 80% da população total da região. Cada uma destas populações foi agrupada num millet, ou seja, numa comunidade religiosa reconhecida pelo poder otomano que, sob a responsabilidade da sua chefia, “se auto-administra nos domínios que relevam da sua teologia e da sua moral, mas que se conforma com as leis do império para tudo o resto.”[7] A consequência desta forma de governação é que só os muçulmanos “podiam ser membros de parte inteira deste Estado”, enquanto que os não-muçulmanos que aí viviam eram designados, de uma forma eufemística, como “protegidos” (dhimmi), tendo um estatuto constitutivamente inferior (por exemplo, em tribunal o testemunho de um não-muçulmano não valia contra um muçulmano, estavam proibidos de usar armas e de utilizar montadas nobres como cavalos, estavam sujeitos aodevxirme, ou seja, o tributo de sangue para o serviço imperial, constituído por crianças e jovens do sexo masculino subtraídos às suas famílias, etc.). “Em termos jurídicos os dhimmi só existiam pela graça dos conquistadores que os podiam mandar matar, o que se exprimia pelo pagamento da capitação (jizya), taxa de compra da vida; naturalmente que não pretendiam exercer um papel político ou administrativo num organismo fundado sobre uma lei que eles não reconheciam. A conversão ao Islão era o único meio de ultrapassar esta barreira”[8]. Como se pode verificar, a visão romântica e idealizada da governação otomana sugerida pela qualificação “a primeira sociedade plural da história” e “modelo para os direitos das minorias” de alguns teóricos do multiculturalismo, pouco tem a ver com a realidade histórica das estratégias de dominação imperial postas em prática pelos conquistadores otomanos (aliás, copiadas de outros impérios mais antigos como o persa). Para além disso, a utilização de conceitos como “tolerância” e “minoria religiosa” é uma óbvia fonte de distorções, pois induz os significados que as palavras têm hoje na cultura laica europeia e ocidental, o que não é o da realidade histórica do millet e dos dhimmi. Esta só pode ser correctamente apreendida no contexto da teologia muçulmana, algo que os referidos teóricos do multiculturalismo não fizeram.

5.  As ideias da Revolução Francesa e Americana, da soberania da Nação, dos Direitos do Homem, da cidadania laica e igualitária levadas da Europa para o Império Otomano produziram o seu primeiro grande resultado com a revolução grega iniciada em Março de 1821, que acabou por levar à formação da Grécia moderna, após a destruição da marinha otomana por uma esquadra anglo-franco-russa na baía de Navarino, no Peloponeso (1827). Aos olhos dos muçulmanos otomanos as sucessivas revoltas sangrentas dos dhimmi cristãos ortodoxos – gregos, sérvios, montenegrinos, búlgaros, valacos, moldavos, etc. –, durante todo o século XIX e início do século XX, foram uma espécie de “conflito civilizacional” avant la lettre. As rebeliões que levaram à subversão da pax otomana e ao fim do sistema teocrático do millet, invocavam um ideário político até então completamente desconhecido, que não se fundava nos textos religiosos e falava, não em Alá, nem sequer no Deus dos cristãos, mas na soberania da “Nação”: quem se poderia lembrar de combater em nome de tal heresia? (A surpresa que tiveram os muçulmanos otomanos no início do século XIX, impregnados por um pensamento religioso, ao confrontarem-se com combatentes dispostos a morrer por uma ideia “irreligiosa”, provavelmente só é comparável à surpresa que europeus e ocidentais, moldados por um pensamento laico, tiveram nas últimas décadas do século XX, quando viram muçulmanos dispostos a morrer por um ideário religioso, em atentados suicidas em Israel, na Palestina, na Chechénia ou no Iraque). Ao contrário dos muçulmanos otomanos, para os dhimmi revoltosos o novo ideário da soberania da nação e da cidadania laica e igualitária tendeu a ser visto como libertador. Dentro dos povos submetidos ao poder otomano, foi entre os cristãos dos Balcãs, e mais tarde da Ásia Menor e das províncias árabes do Império, que este ideário laico teve uma mais rápida e entusiástica difusão (mais tarde, também entre os muçulmanos não turcos, árabes e curdos). As razões são de vária ordem e têm a ver quer com os contactos comerciais que estes mantinham frequentemente com os europeus – o comércio otomano era sobretudo efectuado por dhimmis gregos, arménios e judeus, dado o menosprezo que a tradicional elite dirigente otomana tinha pelo exercício das actividades comerciais e industriais (o que, ironicamente, com a expansão do capitalismo industrial, até acabou por ser favorável aos dhimmis) –, a maior proximidade cultural, e, talvez mais importante do que tudo isto, a possibilidade de acabar com o estatuto de sujeição que implicava o sistema do millet. Se entre finais do século XV e meados do século XVII esse sistema foi, quando genericamente considerado, provavelmente um mal menor, sobretudo se o compararmos com o clima de guerras religiosas que a Europa viveu e com a inquisição que levou, por exemplo, à expulsão dos judeus da Península Ibérica. A questão é que a situação se alterou drasticamente a partir dessa altura. O Estado liberal que começou a emergir da paz de Vestefália (1648), do Iluminismo e das Revoluções Francesa e Americana, estabeleceu novos direitos igualitários de cidadania e colocou a nação como detentora do poder soberano. Isto fez com que com que a teocracia dos millet e o próprio Império Otomano que assentava nesta (apesar de reformas como as Tanzimat que pretenderam introduzir uma espécie de “cidadania otomana”), se tornasse, cada vez mais, um sistema arcaico e opressivo aos olhos dos que viveram no século XIX e nas primeiras duas décadas do século XX. Após o fim do Império Otomano, o período entre as duas guerras foi marcado por um ilusório apogeu colonial das potências europeias nos territórios do dar al-islam, com os novos protectorados franceses (Síria e Líbano) e britânicos (Iraque, Koweit, Jordânia, Palestina) no Médio Oriente, que sucederam ao antigo poder imperial/”colonial”, derrotado na I Guerra Mundial. De um ponto de vista histórico, este foi um período bastante curto, se o compararmos com os vários séculos de dominação otomana da região. De facto, no imediato pós-II Guerra Mundial as potências coloniais europeias já estavam a braços com um imparável processo de descolonização: o ciclo iniciou-se com a independência do antigo Império Britânico da Índia, em 1947 (que deu origem à Índia e ao Paquistão e mais tarde, em 1971, também ao Bangladesh) e fechou-se com o fim do império colonial português, em 1975. É este processo de descolonização que está na origem de uma nova fase de relações com o Islão: no plano externo, as antigas relações coloniais deram lugar a relações entre Estados independentes; no plano interno, os tradicionais movimentos migratórios de populações europeias para o resto do mundo (colónias e ex-colónias) começaram a inverter-se. De grande exportadora de população devido ao seu dinamismo demográfico (e aos conflitos militares), das décadas e séculos anteriores, a Europa começou progressivamente a ser o destino de grandes fluxos de populações extra-europeias (emigrantes voluntários e refugiados). Foi neste contexto histórico que se começaram a desenhar os contornos do que actualmente podemos designar como o novo Islão da Europa Ocidental, por contraposição ao antigo Islão da “Turquia da Europa” – nome dado aos territórios otomanos no Sudeste europeu –, que hoje continua a ter uma presença significativa (Bósnia, Macedónia, Chipre e Bulgária) e nalguns casos até maioritária (Albânia e Kosovo) de populações muçulmanas.

6. Visto retrospectivamente, o ano de 1989 não só marcou o final da Guerra Fria com a queda do muro de Berlim, como também nele ocorreram outros eventos – na altura percebidos como de importância menor – que já prenunciavam rumos importantes do Islão da Europa. De facto, sendo agora conhecida a sequência dos acontecimentos, podemos verificar que já nessa altura este dava os primeiros sinais públicos de afirmação. Dois acontecimentos sustentam esta re-leitura a posteriori: o caso Salman Rushdie no Reino Unido e a controvérsia sobre o uso do véu na escola pública em França. No caso britânico, os acontecimentos ligados ao “auto-de-fé” dos muçulmanos de Bradford e à fatwa Ayatollah Khomeini foram seguidos de um outro evento simbólico relevante: a criação de um “Parlamento Muçulmano”, por Kalim Siddiqui, antigo sub-editor do jornal britânico Guardian, ao lado do Parlamento de Westminster. No caso francês, o despertar simbólico do Islão ocorreu também em 1989 – precisamente na altura das comemorações dos duzentos anos da Revolução de 1789, com todo o simbolismo do evento sobre a laïcité –, quando a questão do uso do véu islâmico (foulard) em locais públicos foi desencadeada por três alunas de uma escola da cidade de Creil, que insistiam no seu uso durante as aulas, lançando uma onda de polémica na sociedade francesa e entre a classe política. Se estes foram os desenvolvimentos mais importantes do lado ocidental da Europa, no lado oriental da Europa – o “Próximo Oriente” na designação do século XIX – a aceitação da candidatura da Turquia à União Europeia e a abertura oficial de negociações de adesão em 2005 trouxe, aquilo que, numa analogia histórica, pode ser qualificado como a “questão do Oriente” do século XXI. Nesta nova versão, o antigo “homem doente da Europa” do século XIX está recuperado das enfermidades do passado. Agora, propõe-se até tratar das maleitas que afligem a Europa neste início do século XXI – o envelhecimento e a quebra demográfica, a falta de população activa que suporte o crescimento da economia e sustente o Estado-Providência, e o infame “conflito de civilizações” diagnosticado por Bernard Lewis[9] e Samuel P. Huntington – com o seu dinamismo demográfico (71 milhões contra 13,5 milhões nos anos 20 do século XX) e a sua experiência de séculos de “pluralismo” otomano (leia-se do sistema teocrático dos millet derivado da Xária) seguida de décadas de secularismo nacionalista “democrático” (onde a minoria curda foi inexistente e deu lugar aos “turcos da montanha”). Esta tranquilizante imagem dada pelo governo dos conservadores-islamistas do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), de Recep Tayyip Erdogan, parece ter impressionado favoravelmente líderes europeus como o Primeiro-Ministro britânico, Tony Blair, que, aparentemente, acreditam nela. Todavia, nem todos têm uma percepção tão optimista e crédula quanto a esta terapêutica, talvez por conhecerem bem os seus efeitos secundários. Nos actuais Estados soberanos dos Balcãs e Médio Oriente, formados a partir da decomposição do dar al-islam otomano, a ambição europeia da Turquia enfrenta bastante cepticismo e desconfiança. É esse o caso da Grécia, apesar da sua recente atitude mais flexível face à adesão turca, motivada, muito provavelmente, por cálculos estratégicos de vantagens na multilateralização do conflito heleno-turco, e de alguns países árabes, como, por exemplo, a Líbia do sempre imprevisível Muammar Kadafi, que já qualificou a adesão da Turquia como um “cavalo de Tróia”[10] para a União Europeia. As razões são relativamente óbvias, se tentarmos olhar para as ambições europeias desse país, a partir de um olhar grego, ou até árabe. A sua re-entrada europeia tende a ser vista como uma espécie de “regresso ao passado”, onde o antigo poder imperial/“colonial” tem ambições sobre a “Turquia da Europa”, os ex-territórios otomanos do Sudeste europeu, pelo menos ao nível da influência cultural, religiosa e política. Antecipando um pouco mais essa (im)previsível ambição estratégica da Turquia, esta procurará, através dos mecanismos institucionais da União Europeia, sempre zelosa com os direitos das minorias, tornar-se, de iure ou de facto, no Estado protector da identidade e do “direito à diferença” dos antigos muçulmanos religiosos e sociológicos do Sudeste europeu (cerca de 8 milhões), bem como dos novos muçulmanos religiosos e sociológicos da Europa Ocidental (12 a 15 milhões), dos quais mais de 3,5 milhões são de origem turca (e curda). Se a isto juntarmos as revindicações comunitaristas já existentes em países oficialmente multiculturais, como o Reino Unido – bem simbolizadas pelo Parlamento Muçulmano de Kalim Siddiqui –, facilmente percebemos que se está a abrir a porta a formas arcaizantes de “cidadania diferenciada” onde a pertença comunitária, étnica e religiosa, corrompe a cidadania igualitária e universalista herdada das Revoluções Francesa e Americana. Será este multiculturalismo um progresso social e político, ou será que estamos no limiar de um retrocesso civilizacional da Europa do século XXI?

 

NOTAS

[1] Gilles Kepel, À l Ouest d’Allah, Paris, Éditions du Seuil, pp. 218-219.
[2] Jerôme Cordelier e Marie-Sandrine-Saherri (entrevista a Maxime Rodinson), “Ce qui s´est passé à New York n´est pas isolable de la lutte Orient-Occident” in Le Point (5 de Outubro de 2001).
[3] Hannah Cleaver, Turkish workers a mistake, claims Schmidt, http://www.telegraph.co.uk/news/main.jhtml?xml=/news/2004/11/25/wturk25.xml&sSheet=/news/2004/11/25/ixworld.html
[4] Wolfgang Schwanitz (entrevista a Bernard Lewis), “Europa wird am Ende des Jahrunderts islamisch sein”, in Die Welt (28 de Julho de 2004).
[5] Will Kymlicka, La citoyenneté multiculturelle: une théorie libérale du droit des minorities (trad. fr. de Multicultural Citizenship: a Liberal Theory of Minority Rights, 1995), Paris, Éditions La Découverte, 2001, pp. 222-223.
[6] Tariq Modood, Multicultural Politics. Racism, Ethnicity and Muslims in Britain, Edinburgh, Edinburgh University Press, 2005, pag. 139.
[7] Georges Castellan, Histoire des Balkans. XIVe – XXe siècle, Paris, Fayard, 1991, pp. 118-119.
[8] Georges Castellan, op. cit. ant., pag. 108.
[9]Bernard Lewis, “The Roots of Muslim Rage” in Atlantic Monthly (Setembro de 1990).
[10] “Gadhafi warns Turkey threatens EU” in CNN International on-line (16 de Dezembro de 2004).

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Expresso nº 1737 (Atual, 11 fevereiro de 2006, pp. 20-23). Última revisão 14/06/2014

©  Imagem: capa do Livro de Maxime Rodinson, L’Islam: Politique et Croyance (Fayard, 1993)