Federalismo: solução para a crise na União Europeia? Uma perspetiva portuguesa

Fotos dos Presidentes da Comissão Europeia, Edifício Berlaymont Bruxelas

Se a Europa política não se concretizar, o Euro desaparece. Esse desaparecimento pode assumir muitas formas e possibilitar vários paralelos. Pode ser uma explosão, uma implosão, uma morte lenta, a dissolução, a divisão. Pode levar dois, três, cinco, dez anos, e ser precedido de inúmeras remissões, dando a sensação, a cada vez, que o pior foi evitado.

Bernard-Henri LÉVY[1]

A União não tem como objetivo acabar com os Estados nacionais, mas sim manter esses Estados como democracias, Estados de Direito e Estados-Providência viáveis. Precisamos de fugir à escolha simples a que algumas pessoas querem reduzir a reflexão sobre a Europa: ou um Estado federal, ou uma zona de comércio livre.

Paul SCHEFFER[2]

      Introdução[3]

São bem conhecidas as ambições federais subjacentes ao processo de integração das Comunidades/União Europeia. O imediato pós II-Guerra Mundial até à formação das Comunidades nos anos 50 do século XX, foi particularmente rico nesses ideais de unificação. No entanto, nas suas concretizações, ficaram aquém das expectativas mais ambiciosas dos seus proponentes. Todavia, isso não significa que não tenham tido impacto no rumo da integração europeia em momentos importantes. Para além do momento fundador, tiveram-no, desde logo, no período subsequente à queda do muro de Berlim e ao final da Guerra Fria. Aí os ideais federalistas influenciaram, de forma palpável, várias soluções do dispositivo criado pelo Tratado de Maastricht, em particular a criação do Euro. Com a atual crise iniciada em 2007/2008, temos assistido, ao nível político nacional e das instituições europeias, dos think tanks e dos meios académicos, a uma nova vaga de ideias e propostas de pendor mais ou menos federalista. De facto, oriundos de vários quadrantes nacionais e políticos, surgiram frequentes apelos à necessidade de “mais Europa” e de um “governo económico europeu” para solucionar a atual crise financeira e económica.

No caso de Portugal, parece haver consenso entre as principais forças políticas no sentido de que um aumento das competências da União Europeia, nomeadamente através de um “governo económico europeu”, seria uma via adequada e necessária para solucionar a atual crise. Todavia, não é claro em que poderia consistir uma solução deste tipo, nomeadamente em termos de repartição de competências e poderes a nível nacional e europeu, nem quais as suas implicações de longo prazo para os Estados-membros – e em concreto para o Estado português –, bem como para a própria União. Assim, é objetivo desta reflexão identificar e analisar algumas das principais propostas e/ou medidas de cariz federalista que têm sido avançadas: governo económico europeu, união bancária e fiscal, obrigações europeias/eurobonds, etc. É também objetivo procurar avaliar em poderia consistir, em termos concretos, uma União Europeia mais integrada economicamente, tendo em conta que uma solução económica de tipo federal, qualquer que seja, terá sempre de ser, antes disso, uma solução política.

Para o efeito, a metodologia usada será baseada numa pesquisa bibliográfica e documental completada com um método comparativo. A análise começará por incidir numa breve pesquisa sobre modelos de federalismo político clássico (os EUA em 1787, a Suíça em 1848), bem como de federalismo económico e monetário, com destaque para o caso da unificação da Alemanha no século XIX. Em seguida será passado em revista o modelo usado na atual integração europeia, o qual pode ser qualificado com uma integration by stealth [4]. Serão depois analisadas algumas das propostas mais relevantes efetuadas nos últimos anos, por instituições europeias, políticos, think tanks e académicos, etc., relacionadas com esta temática. Por último será utilizado um método comparativo para discutir e avaliar a exequibilidade das propostas de um “upgrade federal” da União Europeia, quer face a modelos federais clássicos, quer à experiência de integração europeia já existente. A análise será completada com uma curta discussão sobre o impacto previsível de tal solução, feita a partir de uma perspetiva portuguesa.

 

  1. Os modelos clássicos de federalismo[5]

 Existe uma abundante literatura sobre o federalismo. Entre outros, os trabalhos editados por Dimitrios e Wayne[6] (2005) e o livro de Burgess[7], dão uma visão abrangente da problemática que envolve o federalismo, nomeadamente ao nível dos conceitos, teorias, estudos de caso e tendências atuais. Não vamos aqui efetuar uma revisão dessa literatura[8], mas apenas olhar, de forma breve e bastante seletiva, para alguns exemplos de federalismo clássico, quer na vertente política, quer na vertente económica. Seguindo de perto Andreas Føllesdal[9], o federalismo pode ser definido como a teoria ou defesa de princípios federais para divisão de poderes entre unidades políticas e instituições comuns. Ao contrário de um Estado unitário, a soberania em ordens políticas federais não é centralizada, assentando, pelo menos, em dois níveis. Assim, as unidades em cada nível dispõem de autoridade própria, podendo ter autogoverno em certas áreas. O cidadão, tem, portanto, obrigações políticas e direitos garantidos por dois tipos de autoridades. A divisão de poderes entre as unidades políticas e o centro pode variar. Normalmente o centro tem poderes sobre a defesa, a política externa e as finanças. As unidade políticas também podem participar na tomada de decisão nos órgãos centrais.

Tipicamente, mas não necessariamente, um Estado federal resulta da fusão de vários Estados, ou de unidades políticas que eram anteriormente autónomas. Em geral, trata-se de Estados ou unidades políticas de dimensão pequena ou média, os quais abdicaram, ou foram constrangidos a abdicar, da sua soberania plena para formarem uma nova unidade política de maior dimensão. A solução federal pode surgir também da transformação de um Estado centralizado e unitário, normalmente de grande dimensão territorial, num modelo de organização interna e repartição de poderes diferente, conferindo uma ampla autonomia às suas regiões ou províncias. Neste caso, o processo passa por uma partilha da soberania interna, passando as regiões ou províncias a ser designadas como Estados federados, ou outra designação equivalente. Trata-se daquilo que usualmente se chama uma “falsa federação” ou “federação imperfeita”[10], pois não surge da junção de unidades políticas que, no momento imediatamente anterior, eram soberanas. Um exemplo desta situação na Europa é a Alemanha federal fundada no pós-II Guerra Mundial, em 1949. Esta sucedeu à Alemanha centralizada do III Reich e à relativamente pouco descentralizada Alemanha da República de Weimar. (Houve, todavia, em momentos históricos anteriores à unificação de 1871, diversas unidades políticas soberanas). Em qualquer dos casos, o Estado federal é o único que exerce a soberania no plano externo (política externa, diplomacia e forças armadas são domínios exclusivos do Estado federal).

 Nem sempre é fácil traçar os contornos da federação face a outras figuras próximas como a confederação. Em princípio, numa confederação, as unidades políticas que a integram – Estados soberanos –, mantêm, no essencial, a sua soberania e, por princípio, podem voluntariamente abandonar a confederação. Tipicamente esta baseia-se na existência de interesses comuns que levam ao exercício conjunto da soberania em certas áreas (por exemplo, no plano externo, em matéria de defesa, e, no plano interno, em matéria comercial). Note-se, no entanto, que podem existir formas bastante variáveis de confederação, as quais, nos extremos, se aproximam ou de uma federação, ou de um mero acordo cooperação intergovernamental.

Voltando ao caso da federação, provavelmente os exemplos mais estudados de federalismo clássico são os casos dos Estados Unidos da América, em 1787, e também o da Suíça, em 1848. É importante notar, desde já, que estes dois exemplos históricos de federação ocorreram em circunstâncias muito diferentes das que se encontram na atual União Europeia. Nos EUA, o momento federador foi o referido ano de 1787 e este ocorreu num curto período de onze anos após a independência de 1776. Entre outras circunstâncias específicas da época, na altura as treze ex-colónias britânicas tinham uma população conjunta escassa, inferior a três milhões de habitantes. Aspecto relevante era o das pequenas diferenças de dimensão e heterogeneidade entre as unidades políticas que formaram a federação no ano de 1787. O Estado mais populoso – a Virgínia –, tinha 538.000 habitantes e o de menor população – Rhode Island –, 45.000, representando uma diferença de 1 para 12 nos extremos. Esta era, todavia, uma diferença excepcional, caindo de 1 para 6 entre o segundo e o penúltimo Estados, em tamanho, e baixando de 1 para 3 entre a generalidade dos restantes Estados[11]. Importante é também notar que nenhuma das treze ex-colónias tinha qualquer tradição enraizada de Estado-Nação soberano na altura em decidiram transformar a confederação em federação. No caso da Suíça, quando ocorreu a evolução para uma federação, em 1848, substituindo a medieval confederação helvética pela moderna Suíça federal, a dimensão populacional era semelhante à das treze colónias britânicas que fundaram a federação norte-americana em 1787.

Em termos de instituições políticas, quais são os traços típicos das instituições de um Estado federal, nestes dois modelos de federalismo clássico, especialmente no norte-americano? Um dos traços políticos mais identificativos é a existência de um parlamento bicamaral, moldado por uma lógica de equilíbrio entre as pequenas e as grandes unidades federadas. A primeira câmara parlamentar impede que as grandes unidade federadas, menos numerosas, sejam dominadas por uma coligação das mais pequenas. Pelo contrário, a segunda câmara parlamentar procura proteger as pequenas unidades políticas contra uma hegemonia das grandes. Todavia, importa recordar, neste federalismo clássico, a igualdade dos representantes estava facilitada uma vez que as diferenças eram relativamente reduzidas, devido à fraca dimensão de todas as unidades federadas.

Uma característica típica do modelo federal norte-americano, é, ainda, a instituição de um sistema de governo presidencial, o qual pretende funcionar como um forte elo de ligação do conjunto, tendo uma legitimidade democrática direta conferida pela escolha eleitoral efetuada pela maioria dos cidadãos da federação. No caso do modelo suíço, verifica-se que este foi também influenciado pelo modelo bicamaral norte-americano transposto para a Constituição suíça. A maior originalidade encontra-se no Conselho Federal, o órgão executivo da federação, o qual deve governar com base no consenso entre os principais partidos. Manteve-se, assim, uma tradição oriunda dos tempos da Confederação Helvética. Encontra-se também no facto de o Estado federal ter as competências reduzidas ao mínimo. No essencial, o poder legislativo está na mão dos cantões. Isto leva a uma originalidade do modelo helvético, que é a prática frequente da democracia direta, com recurso ao referendo, quer para ratificação de alterações constitucionais, quer para outras questões políticas, as quais, pela sua importância, são entendidas como devendo ter a aprovação direta do povo[12].

 Vejamos agora o federalismo na sua vertente económica, através do exemplo histórico da unificação alemã do século XIX, com ênfase na unificação monetária. Antes de analisarmos esta faceta, importa notar que a unificação alemã do século XIX não foi um processo de adesão voluntária e pacífica como o das Comunidades/União Europeia, o qual também só possível após a tragédia da II Guerra Mundial. No processo de criação do Estado alemão federal no século XIX, as manobras diplomáticas e a guerra tiveram um papel crucial. O termo realpolitik, difundido nesse período, capta o espírito da época. A formação do Reich alemão em 1871 ocorreu sob liderança conquistadora da Prússia de Guillherme I e de Otto von Bismarck aglutinando originalmente vinte e sete Estados anteriormente independentes, o maior das quais era Prússia. Tais Estados (Staaten ou Bundesstaaten), ou seja, Estados federados, passaram a ser designados por Länder durante a República de Weimar (1918-1933), designação que se mantém na atualidade

Sob o prisma económico-monetário, um aspeto interessante do modelo federal germânico do século XIX, foi o da passagem das moedas e políticas monetárias dos diferentes Estados, para um moeda e banco central único, o Reichsbank. Várias dificuldades se depararam a esta transferência da soberania monetária para uma autoridade comum. Na época, a questão da perda de receitas de senhoriagem[13] dos Estados que passaram a integrar a federação era relevante. Ocupava um lugar importante, sobretudo nos recursos dos pequenos Estados. Hoje é uma questão tendencialmente ultrapassada, excepto em casos de economias afetadas por forte inflação, onde o poder de emissão de moeda pode ser considerada uma espécie de “imposto oculto de senhoriagem”. Uma outra diferença de fundo face à economia da atualidade é a circulação do papel-moeda, na altura quase marginal em comparação com a circulação de moeda metálica, largamente dominante. As notas não tinham poder liberatório legal que hoje têm, sendo usualmente utilizadas para facilitar os pagamentos nos negócios, ou seja, eram sobretudo consideradas instrumentos de crédito.

Para além destas diferenças devidas às caraterísticas da economia da época, importa chamar a atenção para outros aspetos com maior transcendência para os tempos atuais, interrelacionados entre si. O primeiro, que não é demais voltar a lembrar, refere-se ao processo de criação de uma federação política e económica na Alemanha novecentista, o qual esteve longe de ser igualitário, ou destituído de lutas de poder. Pelo contrário, o que se verificou foi uma supremacia dos Estados do Norte, da Prússia em particular, quer no desenho da federação, quer na máquina burocrático-administrativa estadual. Um exemplo só. Friedrich List, o principal teorizador da união aduaneira e da industrialização germânica, defendia a ideia de um banco central emissor de notas para o conjunto do Zollverein. O que na realidade aconteceu foi que o governo da Prússia, desejoso de manter o controlo monetário, optou por outra via. Criou, primeiro, em 1847, um banco central exclusivamente prussiano. Só mais tarde, após a unificação política de 1871, o banco central de Prússia se tornou, em 1876, no Reichsbank, o Banco do Império, num simbolismo claro da sua prevalência sobre a federação.

O segundo é que o domínio da Prússia e dos Estados do norte originou importantes clivagens económicas e culturais-religiosas, entre protestantes e católicos. Estes últimos foram objeto de uma Kulturkampf (guerra de cultura), movida pela elite protestante e prussiana que dominava o Estado. O conhecido livro de Max Weber, a Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, publicado em 1905, reflete, de alguma forma, essas clivagens profundas da Alemanha de há um século atrás.

O terceiro é sobre o uso deste modelo federal para analogias com o presente da atual unificação económica e monetária europeia. A comparação é obscurecida quando não se considera a questão da prévia unificação política – existente na Alemanha do século XIX e inexistente na União Europeia do século XXI. Conforme realçou João Ferreira do Amaral[14], “a integração monetária alemã, ao contrário do que sucedeu na União Europeia é posterior em dois anos à unificação política (realizada em 1871, quando a união monetária alemã é de 1873). Este aspeto, que, contudo, faz toda a diferença, foi desvalorizado pelo federalismo, que continuou a crer que o papel histórico do Euro seria o de criar condições para a unificação política europeia”.

 

  1. A União Europeia e a integration by stealth

As ideias federais que influenciaram a construção das Comunidades/União Europeia podem ser simplificadamente agrupadas, do ponto de vista teórico, sob o prisma de duas abordagens: a de Jean Monnet e a de Altiero Spinnelli. A primeira, a do homem de negócios francês, Monnet, carateriza-se pelo seu caráter essencialmente pragmático e não é explicitamente federalista. Opta, sobretudo, por avanços na integração económica, com objetivo de desencadear, mais tarde ou mais cedo, um efeito spillover, ou seja, de arrastamento para esse fim. Esta levará a uma ainda maior integração económica, que necessitará de soluções e instituições políticas federais. A segunda, protagonizada principalmente pelo político italiano de esquerda, Spinnelli, é assumida e explicitamente federalista. Nesta abordagem, soluções e instituições políticas federais deveriam ser adoptadas sem esperar por efeitos de arrastamento da economia. Aliás, existe cepticismo sobre a possibilidade da estratégia de avanços na integração da economia, poder gerar, no futuro, um efeito de arrastamento impulsionador de uma união política federal.

Embora as Comunidades/União Europeia não sejam uma federação de Estados comparável a nenhuma das federações anteriormente analisadas, as ideias federalistas clássicas e outras, têm historicamente tido um grande eco nesta. Isto ocorre, claramente, no interior das instituições da União Europeia, nomeadamente nas de perfil supranacional, como a Comissão, o Parlamento e o Tribunal de Justiça. O caso de Altiero Splinelli é emblemático. Foi, sucessivamente, membro da Comissão entre 1970-1976, e, mais tarde, deputado no Parlamento Europeu, entre 1979-1986. Mas a faceta mais interessante e talvez mais desconhecida (exceptuando os meios jurídicos), da ambição federalista que impregna as instituições europeias é o do Tribunal de Justiça. Um artigo de há mais de três décadas atrás, de Eric Stein[15], sobre o papel desta instituição na criação, pela via jurisprudencial, de uma Constituição transnacional, mostrava bem essa tendência. Aliás, o caso do Direito da União Europeia, no qual o papel de fixação da interpretação e aplicação do Tribunal de Justiça tem sido historicamente enorme, é um exemplo daquilo que pode ser designado como integration by stealth[16]. Sendo uma expressão difícil de traduzir com rigor, sugere a ideia de uma integração feita nos bastidores entre elites, longe do olhar do cidadão e quase furtiva.

Não é exagero afirmar que os casos Van Gend en Loos versus Administração Fiscal Neerlandesa (1963) e Flaminio Costa versus Enel (1964), o primeiro no estabelecimento do princípio da aplicabilidade direta; o segundo na formulação do princípio, também jurisprudencial, do primado ou primazia do direito da união sobre o direito nacional, estão impregnados de um federalismo jurídico. Todavia, nenhum destes princípios resulta, de forma direta e inequívoca, do texto dos Tratados Europeus. Esta formulação jurisprudencial tornou-se dominante fora do olhar da opinião pública, pela sua aceitação generalizada pela doutrina e pelos juízes nacionais. Todavia, não afasta totalmente as possibilidades de contestação. Em última análise, a questão da primazia só ficaria encerrada com uma disposição como aquela prevista no abandonado projeto de Tratado Constitucional Europeu. Figurava explicitamente no seu artigo I-6º o seguinte: “A Constituição e o direito adoptado pelas instituições da União, no exercício das competência que lhe são atribuídas, têm primazia sobre o direito dos Estados-Membros”. Quer dizer, se estive tivesse sido aprovado, ficava estabelecido no texto, de forma inequívoca, o primado do direito originário (Tratados) e do direito derivado (atos jurídicos das instituições) sobre qualquer norma nacional, incluindo a constituição. Na realidade, esta disposição foi das escassas que, sob uma ou outra forma, não passou para os atuais Tratados da União Europeia (TUE) e Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), na redação dada pelo Tratado de Lisboa. A razão é, muito provavelmente, política. Sugere a estratégia de integração fora do olhar da opinião pública que tem sido seguida. Um disposição como a referida – clara na sua interpretação para qualquer leigo em questões de Direito da União Europeia –, teria implicações políticas. O comum dos cidadãos passaria a “descobrir” que o Direito da União prevalece sobre qualquer norma nacional, mesmo uma norma constitucional. Se, nalguns Estados-membros, não seria problemático, noutros, com uma opinião pública mais eurocética, ou mais escrutinadora dos processos europeus, seria, muito provavelmente, difícil de aceitar por razões políticas. A opção foi continuar com a integração fora do olhar da opinião pública, como até aí. Ao não colocar tal disposição nos Tratados evitou-se um problema político delicado aos governos. Com este subterfúgio, puderam, assim, tornear a espinhosa questão de explicar aos eleitores nacionais a primazia absoluta sobre o direito nacional. Mas, ao contrário do que o cidadão leigo poderia pensar, a solução obtida pela via jurisprudencial é, no essencial, bastante similar. Tem a vantagem de funcionar em “circuito fechado” e de ficar reservada a técnicos usualmente imbuídos de uma ideologia europeísta-federalista. Veja-se o clarificador artigo de Majone[17] sobre esta peculiar cultura política europeia e o receio do voto do cidadão em referendos.

 

  1. O uso e abuso da integração monetária

Para além do federalismo jurídico e da interpretação jurisprudencial dos Tratados, a integração monetária é um outro caso interessante de influência das ideias federalistas. Esta vertente está essencialmente ligada à criação da União Económica e Monetária (UEM) iniciada com o Plano Delors em 1988. Culminou com a adoção do Euro como moeda física, a 1 de janeiro de 2002. No âmbito do processo de criação da UEM, ficou estabelecido que os Estados-membros que pretendiam participar neste processo teriam de cumprir um conjunto de regras, usualmente designadas por critérios de convergência nominal. O objetivo era assegurar que estes reuniam condições para participar no Euro, sem por em causa o seu bom funcionamento. Para o efeito, entre outros requisitos que foi necessário cumprir – nomeadamente ao nível da liberalização total dos movimentos de capitais e da independência dos bancos centrais face aos governos –, foram definidas as seguintes regras: défice orçamental não superior a 3% do PIB; dívida pública acumulada não superior a 60% do PIB; inflação não superior à média dos três países com taxas mais baixas, mais 1,5%; taxas de juro de longo prazo não superiores à média dos três países com taxas mais baixas, mais 2,0%; taxa de câmbio dentro dos intervalos de valorização/desvalorização admitidos pelo Sistema Monetário Europeu (SME).

Em teoria essas eram condições sine qua non para adotar o Euro. A realidade foi diferente[18]. Prevaleceu uma interpretação flexível dessas metas económicas. Por exemplo, ao nível da dívida pública acumulada, o critério do valor máximo de 60% do PIB, foi substituído por uma interpretação benevolente: bastava estar razoavelmente próximo desse valor e ter uma trajetória de descida do peso da dívida pública acumulada. Quanto à taxa de câmbio, em princípio o critério era a permanência continua, nos anos anteriores, na banda estreita SME, com a máxima desvalorização/revalorização cambial possível de 2,25%. Todavia, também este foi objeto de uma avaliação mais flexível (variação até 15%). Quanto ao critério de o défice não poder superar 3% do PIB, embora a generalidade dos países o cumprisse, ou estivesse próxima de o cumprir, as instituições europeias não se preocuparam (ou foram impedidas de se preocupar…), com a maneira como esse valor foi atingido estatisticamente. Aparentemente, nessa altura, a Comissão Europeia e o Eurostat não viram qualquer problema de falta de rigor estatístico, nem de formas de apresentação da realidade das contas públicas nacionais duvidosas. Todavia, o recurso sistemático a receitas extraordinárias, de privatizações, de fundos de pensões, etc., a desorçamentação de despesas e o uso duvidoso de produtos financeiros derivados – gerando, no imediato, a ilusão de equilíbrio orçamental e controlo da dívida pública –, foram expedientes usados livremente por diversos Estados, como hoje é bem conhecido.

Isto explica, pelo menos em parte, como os países do Club Med[19] puderam fazer parte do Euro desde o início. Na época, não era difícil encontrar literatura especializada que alertava para os riscos de economias frágeis, com crónicas dificuldades nas contas públicas, adotarem uma moeda comum forte. A própria ideia de uma moeda comum na União Europeia foi questionada por diversos economistas, sobretudo norte-americanos. Os casos mais conhecidos foram os de Paul Krugman e Milton Friedman, economistas com visões da economia e de quadrantes políticos muito divergentes. Ambos, embora sob perspetivas substancialmente distintas (Krugman sob um perspetiva keynesiana e Friedman sob uma perspetiva neoliberal), consideravam não se encontrarem reunidos os requisitos para uma zona monetária ótima[20] na União. Quer dizer, faltavam, à partida, requisitos como a mobilidade plena da mão-de-obra, a homogeneidade das preferências, um orçamento comum adequado, etc., para que as vantagens de uma moeda comum superassem, claramente, as suas desvantagens. Face ao menosprezar generalizado dos europeus face às dúvidas lançadas sobre o sucesso do Euro, Krugman fala agora de uma “vingança da teoria da zona monetária ótima”[21].

Como explicar a deficiente arquitetura do Euro e a ineficácia das regras para a entrada e permanência neste? Inépcia técnica e/ou política? Excesso de otimismo quanto à criação futura de uma zona monetária ótima? Uso do Euro como forma de alavancagem para uma união política de tipo federal? Qualquer análise atenta mostra-nos como o projeto de criação do Euro contém, desde o início, importantes fragilidades. A mais óbvia já foi apontada, consistindo na não verificação dos requisitos de uma zona monetária ótima. Tal debilidade intrínseca, só por si, já deveria ter aconselhado mais prudência no processo, configurando-o de outra forma, ou, se isso não fosse possível, retardando ou até afastando a sua adoção. Amplificando o problema, os critérios de convergência traçados foram frequentemente iludidos, sobretudo pelos países do Club Med/PIIGS[22]. Será que nos decisores europeus não havia consciência destes riscos? Provavelmente havia, mas, por um conjunto de entraves intelectuais e políticos ligados à forma como a construção europeia é usualmente vista, estes foram subestimados.

Conhecendo bem a resistência da população à ideia federal, a elite dirigente europeia tem procurado ultrapassá-la, usando, entre outras estratégias, a integração económica com a dupla finalidade de ser também um instrumento para a união política. Assim, os sucessivos avanços na integração económica – união aduaneira, mercado comum, Euro, etc. – serviriam também, como preconizava Jean Monnet, para desencadear um efeito de alastramento para a unificação política – na diplomacia, na defesa comum, num orçamento e fiscalidade de tipo federal, etc. Para João Ferreira do Amaral, esta terá sido mesmo uma das principais motivações subjacentes à criação do Euro. Refere este que os adeptos do federalismo europeu “confiavam que a necessidade de fazer funcionar a união monetária impusesse a criação de instituições federais (por exemplo, um banco central único e um orçamento europeu com dimensão suficiente) […]. Por isso, mal a moeda única foi criada, apostaram, para esse efeito, na aprovação de uma constituição europeia de pendor federal, elaborada por uma convenção à semelhança de alguns casos históricos de criação de um Estado federal” [23].

Quer dizer, o ambiente intelectual de que a “Europa não pode parar” – na expressão usual do jargão político-mediático –, associado ao pré-conceito de que “mais Europa” é sempre bom, foram fatores determinantes na decisão de criação do Euro. Aliás, só com esse ambiente intelectual como pano de fundo, obstaculizando o pensamento crítico no debate político, se pode entender a coligação, ideologicamente contra natura, que suportou a sua criação. “Na realidade, a moeda única só se realizou porque foi possível, na década de 1990, uma convergência (à partida extraordinariamente improvável) entre as concepções federalistas e as concepções neoliberais, então em ascensão nos meios ligados aos negócios e às entidades formuladoras da política económica.”[24] A perspetiva, implícita, de com a moeda única se chegar à união política, acabou por seduzir a esquerda política europeia, onde existem importantes simpatias pró-federais. Assim, esta acabou por aceitar a “criação de instituições da união monetária em que se refletem as principais concepções neoliberais”. O problema que daí resultou foi que, com esta configuração do Euro, todo o ajustamento macroeconómico tende a ser “feito à custa do factor trabalho (através do aumento do desemprego ou através da redução salarial)”. Além disso, “põe em causa a sobrevivência do chamado modelo social europeu, uma possibilidade bem-vinda pelo neoliberalismo, que considera que o modelo social europeu não é compatível com a globalização”.

Embora concordando com o diagnóstico de falhanço do atual modelo de governação económica europeia, uma outra interpretação e, sobretudo, uma outra solução, é naturalmente avançada pelos proponentes de uma solução federal para União Europeia. É este o caso de Jean-François Jamet[25], que defende ser um governo económico europeu, assente num federalismo orçamental, a melhor saída para atual crise na Zona Euro. Quanto à debilidade da atual arquitetura económica e monetária europeia, este descreve-a assim Jamet: “A crise revelou as fraquezas deste modelo, quer do ponto de vista da sua eficácia, quer do ponto de vista da sua legitimidade. Face à recessão acrescida dos riscos de insolvência bancária e soberanos, foi o Banco Central Europeu (BCE) que teve o papel de estabilizador. Mas para isso teve de ir além do seu mandato, por exemplo comprando parte da dívida pública dos Estados em dificuldade, nomeadamente para parar a especulação sobre a dívida italiana.”[26] Para além disso, as “regras orçamentais e as políticas de coordenação económica dos Estados-membros perderam credibilidade, seja porque não foram aplicadas, como, por exemplo, as regras orçamentais do Pacto de Estabilidade e Crescimento, seja porque as ferramentas institucionais não estavam adaptadas a uma situação de crise (o orçamento da União é insuficiente, para, só por si, ter um efeito de relançamento significativo e as decisões em matéria orçamental e fiscal supõem a unanimidade dos Estados-membros e, por isso, longas negociações diplomáticas), seja porque apenas enunciaram objetivos sem definir uma obrigação de meios”, como na Estratégia de Lisboa. Para Jamet, a incapacidade de solucionar esta crise, deve-se, essencialmente, ao que qualificou como sendo a parte mais débil e “descentralizada da política económica europeia”. Esta adicionou uma “incerteza política e mesmo um sentimento de incerteza e impotência económica”, tornado impossível a “elaboração de uma estratégia de urgência comum clara face à crise”. Conclui Jamet que a “Europa não soube falar a uma só voz, nem estender o nível de solidariedade e de controlo pertinente entre os Estados-membros”.

 

  1. A alternativa do governo económico europeu/federalismo económico

Para além dos aspetos monetários, vejamos em que consiste o atual modelo de governação económica no seu conjunto. Como é de antever, este resulta, entre outras coisas, da já referida preferência europeia pela integration by stealth, com as consequências que daí decorrem, incluindo as da sua questionável legitimidade democrática. Mas, antes de qualquer análise crítica, vamos passar em revista os seus traços fundamentais. Para o efeito, seguimos também de perto a apresentação feita por Jamet[27]. Segundo este, a atual governação económica europeia “tem-se caracterizado por um compromisso entre a gestão em comum de um número limitado de competências, um poder de regulação sob a forma de regras comuns negociadas e um convite a coordenar as políticas assentes em decisões nacionais”. Jamet aponta três áreas nas quais este modelo se desdobra e que descrevermos em seguida nos seus traços principais.

Uma primeira área são as competências centralizadas ao nível europeu, sendo estas tipicamente assuntos “técnicos” que ficam a cargo de uma instituição supranacional de cariz independente. É o caso do BCE na política monetária; do Tribunal de Justiça no controlo da aplicação das normas jurídicas da União; da Comissão em áreas ligadas à união aduaneira e ao mercado comum (por exemplo, a política comercial ou a política de concorrência), em “políticas redistributivas” como a política de coesão económica e social, ou em políticas marcadas por preocupações de autoabastecimento, segurança alimentar e nível de vida da população agrícola (a política agrícola comum). Estas duas últimas políticas, absorvem o grosso do orçamento da União (mais de 80% da despesa total), o qual representa cerca de 1% do PIB do conjunto da UE28. Esta é a área por excelência da governação tecnocrática europeia, onde se procura “despolitizar” os assuntos de governo, levada extremo no caso do BCE, com o seu estatuto de total independência face ao poder democrático dos governos nacionais.

Uma segunda área da governação económica europeia assenta num conjunto regras negociadas entre os Estados-membros com o objetivo de assegurar a coerência das políticas nacionais com as mesmas. Aqui inserem-se as já referidas regras em matéria orçamental para a Zona Euro, cujo intuito era o de evitar que a moeda comum fosse posta em causa por políticas muito divergentes a nível nacional. No implícito, estava também a ideia de uma solidariedade acrescida em caso de dificuldades orçamentais. Note-se que não se trata de regras jurídicas sujeitas a um controlo jurisdicional feito pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, mas disposições de natureza política, sujeitas apenas um controlo político efetuado no âmbito do Conselho, pelo conjunto dos Estados-membros da União. Associada a esta encontra-se aquilo que pode ser considerado uma terceira área da governação europeia de “regulação fraca”: a coordenação das políticas nacionais através de objetivos não vinculativos em matéria de competitividade e emprego (por exemplo, atingir um nível de despesas de I&D de cerca de 3% do PIB, como previa a Estratégia de Lisboa).

Sendo este o modelo de governação económica existente na altura do desencadear da crise de 2007/2008, e sendo bastante consensual que não permitiu responder a uma crise desta dimensão e gravidade, coloca-se a questão das alternativas. As principais ideias que têm sido propostas são o avanço para uma união bancária e fiscal, a emissão de obrigações europeias/eurobonds, e, em termos mais abrangentes, a criação e um governo económico europeu. Sendo esta última a proposta mais ambiciosa e com mais impacto, vamos concentrar aí a análise. Antes de podermos avaliar os seu méritos ou deméritos, importa clarificar o que se deve entender por governo económico europeu. Um problema prévio reside no facto de o conceito ser de uso bastante variável e de contornos fluídos. Originalmente, o termo terá sido usado por François Mitterrand por volta de 1990, após a apresentação do Plano Delors, quando se iniciava a primeira fase do processo de criação do Euro. Na altura, era sobretudo uma espécie de slogan da política francesa para a União Europeia. Entretanto, ressurgiu no contexto da atual crise. Como assinalou Jamet[28], uma década volvida a chanceler alemã, Angela Merkel, passou a usá-lo agora moldado pela visão do seu governo quanto à forma de solucionar a crise nível europeu. O governo económico europeu passou, assim, a significar essencialmente “um reforço das regras de disciplina orçamental associado à colocação em prática de mecanismos de controlo mais automáticos”. Esta perspetiva inspirou, em larga medida, um conjunto de diretivas e regulamentos propostos pela Comissão e votados pelo Parlamento e Conselho. Entre outras, inclui-se aqui a criação do semestre europeu[29], o qual permite à Comissão e ao Conselho emitir opiniões sobre os projetos de orçamento nacionais. A ideia de governo económico europeu teve ainda outros desenvolvimentos. No verão de 2011, a Alemanha e a França juntaram uma dimensão claramente política ao debate. Propuseram a criação de “um Conselho de Chefes de Estado e de Governo da Zona Euro, o qual se reuniria duas vezes por ano, tendo à cabeça uma presidência estável por dois anos e meio”. Entrando também no debate, o ex-Presidente do BCE, Jean-Claude Trichet, referiu ser desejável um “governo confederal com um ministro das finanças confederal, que poderia assegurar o conjunto da governação na Zona Euro e impor esta ou aquela decisão”. Como seria concretizada esta ideia de governo económico europeu? Foram avançadas várias hipóteses. Uma delas seria a presidência da Comissão e do Conselho Europeu ser comum, sendo assegurada pela mesma personalidade. Outra consistiria no comissário europeu para os assuntos económicos e financeiros presidir também às reuniões do Conselho (de ministros) sobre economia e finanças (ECOFIN). O objetivo seria a União “exprimir-se a uma só voz nas instituições internacionais, como já faz na OMC através do comissário do comércio externo”.

Para Jamet, tais esquissos do que deveria ser um governo económico europeu têm dois defeitos principais: “não associar os parlamentos nacionais e não dotar este governo de meios de intervenção orçamental próprios”. Ainda segundo este, o primeiro defeito poderia ser ultrapassado se os “parlamentos nacionais e o Parlamento Europeu fossem mais associados ao semestre europeu e às decisões europeias em matéria orçamental”, por exemplo, através da “criação de uma conferência interparlamentar, associando representantes dos parlamentos nacionais e do Parlamento Europeu”, como propôs o conhecido deputado europeu pró-federalista, Alain Lamassoure[30]. Quanto ao segundo defeito, a solução passaria pelo “aumento das capacidades orçamentais europeias, que poderia tomar diversas formas: financiamento de projetos de investimento através de empréstimos europeus (project bonds), criação de um tesouro europeu e colocação em comum de uma parte da dívida dos Estados-membros (eurobonds) – provavelmente com um sistema de bonus-malus para recompensar os Estados mais virtuosos em matéria orçamental –, aumento do orçamento europeu, ou aumento das capacidades de empréstimo do Banco Europeu de Investimentos”. Apesar de a encarar favoravelmente, Jamet reconhece a grande dificuldade de por em prática esta solução. Nas suas próprias palavras, é na “frente do aumento das capacidades orçamentais europeias que os progressos serão, técnica e politicamente, mais difíceis de aceitar”. Faz todavia notar que a crise está, lentamente, a empurrar a União para “uma federalização crescente da política económica”, o que coloca problemas na medida em que isso está a ser feito “sem desenho prévio e sem legitimação política suficiente”.

 

  1. Conclusão: os riscos de uma solução de federalismo económico

Vamos agora analisar o mérito de uma solução de federalismo económico europeu do género das anteriormente descritas, a partir de uma perspetiva portuguesa. Para além do problema da legitimidade democrática que, por simplificação, não analisamos aqui, nela identificam-se, à partida, dois grandes riscos. O primeiro risco é intrinsecamente português e resulta da incapacidade mostrada pela economia de crescer significativamente na última década e meia. Recuando mais no tempo, importa lembrar que, na altura da adesão às Comunidades Europeias, em 1 de janeiro de 1986, a moeda portuguesa – o escudo –, tal como a peseta espanhola, ficaram fora do mecanismo cambial. Não foi por opção política de preservação de soberania cambial, mas pela fragilidade de ambas as economias. A adesão ao SME, efetuada em simultâneo com a da Espanha, só se concretizou mais tarde, em finais de 1990, iniciando-se na banda larga do sistema, mais flexível em termos de flutuações cambiais. No entanto, em Portugal, desde o arranque da UEM, traçou como objetivo participar no processo de criação do Euro. Os sucessivos governos portugueses configuraram-no como um “desígnio nacional”, acima das divisões políticas internas. O corolário desse esforço foi a economia portuguesa ter conseguido cumprir – pelo menos na aparência estatística –, a generalidade dos critérios de convergência nominal requeridos. Em parte por mérito próprio, em parte porque prevaleceram as já referidas interpretações flexíveis dos critérios de convergência nominal, Portugal foi membro fundador do Euro em 1999/2002. Ironicamente esse sucesso teve, e, provavelmente, vai continua a ter, um preço elevado do qual a sociedade portuguesa só agora começa a ter uma percepção clara.

Antes da crise de 2007/2008, o desempenho da economia portuguesa já era notoriamente fraco. As taxas de crescimento do PIB foram, em toda a última década e meia, abaixo da média europeia. Coincidência, ou não, a quebra dos ritmos de crescimento data de finais dos anos noventa, quando foram fixadas as taxas de câmbio no âmbito da 3ª fase da UEM. Em vez de convergir, o país afastou-se da média europeia do PIB per capita – o principal indicador do nível de vida das populações. A partir de 2002, coincidindo, aqui, com a introdução física do Euro, o problema do incumprimento do défice orçamental abaixo dos 3% tornou-se um problema crónico. Com o desencadear da crise económico-financeira de 2007/2008 a situação agravou-se drasticamente. O culminar foi a necessidade do Estado português ter de recorrer a um pedido de empréstimo internacional de 78 mil milhões de Euros em 2011.

 O segundo risco prende-se com um tema que oficialmente não existe na retórica europeia: as relações de poder dentro da União. Admitindo que o aprofundamento da integração europeia é, em si mesmo, benéfico, importa pensar como poderia ser desenhada e implementada uma solução federalizante. A essência da questão está, por isso, na configuração concreta. Vejamos o caso do governo económico europeu que é a ideia mais ambicioso e abrangente. Para além de não existir uma proposta oficial que delimite claramente a discussão, esta induz significados e atrativos diferentes, desde logo para os países do sul e do norte da União. Em países como Portugal (Grécia, Espanha, etc.), tradicionais beneficiários líquidos do orçamento europeu, evoca, na mente de políticos e cidadãos, transferências financeiras. Em quase trinta anos de integração europeia, Portugal nunca se viu na posição de contribuinte líquido, nem é crível, num futuro antecipável, que alguma vez ocupe essa posição. Por outras palavras, quando se fala neste tema, está implícita a ideia de uma União de transferências. Também lhe está subjacente a ideia de um acesso às condições de financiamento nos mercados internacionais em condições similares às da Alemanha, Holanda ou da França, por exemplo, através da emissão de obrigações europeias (eurobonds). Vista a questão sob o prisma dos países do núcleo duro da zona Euro (Alemanha mas também, em graus variáveis Áustria, Finlândia, Holanda, Luxemburgo e em parte da França), tradicionais contribuintes líquidos, um governo económico europeu tem outras tonalidades. Embora a linguagem usada seja similar, tem implícito um outro desenho concreto que não é o que alimenta o imaginário europeísta de solidariedade financeira dos países do sul. É, sobretudo, uma lógica de disciplina orçamental e das contas públicas que evoca agora essa ideia, seguindo um padrão próximo do já usado nesses países, desde logo no caso da Alemanha, como se pode ver pelas ideias já avançadas por Angela Merkel.

Um federalismo económico e orçamental não é, necessariamente, sinónimo de um reforço significativo das transferências financeiras da União Europeia, nem da possibilidade automática de emissão de obrigações europeias, as quais reduziriam os custos de financiamento nos mercados aos países do sul. Pode acabar por traduzir-se, como traço mais importante, na adopção compulsiva de políticas económicas por todos os membros da Zona Euro. Ou seja, embora trazendo, de facto, maior integração económica e política europeia, pode tornar-se num instrumento da visão dominante de um núcleo restrito de “potências diretoras”. Se nos lembrarmos dos exemplos do federalismo clássico atrás referidos, vemos um problema fundamental em qualquer aumento significativo da integração devido à caraterísticas da atual UE28. O aparecimento de um “momento hamiltoniano”[31] é altamente improvável no atual contexto. Há diferenças de dimensão enormes das unidades políticas acentuadas por uma substancial heterogeneidade económica. No extremo, em termos demográficos, estas oscilam entre os 81,5 milhões da Alemanha e os cerca de 0,5 milhões de Malta o que, dá uma disparidade populacional, nos extremos, de 163 vezes. Não é um caso excepcional. Nas unidades políticas seguintes, continuamos a encontrar enormes disparidades: entre a França com 64 milhões e o Luxemburgo com 0,6 milhões, a disparidade populacional é superior a 106 vezes. Entre a Itália, com 61 milhões de habitantes e Chipre com 0,75 milhões, a disparidade populacional é de mais de 81. Mesmo comparando as grandes unidades políticas da União, como a Alemanha e a França, com outras que poderão ser consideradas de média dimensão, como Portugal ou a República Checa (países com uma população similar em dimensão), as diferenças são de 7,7 vezes no caso da Alemanha e de 6 vezes da França.

A questão óbvia e incómoda é esta: será possível, face a esta (enorme) heterogeneidade das unidades políticas que compõem a União, evoluir para uma qualquer forma de federalismo baseado numa lógica essencialmente paritária e solidária, onde as grandes unidades políticas aceitariam comprimir o seu poder e partilhariam mais riqueza, através de mecanismos orçamentais europeus? A resposta é que é muito pouco plausível, pelo menos nas atuais circunstâncias, essa ocorrência. As unidades políticas mais pequenas, ou médias (Chipre, Irlanda, Grécia, Portugal, etc.), estão claramente fragilizadas pela crise e pelo seu (sobre)endividamento. Em termos de poder negocial necessário para obter um bom acordo sobre um governo económico europeu, ou outras soluções de federalismo económico, esta é claramente uma má altura. A enorme dependência de financiamento externo reduz quase a zero o já baixo poder de negociação e de influência que Portugal tem, mesmo em condições normais, no rumo das questões europeias.

Por tudo o que foi apontado, no atual contexto, existe o risco, que não é meramente teórico, de uma solução de federalismo económico e orçamental, se mostrar, na prática, próxima da lógica de um “diretório de potências”. Na realidade, existem sinais de que não é uma União mais paritária e de mais solidariedade que está emergir. Sob uma aparência de soluções europeístas-federalista, há o risco de surgir uma outra União. Nesta, um núcleo restrito de Estados, sob a fachada de um governo económico europeu ou outra, pode obter poderes institucionais e legitimidade para definir uma orientação compulsiva geral. Impõe-se, por isso, uma profunda discussão sobre tal opção política e não insistir em clichés vazios como a necessidade de “mais Europa”.

 

NOTAS

[1] LÉVI, Bernard-Henri – “Crise da zona euro: o federalismo ou a morte” in Le Point, 28 de setembro 2012. (Artigo traduzido para português pela Presseurop, acessível em http://www.presseurop.eu/pt/content/article/2777771-o-federalismo-ou-morte).

[2] SCHEFFER, Paul (2013), “Federalismo: por favor, nada de Estados Unidos da Europa” in NRC Handelsblad, 5 de dezembro 2013. (Artigo traduzido para português pela Presseurop, acessível em http://www.presseurop.eu/pt/content/article/4380781-por-favor-nada-de-estados-unidos-da-europa).

[3] A ortografia usada é a do novo acordo ortográfico. As citações e notas bibliográficas foram também adaptadas a essa ortografia. O texto corresponde essencialmente à comunicação efetuada no âmbito da conferência internacional: “40 Anos Após o 25 de Abril. A Crise das Democracias Liberais”, que decorreu no ISCTE-IUL, em Lisboa, entre 8 e 10 de maio de 2014. O Autor agradece os comentários e sugestões da arbitragem científica, os quais contribuíram para a valorização da versão final do artigo.

[4] Ver MAJONE, Giandomenico – Dilemmas of European Integration. The Ambiguities & Pitfalls of Integration by Stealth, Oxford, Oxford University Press, 2005; MAJONE, Giandomenico – “The ‘Referendum Threat‘, the Rationally Ignorant Voter, and the Political Culture of the EU” in RECON Online Working Paper 2009/04, Acessível em http://www.reconproject.eu/projectweb/portalproject/RECONWorkingPapers2009.html.

[5] Utilizamos aqui análises sobre o federalismo, numa vertente político e/ou económica, já efetuada por nós anteriormente. Ver FERNANDES, José Pedro Teixeira – Elementos de Economia Política Internacional, 2.ª ed., Coimbra, Almedina; FERNANDES, José Pedro Teixeira – A Europa em Crise, Porto, QuidNovi, 2012.

[6] DIMITRIOS, Kamis e WAYNE, Norman (eds.), Theories of Federalism: A Reader, Nova Iorque, Palgrave Macmillan, 2005.

[7] BURGESS, Michael – Comparative Federalism. Theory and Practice, Londres-Nova Iorque, Routledge, 2006.

[8] Há um importante acervo de literatura sobre o federalismo que aqui não analisamos diretamente dado exorbitar do limitado propósito deste artigo. Entre outros, destacamos os trabalhos Paul REUTER e Jean COMBACAU, Institutions et Relations Internationales, Paris, P.U.F., 1980, relevante, por exemplo, para a distinção conceptual entre federalismo interno e federalismo internacional. Ainda a nível conceptual, a obra coletiva sob a direção de Denis de ROUGEMONT – Dictionnaire international du fédéralisme, Bruxelles, Bruylant, 1994, é também uma mais-valia numa análise conceptual aprofundada. Por sua vez, o artigo de John PINDER sobre o conceito de neofederalismo, intitulado “European Community and Nation State: A Case for a Neo-federalism?” in International Affairs, vol. 62 (1), Winter, 1985-1986, pp. 41-54, é relevante para a discussão da atual experiência de integração europeia.

[9] FØLLESDAL, Andreas – “Federalism” in Stanford Encyclopedia of Philosophy, acessível em http://plato.stanford.edu/entries/federalism/

[10] ZIPPELIUS, Reinhold – Teoria Geral do Estado, trad. port, 3.ª ed. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.1997.

[11] DUVERGER, Maurice A Europa dos Cidadãos, trad. port, Porto, Edições Asa. 1994, p. 47.

[12] DUVERGER, Maurice idem, pp. 46-47.

[13] Como explica Armand-Denis SCHOR Euro O que é a moeda única?, trad. port., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1996, p. 22, a senhoriagem refere-se à “diferença que existe entre o valor de uma moeda e o seu custo de produção. No passado, as casas da moeda transformavam os lingotes em moedas. O peso do metal em forma de moedas era inferior ao dos lingotes. A diferença cobria o custo de produção e o direito exigido pelo príncipe. Por extensão, qualquer vantagem ligada ao poder monetário pode chamar-se uma taxa de senhoriagem.”

[14] AMARAL, João Ferreira “Euro: um futuro incerto” in Relações Internacionais nº 27, 2010, p. 98.

[15] STEIN, Eric “Lawyers, Judges and the Making of a Transnational Constitution” in The American Journal of International Law, Vol. 75, nº 1, 1981, pp. 1-27.

[16] MAJONE, Giandomenico – idem.

[17] MAJONE, Giandomenico – “The ‘Referendum Threat‘, the Rationally Ignorant Voter, and the Political Culture of the EU” in RECON Online Working Paper 2009/04.

[18] Sobre este aspeto, seguimos também de perto a análise efetuada em anteriores trabalhos. Ver FERNANDES, José Pedro Teixeira – idem.

[19] “Club Med” era a expressão pejorativa tipicamente usada na década de noventa para designar as economias mais frágeis e indisciplinadas do Sul da Europa, ou seja, Portugal, Espanha e Grécia, bem como a Itália.

[20] Sob o conceito de zona monetária ótima ver, entre outros, SCHOR, Armand-Denis – idem e AMARAL, João Ferreira – idem.

[21] Paul KRUGMAN – “Revenge of the Optimum Currency Area” in The New York Times (The Opinion pages, 24 de junho 2012), Acessível em http://krugman.blogs.nytimes.com/2012/06/24/revenge-of-the-optimum-currency-area/

[22] PIIGS do acrónimo pejorativo em inglês (Portugal, Ireland, Italy, Greece, Spain).

[23] AMARAL, João Ferreira – ibidem, pp. 97-98.

[24] AMARAL, João Ferreira – ibidem, p. 98.

[25] JAMET, Jean-François – L’Europe peut-elle se passer d’un gouvernement économique?, 2.ª ed., Paris, La Documentation Française, 2012; JAMET, Jean-François – “Gouvernement économique européen: la question n’est plus quand mais comment” in Question d’ Europe nº 216, 10 de outubro 2011, Acessível em http://www.robert-schuman.eu/fr/doc/questions-d-europe/qe-216-fr.pdf

[26] JAMET, Jean-François – “Gouvernement économique européen: la question n’est plus quand mais comment” in Question d’ Europe nº 216, 10 de outubro 2011.

[27] JAMET, Jean-François – idem.

[28] JAMET, Jean-François – ibidem.

[29] O semestre europeu é “um ciclo de coordenação das políticas económicas e orçamentais na União Europeia”, centrado primeiros seis meses de cada ano. A sua finalidade é que, durante esses primeiros meses do ano, os Estados-membros “procedem ao alinhamento das políticas orçamentais e económicas nacionais pelos objetivos e regras acordados a nível da UE”. Cfr. Conselho da União Europeia, O que é o Semestre Europeu?, Acessível em http://www.consilium.europa.eu/special-reports/european-semester?lang=pt.

[30] Sobre as posições federalistas de Alain LAMASSOURE ver Union of European Federalists, Alain Lamassoure, a case for an optimistic federalism, 12 de julho 2011, Acessível em http://www.federalists.eu/uef/news/alain-lamassoure-a-case-for-an-optimistic-federalism/.

[31] Entre nós e por analogia com o processo federal dos EUA em 1787, Luís LOBO-FERNANDES – “Pragmatismo e reforma numa UE mais coesa: a propósito da união bancária”, Occasional Paper nº 58, Lisboa, IPRI, sustenta a necessidade de um “momento hamiltoniano” para a UE. “Temos defendido que a União Europeia exige uma solução similar àquela que Hamilton propôs, e que tivemos ensejo de evidenciar em termos da necessidade de um momento hamiltoniano. A nova autoridade federal, então criada, assumiu as dívidas dos Estados da ex-Confederação, emitiu títulos de dívida pública suportados por impostos diretos, e imprimiu uma moeda própria. O resultado prático ajudou a transformar a jovem nação numa potência económica”. Pelas razões apontadas no texto, embora sedutora intelectualmente, parece-nos uma analogia inverosímil na atual situação europeia.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, “Federalismo: solução para a crise na União Europeia? Uma perspetiva portuguesa” artigo originalmente publicado in Relações Internacionais nº 44, Dezembro (2014): 75-91

domínio público Imagem: fotos (domínio público / Wikipedia) dos Presidentes da Comissão Europeia no edifício Berlaymont Bruxelas (versão a preto e branco do autor)