Este acontecimento, em si mesmo, traz um outro choque para a França. As ideologias políticas seculares e o conceito de esquerda e direita a que estamos habituados nas democracias ocidentais têm uma forte ligação à história do país e à sua cultura política. A Revolução Francesa de 1789 foi um momento chave no seu aparecimento e configuração.
1. Nesta altura, é ainda uma incógnita a dimensão das repercussões na sociedade francesa do atentado terrorista ao Charlie Hebdo, ocorrido em Paris, a 7/1. Seja qual for dimensão e forma que as repercussões adquirirem, vão ocorrer muito prováveis “ondas de choque” ao nível político, de segurança e de relações na sociedade. O atentado visou atingir o cerne dos valores que se alicerça a República Francesa – a liberdade de expressão incluindo o pluralismo, a democracia humanista e a “laïcité” (laicidade, laicismo). O facto de esse ataque ser feito a partir do interior da sociedade francesa expõe, por isso, uma realidade particularmente delicada. Mesmo nas interpretações mais benignas e ponderadas, é impossível não reconhecer que estamos perante uma situação política e socialmente complexa, tendencialmente traumática e de consequências que podem ser perigosas. Vejamos por que motivos isso ocorre.
2. O atentado, ao que tudo indica perpetrado pelos irmãos Kouachi de ascendência argelina, tornou evidente a não atração dos valores franceses da República – ou até a sua rejeição frontal –, por partes minoritárias mas ainda assim significativas da sua população. Nominalmente são cidadãos franceses como quaisquer outros. Todavia, para além dos símbolos formais que os ligam à República (bilhete de identidade e passaporte) não há identificação com os seus valores nucleares. As explicações para isso são muitas e sujeitas a matizes ideológicas, não cabendo aqui analisá-las. É observável que esta “desidentificação” não é um caso isolado, mas o culminar de uma tendência cada vez mais visível. Num outro registo, os acontecimentos de 2005 nos subúrbios de Paris, mostraram essa fractura da sociedade francesa, que pode ficar exposta a qualquer altura por um (im)previsível acontecimento detonador.
3. Para percebermos como tudo isto pode ser traumático para a França, importa lembrar que tem uma enorme tradição, e vocação, como centro difusor de ideias de vanguarda e de progresso. Foi em França que primeiro surgiu a ideia moderna de cidadania (a “citoyenneté”), com direitos e deveres, fazendo parte da nação. Isto por oposição ao absolutismo do Antigo Regime que era a tradição europeia da época, ao qual esta concepção revolucionária era absolutamente estranha. A cultura política francesa está imbuída, pelo menos desde o século das Luzes e da Revolução Francesa de 1789, de ideias universalistas. Por outras palavras, até um passado relativamente recente parecia inquestionável que a cultura francesa e os valores da República eram um modelo que orgulhava os franceses. Originava, também, atração no exterior e seduzi-a os que, por uma ou outra razão, procuravam a França para viver.
4. O atentado ao Charlie Hebdo representa, no mundo real e simbólico, um ataque aos valores nucleares da República Francesa. Não foi só liberdade de opinião, mas também um modo de vida pluralista e tolerante, bem como a “laïcité” que foram atacadas pelos perpetradores. “Nos vingamos o Profeta”, terão gritado ao cometerem a sua chacina em nome de uma ideologia sacralizada, vista como superior a qualquer outro valor da República Francesa, incluindo a vida humana. Importa aqui clarificar um aspecto. Trata-se de um ato de terror, o qual, sob uma fraseologia religiosa, esconde uma atuação ideológica própria ao Islamismo-jihadista, entendido como ideologia política totalitária de raiz não ocidental, que germina, se apropria e (re)interpreta o Islão. (Sobre as suas caraterísticas ver “O Islamismo-jihadista como ideologia totalitária”, Público, 27/09/2014).
5. Este acontecimento, em si mesmo, traz um outro choque para a França. As ideologias políticas seculares e o conceito de esquerda e direita a que estamos habituados nas democracias ocidentais têm uma forte ligação à história do país e à sua cultura política. A Revolução Francesa de 1789 foi um momento chave no seu aparecimento e configuração. O posicionamento das forças políticas na assembleia constituinte revolucionária marcou profundamente a linguagem política francesa e ocidental. Por isso, uma ideologia política não ocidental, não secular, não derivada desse momento fundador revolucionário de 1789, como o Islamismo-jihadista, a qual atrai cidadãos franceses dispostos a lutar por ela, fanaticamente, até às últimas consequências, em rejeição dos valores nucleares da República, é um fenómeno estranho e perturbador. Deixa confusa toda uma cultura política moderna de separação entre o religioso e o político que se sedimentou nos últimos duzentos anos.
6. Há uma lição que a França e as democracias ocidentais, bem como todas as sociedades livres, abertas, democráticas e respeitadoras dos direitos humanos no mundo devem tirar destes acontecimentos. Os seus valores não podem nunca ser dados como adquiridos. Os inimigos reemergem, em cada geração, sob outras formas, algumas mais familiares outras estranhas. No passado do século XX foram os totalitarismos nazi e estalinista os seus piores inimigos. Hoje é o totalitarismo Islamista-jihadista. Se as gerações atuais sentem que não têm uma causa onde dar o melhor de si, aqui têm uma pela qual vale a pena lutar. Essa luta, que é, simultaneamente, intelectual e política, não pode é ser feita através de vias que, sob uma outra forma – por exemplo através da reintrodução da pena de morte, ou da destruição da tolerância face à diferença cultural –, limitam a liberdade, a democracia, o pluralismo e os direitos humanos. Ou seja, tudo aquilo sobre o qual foi construída a forma de estar da qual a França se orgulha e de que somos herdeiros. Fazer isso é cair num retrocesso civilizacional.
© José Pedro Teixeira Fernandes. Artigo originalmente publicado no Público, 9/01/2015
Imagem: foto (domínio público / Wikipédia), quadro de Eugène Delacroix, La liberté guidantl le peuple, 1830 (museu do Louvre, Paris)