Os líderes europeus optaram pelo caminho que parecia mais fácil. Preferiram esquecer a opinião pública, aparentemente domesticável, ou, pelo menos, contornável, como dirão os mais cínicos, a enfrentar a fúria da Turquia e explicar-lhe que não havia condições para a adesão.
1. Divergentes interpretações têm sido feitas sobre as razões dos resultado negativos dos referendos de 29 de Maio (França) e 1 de Junho (Holanda). Naturalmente que é difícil explicar, com isenção e rigor, as razões destas duas coligações negativas que recusaram ao Tratado Constitucional Europeu. Tornou-se evidente, pelas sondagens e inquéritos de opinião, que as razões dos eleitores franceses não foram exactamente as mesmas dos eleitores holandeses. Houve também grande heterogeneidade das motivações que alimentaram a dinâmica vitoriosa do “não”, em ambos os países, e que até originaram insólitas coligações à esquerda e à direita do espectro político, quando normalmente se opõem em (quase) tudo. O que parece ter-se tornado bastante evidente é que uma parte das motivações que basearam a recusa do tratado pelos eleitores vai para além do texto em si mesmo. Teve a ver com razões de política interna, como o descontentamento face aos governos nacionais. Teve ainda a ver com questões europeias que não estão directamente relacionadas com o texto do tratado, como, por exemplo, a apreensão face às consequências dos alargamentos anteriores e futuros da UE, sendo o caso mais evidente o da adesão da Turquia.
2. Para compreendermos a importância do factor Turquia no “não” francês e holandês, vale a pena voltar a finais de 2004, na altura da Conselho Europeu de 16 e 17 de Dezembro que tomou a decisão de abrir as negociações de adesão com esse país, que se deverão iniciar a 3 de Outubro. Já na altura, o entusiasmo, pelo menos na aparência, das elites políticas europeias e da generalidade dos opinion makers dos media contrastava, flagrantemente, com o cepticismo das opiniões públicas, especialmente nos países onde a Turquia não é uma simples abstracção longínqua, exótica e mal conhecida, como em Portugal, mas uma realidade palpável e conhecida sobretudo pelos contactos históricos (Áustria, Polónia, França) e pela emigração (Alemanha, França, Holanda). Conforme foi evidenciado por diversas sondagens que foram publicadas em jornais franceses (Le Monde, Figaro), existia uma clara rejeição da adesão da Turquia à UE em países como a França, a Alemanha, a Holanda, a Áustria e a Polónia, entre outros. Este era já um dado politicamente significativo e que deveria ter sido objecto de uma reflexão séria e profunda, ponderando todas as consequências dessa decisão. Mas não foi.
3. Os líderes europeus optaram pelo caminho que parecia mais fácil. Preferiram esquecer a opinião pública europeia, aparentemente domesticável, ou, pelo menos, contornável, como dirão os mais cínicos, a enfrentar a fúria da Turquia e explicar-lhe abertamente que não havia condições para adesão. O arquétipo dessa “fuga para a frente” foi Chirac, que, contra a opinião pública do seu país, e até do seu próprio partido, votou favoravelmente essa decisão (quando, nos anos 80, tinha defendido a não adesão de Portugal e Espanha, por considerar que não tinham condições de entrar nas Comunidades…). Animados por este consenso ilusório, e iludidos pela “claque de apoio” da opinião publicada, os líderes europeus acharam por bem fazer ainda o auto-elogio da sua decisão, afirmando que esta “ficaria na História” e que até era a melhor prova como não existia “conflito de civilizações” entre o Ocidente e o islão (ingenuidade ou cinismo?). Que esta decisão vai ficar na História não parece haver muitas dúvidas, mas talvez não tanto pelas razões que estes pensavam e gostariam. Tudo indica que as gerações futuras vão olhar para ela como uma decisão política pouco sensata, e que, entre outras consequências que ainda falta discernir, ajudou a traçar o fim do Tratado Constitucional Europeu.
4. Por último, há mais uma nota curiosa em tudo isto, que vale a pena assinalar. O antigo Presidente da República francesa Valéry Giscard d”Estaing, que presidiu aos trabalhos do Tratado Constitucional Europeu, afirmou, numa conhecida polémica entrevista, que a adesão da Turquia podia levar a UE à sua destruição. A ironia é que o feeling de Giscard d”Estaing está a confirmar-se, embora não exactamente da forma que este previa: de facto, a perspectiva de adesão da Turquia está a ajudar a “destruir”, não a UE (pelo menos para já…), mas a sua “criação”, que foi o Tratado Constitucional Europeu.
© José Pedro Teixeira Fernandes. Artigo originalmente publicado no Público, 17/06/2005. Última revisão 11/06/2015
© Imagem: cartoon de Mayk, “Turquia: a impossível adesão” (originalmente publicado no Cumhuriyet e reproduzido no Vox Europe, 2013)