Se as categorias e os valores sociais são o resultado de uma actividade institutiva, será necessário estudar não apenas os mecanismos e as modalidades desta última, mas igualmente as condições concretas pelas quais esta é feita, pelas relações de força que desenha, os sistemas de interesses que ela serve e os grupos que ele institui, ou, pelo contrário, que ele marginaliza, ou até neutraliza. O conhecimento não surge da relação de um enunciado com um estado do mundo, mas do facto de impor como objectiva e neutra o que não é mais do que uma versão da realidade, uma perspectiva entre outras.
Andrea SEMPRINI[1]
1. À semelhança de outras disciplinas das Ciências Sociais e Humanas, as Relações Internacionais conhecem actualmente uma enorme diversidade teórica e até epistemológica[2]. A relativa homogeneidade teórica de um passado não muito distante, onde o mainstream era constituído pelas abordagens realistas/neo-realistas, com algum peso das abordagens liberais/neo-liberais – sobretudo na teorização norte-americana da disciplina –, deu lugar, desde o final dos anos 80 do século passado, a um conjunto de novas abordagens, tais como os construtivistas, as feministas, os pós-estruturalistas/pós-modernistas, os estudos críticos, etc., pulverizando, desta forma, o panorama teórico. Esta «viragem pós-moderna»[3] da disciplina, normalmente identificada na Teoria das Relações Internacionais[4] como resultante do debate pós-positivista[5], é essencialmente uma réplica, como é típico das áreas pluridiscilinares, de idênticos desenvolvimentos noutras disciplinas, neste caso da Antropologia Cultural, da Sociologia do Desenvolvimento e da Transformação Social, dos Estudos Pós-Coloniais e dos Estudos Culturais – agora erigidas a novo modelo de «perfeição», em detrimento da «velho» modelo das nobelizáveis Ciências Naturais e da «rainha das Ciências Sociais» (a Economia). Quer dizer, as Relações Internacionais passaram de um processo de imitatio scientia para um processo de imitatio post-modernum, replicando na disciplina as tendências estéticas, intelectuais e ideológicas das Artes e Humanidades.
Paradoxalmente, ou talvez não pelas razões que veremos mais à frente, a frequentemente confusa diversidade teórica que resultou deste processo «original» de imitatio post-modernum tende a ser vista de forma positiva e enaltecida como «inovadora», «enriquecedora», «abrindo novas perspectivas» e possibilidades de investigação «radical», etc. Isto por contraposição com a «velha» abordagem monolítica do realismo/neo-realismo, qualificada como «estatocêntrica», preocupada com os «antigos» conceitos de «soberania» e de «nação», epistemologicamente fundada numa concepção «realista» de Ciência ultrapassada e, em termos ideológicos, «conservadora» da realidade social-internacional. Quer dizer, no argumentário típico da viragem pós-moderna encontram-se, entre outras, a conhecida crítica ideológica ao positivismo científico acusado de «mascarar» (a expressão original é de Nietzsche no já longínquo século XIX), a sua ideologia e de legitimar o statu quo internacional, sob uma capa de «neutralidade» e de conhecimento «científico». Esta crítica levanta uma questão de vulto, normalmente evitada no âmbito da Teoria das Relações Internacionais, que é a da relação entre Ciência, conhecimento e ideologia. E, no caso das abordagens pós-positivistas (construtivistas, feministas, pós-estruturalistas/pós-modernistas, estudos críticos, etc.), levanta também a questão de saber qual é a sua ideologia alternativa ao («conservadorismo») da corrente realista e em que pressupostos epistemológicos assenta. Ambas as questões podem ser analisadas de uma forma interessante a partir de um pequeno estudo de caso comparando a ideologia nacionalista, que tradicionalmente se articula com a visão realista/neo-realista das relações internacionais, com a nova ideologia multiculturalista[6], que tende a surgir ligada às abordagens pós-positivistas, as quais rejeitam o realismo e pretendem promover a construção de entidades pós-nacionais (e pós-estaduais/pós-soberanas). Antes de o efectuarmos, vamos determo-nos um pouco sobre o conceito de ideologia.
2. É ao filósofo francês Antoine Destutt de Tracy que se deve o neologismo «ideologia» (cunhado a partir das palavras gregas eidos e logos), em finais do século XVIII (1795), em plena Revolução Francesa, com intuito de designar uma nova ciência empírica das ideias por oposição à antiga metafísica[7]. Sendo este um conceito evolutivo[8] e complexo, por simplificação os seu múltiplos significados no âmbito da Filosofia Política e Ciência Política/Relações Internacionais podem ser apresentados em duas grandes acepções: i) como um conjunto razoavelmente coerente e articulado de ideias – ou seja, uma espécie de doutrina –, que pretende fornecer uma visão abrangente, e tendencialmente completa, sobre o ser humano e a sociedade, retirando daí um esquema de acção política de transformação da sociedade; ii) um conjunto de valores com a função social de legitimar e consolidar o statu quo, representando ordem e as estruturas sociais e económicas existentes num determinado momento como sendo resultado da natureza humana (esta última acepção do conceito de ideologia é a mais próxima do pensamento marxista clássico). Note-se que em qualquer destas acepções a ideologia tem sempre, explícita ou implicitamente, uma importante função legitimadora que pode ser: i) do poder instituído; ii) dos grupos e movimentos que aspiram à transformação social e política.
Até há algum tempo atrás, uma dificuldade típica com que se confrontava quem quisesse analisar com alguma imparcialidade um conflito internacional (por exemplo, o conflito israelo-palestiniano, o conflito entre a Índia e o Paquistão sobre Caxemira, etc.), era o problema de manter equidistância face à ideologia nacionalista que enviesava a objectividade das versões das partes em conflito. Hoje, para além desta dificuldade que continua a persistir, surgiu uma nova que é o dos trabalhos, normalmente de perfil académico, imbuídos de uma ideologia multiculturalista[9], que já começam a constituir um acervo considerável. Esta ideologia, que resulta da «viragem pós-moderna» das Ciências Sociais e Humanas, tem as suas raízes na segunda metade do século passado e baseia-se, em termos ontológicos e epistemológicos, uma atitude de soupçon (suspeita), face ao que chama as «grandes narrativas» da cultura ocidental – o nacionalismo é uma delas – denunciando o perigo de visões essencialistas e a necessidade da sua desconstrução (Paul de Man, Jacques Derrida, etc.), como se estivéssemos perante uma narrativa literária[10]. Ou seja, transpondo-a para o caso aqui em análise, sustenta que a Nação[11] (e consequentemente o Estado-Nação), não é uma realidade primordial ou «essencial», mas uma mera construção social (uma «comunidade imaginada», na expressão boa ressonância construtivista, celebrizada nas Ciências Sociais por Benedict Anderson[12] que, naturalmente, pode ser desconstruída). Para além do mais, e segundo esta mesma visão, a construção social da Nação e os movimentos nacionalistas a que esta deu origem, estão na génese dos maiores dramas humanos do século XX. Assim, impõe-se a criação de novas identidades pós-nacionais que a superem. Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, esta não é mais do que uma «narrativa» pós-moderna das Relações Internacionais, onde as suas propostas não resultam de uma solução neutral ou «científica», como assepticamente é muitas vezes apresentada em trabalhos e publicações académicas, mas de uma concepção ideológica imbuída do seu próprio esquema de acção política (ver quadro).
A ideologia nacionalista e a ideologia multiculturalista
Ideologia nacionalista | Ideologia multiculturalista | |
Comunidade tipo-ideal a construir («comunidade imaginada» pela ideologia) | Nação(criada pela uniformização cultural e linguística da população – que poderá ser também étnica e/ou religiosa –, fixada num território histórico delimitado por fronteiras) | Entidade pós-nacional(criada pela dissolução da Nação e diluição da soberania do Estado através da promoção da diversidade cultural e linguística – que poderá ser também étnica e/ou religiosa – e da abertura de fronteiras) |
Eventos míticos legitimadores | Revolução Francesa (a «grande nação», a citoyenneté) e movimentos de independência nacional, para a criação de um Estado-Nação; heróis nacionais no passado medieval e na Antiguidade (por ex. Joana d´ Arc em França, a Padeira de Aljubarrota em Portugal, etc.) | Impérios «multiculturais» pré-nacionais; Andalus como «convivência lado a lado» de cristãos, judeus e muçulmanos; millets otomanos e umma islâmica; heróis multiculturais do passado pré-nacional (por ex. Ibn Rushd/Averróis do Al-Andalus etc.) |
Disciplinas de referência | HistóriaLiteratura («grandes clássicos») | Ciências Sociais (Antropologia e Sociologia) e Estudos CulturaisLiteratura («pós-colonial») |
Autores de referência | Leopold von Ranke, Johann Gottliebe Fichte, Ernest Renan, Jules Michelet, Guiseppe Mazzini, etc. | Clifford Geertz, Michel Foucault, Edward Said, Benedict Anderson, Bhikhu Parekh, Gayatri Spivak, etc. |
Metodologia | Organização e interpretação do passado pré-nacional à luz da ideologia nacionalista (construção de uma narrativa nacional) | Desconstrução e (re)interpretação do passado nacional à luz da ideologia multiculturalista (construção de uma nova narrativa pós-nacional) |
Atitude epistemológica | Moderna e científica (pretende imitar o modelo das Ciências Naturais); aceita a separação entre factos e interpretações e entre conhecimento e ideologia | Pós-positivista (pós-moderna) e crítica da Ciência (ou até anti-Ciência); contesta a separação entre factos e interpretações e entre conhecimento e ideologia; para o exterior da academia continua a apresentar-se como «científica», procurando beneficiar do poder e prestígio e social que confere esta categorização |
Atitude face ao «outro» | A nossa cultura é superior à do «outro»; a nossa identidade nacional tem um carácter único; moto: my country, right or wrong | Todas as culturas são boas; a diferença do «outro» tem de ser aceite por nós; moto: celebrate diversity |
Tipo de indivíduo pretendido | Nacionalista/patriota | Pós-nacional/«multiculti» |
Tabus que garantem a conformidade de pensamento e comportamento (mecanismos de censura social) | Sacralização da Nação; crítica à Nação e à identidade nacional estigmatizada como atentatória aos valores públicos; eventual criminalização da desconformidade de pensamento e comportamento. | Sacralização da diversidade cultural; crítica à identidade do «outro» (sobretudo das culturas não ocidentais) estigmatizada como atentatória aos valores públicos; eventual criminalização da desconformidade de pensamento e comportamento. |
Fonte: Quadro elaborado pelo autor
Onde se alicerça, em termos espistemológicos, esta «narrativa» pós-moderna que difunde a ideologia do multiculturalismo (e pretende substituir a «narrativa» nacionalista moderna, criando novas «comunidade imaginadas» pós-nacionais)? Como explica o sociólogo Andrea Semprini, «para além do seu lado ‘militante‘, o multiculturalismo é um poderoso movimento de ideias, alimentado por um corpo teórico que lhe serve de base conceptual e de legitimação intelectual». Este corpus pode ser designado como «epistemologia multicultural», ainda que esta expressão sugira «uma homogeneidade e uma coerência que não correspondem a uma fragmentação das posições teóricas que a compõem». Em termos históricos, esta posição nasceu da «reviravolta epistemológica que ganhou forma na Europa a partir dos anos 1920, como reacção ao positivismo, ao racionalismo e aos determinismos que tinham dominado a cena intelectual durante quase um século». Esta deveu-se aos trabalhos de «Mead e Husserl na Filosofia, de Saussure e Whorf na Linguística, de Schutz na Sociologia, e de Boas e Kroeber na Antropologia, os quais ‘abalaram o pensamento positivo‘». Por sua vez prosseguiu com a «crítica radical» feita no pós-guerra «graças à vaga estruturalista» (Barthes, Greimas, Jakobson, Lacan, Lévi-Strauss, Foucault), mas também a figuras de «horizontes teóricos muito diferentes: Merleau-Ponty para a Fenomenologia, Fayerabend e Khun para a Epistemologia, Rorty e o segundo Wittgentsein para a Filosofia da Linguagem, Eco e Ricoeur para a Semiótica, e Sacks para a Sociologia». Nos últimos vinte anos «esta renovação epistemológica prosseguiu ainda o seu desenvolvimento em direcções mais dispersas. Uma atenção acrescida foi dada aos fenómenos cognitivos (Cicourel, Geertz), ao papel que o sentido e as interpretações jogam na produção da ‘realidade‘ e dos valores sociais (Baudrillard, Garfinkel) e à critica de toda a possibilidade de conhecimento objectivada do mundo (Derrida, Lyotard, Vattimo)»[13]. Ainda segundo Andrea Semprini, de uma maneira esquemática podem-se identificar quatro aspectos principais da «epistemologia multicultural», os quais podem ser apresentados da seguinte maneira:
(i) «A realidade é uma construção. A realidade social não tem existência independente dos actores que a moldam, das teorias que lhe dão forma e da linguagem que permite conceptualizá-la e comunicá-la. Toda a objectividade é uma objectividade «sob uma descrição» que fornece apenas uma versão mais ou menos eficiente da realidade.
(ii) As interpretações são subjectivas. Se a realidade não tem objectividade, ela reduz-se a uma série de enunciados em que o sentido e o estatuto referencial são largamente submetidos às condições de enunciação, à identidade e à posição daquele que emitiu os enunciados e daquele que os recebe. A interpretação é por essência um acto individual. Se é colectivo, está de qualquer maneira enraizado num horizonte interpretativo e condicionado pelas competências de recepção que orientam a interpretação.
(iii) Os valores são relativos. As principais consequências do carácter radicalmente subjectivo e enunciativo da experiência é a impossibilidade de fixar um plano de objectividade que escaparia a este constrangimento. A verdade só pode ser relativa, enraizada numa história pessoal ou em convenções colectivas. A constatação da relatividade da verdade obriga a relativizar todo o julgamento de valor, que não pode visar a adequação com uma objectividade que se oculta. O julgamento apenas adquire sentido no interior de uma configuração específica, mediatizada pela língua e inserido no interior de uma formação discursiva.
(iv) O conhecimento é um facto político. Se as categorias e os valores sociais são o resultado de uma actividade institutiva, será necessário estudar não apenas os mecanismos e as modalidades desta última, mas igualmente as condições concretas pelas quais esta é feita, pelas relações de força que desenha, os sistemas de interesses que ela serve e os grupos que ele institui, ou, pelo contrário, que ele marginaliza, ou até neutraliza. O conhecimento não surge da relação de um enunciado com um estado do mundo, mas do facto de impor como objectiva e neutra o que não é mais do que uma versão da realidade, uma perspectiva entre outras»[14].
3. Uma crítica particularmente demolidora às concepções da «epistemologia multiculturalista», do género das apresentadas por Andrea Semprini – que, grosso modo, são as mesmas que sustentam as abordagens pós-positivistas das Relações Internacionais –, foi feita por John Searle[15], o conhecido filósofo e epistemólogo da Universidade de Berkeley, nos EUA. Segundo este, as razões do ataque «aos cânones de objectividade, justificação, cuidada atenção aos factos e, acima de tudo, verdade», ou seja, do ataque à racionalidade e ao realismo (entendido não exactamente no sentido da corrente teórica das Relações Internacionais, mas no sentido filosófico, como critério de verdade e validação do conhecimento, que valida a teoria em função da sua conformidade com a realidade exterior ao sujeito), baseiam-se num «propósito de atingir objectivos sociais mais importantes»:
Apesar da sua diversidade, a maior parte das pessoas que colocam em causa a concepção tradicional de ensino percebem correctamente que se forem forçadas a conduzir uma vida académica de acordo com um conjunto de regras determinadas por constrangimentos de verdade, objectividade, clareza, racionalidade, lógica e a existência bruta do mundo real, a sua tarefa torna-se mais difícil, talvez até impossível. Por exemplo, se pensarmos que o objectivo de ensinar a história do passado é alcançar a transformação política e social do presente, os cânones tradicionais de idoneidade histórica – os cânones de objectividade, justificação, cuidada atenção aos factos e, acima de tudo, verdade – podem por vezes parecer um conjunto desnecessário e maçador de obstáculos ao propósito de atingir objectivos sociais mais importantes[16].
Este critica também as concepções anti-realistas e anti-racionalistas (ou seja, pós-positivistas na terminologia usual das Relações Internacionais) que actualmente, pela sua influência, tendem a ser o mainstream das diferentes disciplinas académicas na área das Ciências Sociais e Humanas nas quais, naturalmente, se incluem as Relações Internacionais:
[Estas] concepções começam a afectar tanto o conteúdo como o estilo do ensino superior. Nos casos em que o objectivo é usar o ensino superior como dispositivo de transformação política, a justificação habitual é que o ensino superior sempre foi, em qualquer caso, político; e uma vez que é uma fantasia e uma fraude a pretensão, por parte das universidades, de transmitir aos estudantes um conjunto de verdades objectivas sobre uma realidade cuja existência é independente, devemos converter o ensino superior num dispositivo para alcançar objectivos sociais e políticos benéficos, em vez de prejudiciais[17].
E repare-se no seu comentário cáustico sobre o uso dos curricula académicos «como dispositivo de transformação» que, segundo este, de forma subtil faz passar uma disciplina de «um domínio a estudar» para «uma causa a promover»:
Deste ponto de vista, um dos propósitos do ensino já não é, com antes se pensava, permitir que o estudante se torne membro de uma cultura humana, intelectual e universal mais ampla; ao invés o novo objectivo é reforçar o seu orgulho como membro de um subgrupo particular e a sua auto-identificação com esse grupo […] A conexão entre o ataque desferido contra a racionalidade e o realismo e a reforma curricular nem sempre é óbvia, mas podemos encontrá-la se quisermos olhar com suficiente atenção. Por exemplo, muitas das propostas multiculturalistas a favor da reforma curricular envolvem uma redefinição subtil da ideia de disciplina académica, passando da ideia de um domínio a estudar para a ideia de uma causa a promover. [18]
Independentemente da concordância ou discordância face à argumentação e críticas que John Searle dirige à «epistemologia do multiculturalismo» e, por essa via, às abordagens pós-positivistas (naturalmente que esta poderá ser também criticada e sujeita a uma contra-argumentação com o intuito de a tentar refutar) é inevitável reconhecer que este coloca o dedo na ferida, particularmente num aspecto sensível: há uma questão ideológica e política em aberto que as abordagens pós-modernistas ou pós-positivistas, instaladas como mainstream de várias disciplinas académicas, ocultam sob uma fraseologia e jargão técnico e «científico». Se a abordagem do realismo/neo-realismo na Teoria das Relações Internacionais não é neutra ideologicamente, como estas denunciam, e tende a conservar e legitimar o statu quo, a verdade é que as abordagens pós-positivistas nas suas diferentes versões (construtivistas, pós-modernistas, feministas, estudos críticos, etc.), são passíveis de similar crítica, pois, ao pretenderem substituir a abordagem realista e racionalista, usam uma «máscara» académico-científica, para legitimiar o seu discurso ideológico e transformar a realidade de acordo com o seu programa político (veja-se o caso anteriormente apontado do multiculturalismo e das suas pretensões de substituir o nacionalismo como ideologia identitária). Face a esta situação de argumentos simétricos, que tendem a anular-se reciprocamente, tem alguma razão Andrea Semprini quando afirma que a «fractura que separa as duas epistemologias torna difícil toda a forma de mediação dialéctica e transforma as controvérsias em aporias conceptuais»[19], ou seja, transforma a confrontação entre realismo e pós-modernismo ou pós-positivismo em conflitos dificilmente sanáveis e que tendencialmente se saldam por um impasse. Porquê, então, a crescente popularidade das abordagens pós-positivistas entre a comunidade académica[20] das Relações Internacionais quando não há, num plano filosófico e epistemológico, argumentos particularmente inovadores face a um cepticismo sobre as possibilidades de apreensão do mundo exterior ao sujeito que já é, pelo menos, tão antigo quanto a Filosofia grega, e, muito menos, quaisquer argumentos decisivos que desequilibrem a balança a seu favor?[21] Sendo esta uma questão de difícil resposta provavelmente tem pouco a ver com a progressão do estudo «científico» das Relações Internacionais, em qualquer sentido reconhecível do termo «científico»[22]; a não ser, claro, como «ciência pós-moderna», o que, em si mesmo, encerra uma contradição pelos próprios pressupostos epistemológicos do pós-modernismo, que negam a possibilidade de um conhecimento científico – pelo menos tal como estávamos habituados a reconhecê-lo, desde Galileu, Kepler, Newton, Einstein, etc. –, ao considerarem a Ciência como mais uma «narrativa», similar à das Artes, Literatura, etc. Assim, a resposta terá de ser sobretudo procurada nas relações da academia com as correntes e grupos ideológicos da sociedade civil (por exemplo, num contexto anglo-saxónico, com a New Left) e nas causas[23] que acabam por ser promovidas «cientificamente» devido a essa agenda política. A atracção com rótulos aliciantes nos manuais e na literatura teórica que a apresentam como «nova» teoria, «novo» paradigma, «inovadora» abordagem, etc, sugerindo a ideia que esta é melhor por ser … nova[24], também tem aqui o seu papel. A «velha» ideia de progresso cumulativo, herdada da modernidade, do Racionalismo e do Iluminismo, tão denegrida pelo pós-modernismo, torna-se muito útil para criar indivíduos que se pretendem, por um lado, imbuídos de um soupçon pós-moderno face às «narrativas» da modernidade, e, por outro lado, crentes naïfs nas «narrativas» pós-modernas/pós-positivistas. A «desconstrução» desta nova ortodoxia, de imitatio post-modernum, é a principal tarefa com que se confronta a Teoria das Relações Internacionais neste início de século XXI.
NOTAS
[1] Andrea Semprini, Le Multucuturalisme, Paris, PUF, pp. 59-60.
[2] Ver José Pedro Teixeira Fernandes, Teorias das Relações Internacionais: da abordagem clássica ao debate pós-positivista, Coimbra, Almedina, 2004.
[3] Ver Steven Best e Douglas Kellner, The Postmodern Turn, New York-London, The Gilford Press.
[4] Que hoje, com mais propriedade, se deveria designar por Teorias (no plural) das Relações Internacionais, dada a pulverização de teorias na disciplina, não susceptíveis de serem integradas num todo articulado e coerente.
[5] Cfr. Yosef Lapid, «The Third Debate: on the Prospects of International Theory in a Post-Positivist era» in International Studies Quarterly, 1989, vol. 33, nº 3, pp. 235-254.
[6] O multiculturalismo é um conceito polissémico que pode ser usado essencialmente em dois grandes sentidos: i) num sentido descritivo, que descreve um facto da vida, ou seja, a diversidade cultural observável, por exemplo, numa determinada cidade, país, etc.; ii) num sentido prescritivo, consitui uma forma de activismo social e de acção política que promove as políticas de reconhecimento da identidade e da diferença dos grupos minoritários ou considerados «subalternos». Neste segundo sentido do conceito, que é o mais importante para a Ciência Política e as Relações Internacionais, o multiculturalismo é uma ideologia que dá origem a um conjunto de prescrições políticas específicas, normalmente conhecidas pelo nome genérico de políticas de identidade. Estas políticas multiculturais começaram a surgir nos finais dos anos 60 e princípios dos nos 70 do século XX, sobretudo em países como a o Reino Unido, a Holanda, a Suécia, o Canadá ou a Austrália. Ideologicamente o multiculturalismo vê-se a si próprio como «progressista» e opõe-se à ideia de uma Nação homogénea, de uma cidadania igualitária sob o modelo da citoyenneté herdado da Revolução Francesa e de uma assimilação, ou até mesmo de uma integração baseada numa aculturação aos valores e práticas da sociedade de acolhimento. Ver também José Pedro Teixeira Fernandes «Multiculturalismo e Segurança Societal» in Relações Internacionais, nº 9, Março 2006, pp. 129-149.
[7] Andrew Vincent, Modern Political Ideologies, Malden-Oxford, Blackwell, pp. 1-2.
[8] O conceito adquiriu vários sentidos diferentes ao longo do século XIX e do século XX, existindo um forte incremento na sua utilização, que se deve, em grande parte, aos trabalhos de Karl Marx (entre outros, com o livro A Ideologia Alemã, escrito em parceria com Friedrich Engels em 1846, que só foi publicado postumamente em 1932) e aos pensadores marxistas que lhe sucederam.
[9] Sobre este assunto ver também José Pedro Teixeira Fernandes, Islamismo e Multiculturalismo. As ideologias Após o Fim da História, Coimbra, Almedina, 2006.
[10] Harold Bloom et. al., Deconstruction and Criticism, 1979, 2ª ed.ª 2004, London-New York, Continuum.
[11] Tradicionalmente existem, pelo menos, duas grandes concepções teóricas que a encaram de maneira diferente a Nação: i) a concepção objectiva (ou transpersonalista) da «Nação etno-cultural», que tem as suas principais referências nos alemães Johann Gottfried Herder (influenciado pelo movimento cultural do romantismo emergente na época), através do seu trabalho intitulado Ideias sobre a filosofia da história da humanidade (1784-1791) e em Johann Gottlieb Fichte com o seu Discurso à Nação alemã na Universidade de Berlim (1807), assenta na Kulturnation (Herder). Nesta cancepção, a Nação «identifica-se com uma língua que reflecte o seu génio e regula os seus costumes. Está acima do Estado e igualmente dos modelos de governo artificiosos». Posteriormente Ficthe acrescentou à ideia da «nação-comunidade inaugurada por Herder», uma outra, que é a da «natureza voluntária do laço de cidadania», conciliando «a soberania nacional na sua acepção política» com a legitimidade «mais eminente da nação etnolinguística». ii) A concepção subjective (ou personalista) da «Nação electiva», tem a sua principal referência no francês Ernest Renan, através das ideias desenvolvidas na célebre conferência da Universidade de Sorbonne, em Paris (1882), subordinada ao tema O que é uma Nação? Nesta, Ernest Renan desenvolveu a ideia de que uma «nação é, pois uma grande solidariedade, constituída pelo sacrifício dos sacrifícios feitos e dos que ainda se está disposto a fazer. Supõe um passado; resume-se, todavia, no presente, por um facto tangível: o consentimento e o desejo claramente expresso de prosseguir a vida em comum». A existência de uma nação é «um plebiscito de todos os dias». Cfr. Guy Hermet, História das Nações e do Nacionalismo na Europa (trad. port.), Lisboa, Editorial Estampa, 1996, pp. 117, 121 e 129-30.
[12] Ver Benedict Anderson, Comunidades Imaginadas. Reflexões sobre a Origem a Expansão do Nacionalismo (trad. port.), 2005, Lisboa, Edições 70.
[13] Andrea Semprini, op. cit. ant, pp. 57-58.
[14] Andrea Semprini, op. cit. ant, pp. 59-60.
[15] John Searle, “Rationality and Realism: What is at Stake?” in Dædalus, vol 122, nº 4, 1993 (trad. port. Racionalidade e Realismo: o que está em jogo? publicada na Disputatio nº 7, November 1999, http://www.disputatio.com/articles/007-1.pdf).
[16] John Searle, op. cit. ant. pag. 17.
[17] John Searle, op. cit. ant. pag. 18.
[18] John Searle, op. cit. ant. pag. 19-20.
[19] Andrea Semprini, op. cit. ant, pag. 64.
[20] Tendência que se pode facilmente constatar pelos conteúdos dos manuais editados na última década no mundo anglo-saxónico, como, por exemplo, o de Ken Booth e Steve Smith, International Relations Theory Today, Pennsylvania, The Pennsylvania State University Press, 1995, 2ª ed. 1997; ou o de Scott Burchill et al., Theories of International Relations, Palgrave Macmillan, 1995, 2ª ed. revista e aumentada, 2005.
[21] Bem pelo contrário, como mostra o professor de Filosofia da Universidade de Nova Iorque, Paul Boghossian no seu pequeno mas denso livro Fear of Knowledge. Against Relativism and Constructivism, London-New York, Oxford University Press, 2006, onde este desmonta filosoficamente os argumentos construtivistas e relativistas.
[22] Naturalmente que isto custar a admitir a todos os que investiram anos da sua vida a fazer licenciaturas, trabalhos de mestrado ou teses doutoramento …
[23] Paul Boghossian, op. cit. ant., pag. 130.
[24] Um exemplo concreto desta estratégia «narrativa» pode encontrar-se no título da revista New Political Economy – uma das publicações de referência das «novas abordagens» –, editada por Michael Dietrich, Andrew Gamble, Graham Harrison, Michael Kenny e Anthony Payne, a partir da Universidade de Sheffield, no Reino Unido. Resulta óbvio, sobretudo após a leitura dos seus conteúdos habituais, que a palavra nova é uma peça de uma estratégia de auto-promoção deliberadamente centrada na ideia de novidade e não na clarificação da sua orientação ideológica no título da revista.
© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado na R:I Relações Internacionais, nº 17 dezembro (2007): 75-83.