A Europa em Crise

europa em crise

A Europa é antiga e futura ao mesmo tempo. Foi batizada há vinte e cinco séculos e, no entanto, continua em fase de projeto. Poderá a velha Europa responder aos desafios do mundo moderno?

Jacques Le GOFF[1]

O século XXI começou mal para a Europa e o Ocidente. Em 2001, o 11/S marcou um rumo dos acontecimentos que poucos imaginariam no final do século anterior. O otimismo associado à queda do muro de Berlim (1989) e ao fim da Guerra-Fria, já abalado pelas guerras sangrentas que puseram fim à ex-Jugoslávia, dissipou-se rapidamente. A crise financeira iniciada em 2007/2008 nos EUA e que alastrou, em seguida, para a Europa, transformou-se na crise mais grave do pós-II Guerra Mundial, adensando, ainda mais, o clima de pessimismo. A União Europeia e zona euro ficaram no centro do turbilhão, de uma forma provavelmente surpreendente mesmo para os mais cépticos sobre as sua virtudes. Os europeus veem agora o seu nível de vida e regalias sociais em constante ameaça de retrocesso. Quase tudo o que era dado como certo pelas sucessivas gerações do pós-II Guerra Mundial, sobretudo a partir dos anos 60 do século XX, começou a ser posto em causa.

Como chegamos até aqui? Quais são as raízes mais profundas desta crise? Como será possível ultrapassá-la? Na reflexão sobre a atual situação importa distinguir causas estruturais – mais longínquas e, por vezes, não perceptíveis à primeira vista – e causas conjunturais. Como se verá em seguida, é uma particular conjugação de causas, estruturais e conjunturais, que dá uma dimensão especialmente aguda à crise financeira iniciada em 2007/2008. Esta acabou por ser um catalisador de situações latentes, as quais vão muito para além do domínio financeiro e económico. Na realidade, o modelo europeu desenhado no pós II-Guerra Mundial acaba por estar, de uma ou de outra forma, em causa. Pode parecer excessiva esta afirmação mas há sinais fortes que o welfare-state, o modelo de integração da União Europeia e o processo de transformação social e liberalização dos costumes simbolizado pelo Maio de 68, se esgotaram. Associados à crise económica e financeira, estão a arrastar a Europa para um retrocesso sem precedentes. Mais: visto retrospectivamente o passado europeu dos últimos vinte anos sugere a ideia de um progresso económico e social muito mais frágil do que parecia, se não mesmo de uma “fuga para a frente” num caminho que, mais tarde ou mais cedo, acabaria por levar a um beco sem saída.

Sobre a atual crise europeia, proponho, em seguida, uma reflexão alargada, estruturada em cinco tópicos fundamentais para a sua compreensão global. O primeiro tópico analisa o efeito de boomerang que o capitalismo globalizado está a ter sobre a Europa e os mais antigos países industrializados. Quando se iniciou a atual globalização, na transição dos anos 80 para os anos 90 do século XX, os europeus, norte-americanos e japoneses, viam-se, a si próprios, como ganhadores do processo de abertura dos mercados e liberalização do comércio internacional, que, aliás, lideraram. Tinham, nessa altura, um monopólio praticamente total das economias mais competitivas e de grande capacidade exportadora. Procuravam que as outras economias se abrissem aos seus produtos. Nesse contexto, para além do argumento tradicional a favor do livre comércio – anunciando ganhos de bem-estar generalizados –, desenvolveu-se uma crença dogmática nas virtudes da competição/competitividade. Se a década de 90 trouxe, genericamente, ganhos para os europeus, o início do século XXI mostrou uma nova realidade “imprevista”: a da crescente transferência dos ganhos da abertura dos mercados para a China, Índia, Brasil, etc., associada a uma desindustrialização e deslocalização generalizada de empresas dos antigos países desenvolvidos para as novas áreas de crescimento.

O segundo tópico é sobre as ambições contraditórias daquilo a que, simbolicamente, chamo o legado do Maio de 68. São evidenciadas as contradições intrínsecas às reivindicações desse movimento, mostrando-se como a transformação social e estilos de vida que promoveu, entraram, através de um processo de lento deslize, em colisão com a sustentabilidade sócio-demográfica. Esta é uma das causas estruturais profundas que atinge hoje as sociedade europeias e ocidentais, amplificando os efeitos da crise.

Um terceiro tópico questiona a cultura hedonista-materialista europeia e ocidental, o ethos relativista no qual está enraizada, e as consequências sócio-demográficas do primado absoluto do homo economicus. São postos em evidência os excessos e contradições de um capitalismo globalizado, o qual ultrapassou o “óptimo de Pareto” e ameaça, agora, tornar-se numa “paixão nociva”. Mostra-se como a obsessão com o crescimento, ligada à obsessão com uma expansão contínua do mercado para novas esferas da vida humana, corrói as bases da sustentabilidade societal de que a própria economia capitalista necessita para prosperar.

O quarto tópico é sobre o imperativo de as sociedades europeias encontrarem um novo caminho, o qual possa constituir uma alternativa aos modelos lançados no pós II Guerra Mundial. Estes respondem, cada vez menos satisfatoriamente, às exigências políticas, económicas e de bem-estar contemporâneas. Discute-se, em particular, o exemplo do Japão, um caso de extraordinário sucesso na economia internacional entre os anos 60 e 80 do século XX. O declínio económico japonês das últimas duas décadas é analisado em conexão com tendências demográficas do país, no qual se encontra uma das populações mais envelhecidas do mundo. Mostra-se, ainda, como uma análise estritamente económica pode ser redutora, ao considerar (ou ignorar) como meras externalidades os aspectos sócio-demográfico-culturais. A reflexão deixa uma questão em aberto: será que ao olharmos para o Japão de hoje estamos a ver o futuro próximo da Europa?

O quinto tópico aborda especificamente o caso português e a posição do país na União Europeia. É revisto, sucintamente, o percurso de Portugal no espaço europeu, desde a revolução de 1974 até à adesão às Comunidades em 1986, passando pela surpreendente participação, nos anos 90, como membro fundador da zona euro. Nesse contexto, são relembradas as interpretações flexíveis que prevaleceram na interpretação dos critérios de convergência nominal previstos no Tratado de Maastricht (sobre o défice orçamental, a dívida pública, a taxa de inflação, a taxa de juro e a taxa de câmbio) e cujos efeitos nefastos se estão hoje a sentir. Tal lógica política permitiu obter um “sucesso” aos países do “Club Med” (os atuais PIIGS – Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha), os quais surgiram como fundadores do euro, a par das economias do norte europeu. Tudo isto em nome do objectivo grandioso de uma união política que hoje se transformou numa necessidade imperiosa de salvação do euro. A possibilidade mais sugerida é a de um governo económico europeu, sob a forma de um federalismo económico, a qual parece ter um largo consenso na elite política e económica portuguesa. Todavia, face às circunstâncias económico-políticas, a reflexão equaciona em que medida um governo económico europeu, a ocorrer, não surgirá antes pela via da realpolitik, como um diretório de potências com nefastas consequências para o futuro do país e da Europa.

 

NOTAS

[1] Jacques Le Goff, A Velha Europa e a Nossa, Lisboa, Gradiva, 1995, p. 62.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes

© QuidNovi/Verso da História, 2012 (excerto, Introdução)