O problema de Chipre consiste não em uma mas em quatro questões relacionadas. A mais importante destas é a relação entre os cipriotas gregos e os cipriotas turcos, a qual configura a questão mais difícil: podem dois grupos nacionais amplamente separados encontrar uma coexistência pacífica envolvendo duas línguas, duas religiões e duas interpretações da história?
Christopher HITCHENS (1984 [1997], p. 158)
Situada no extremo oriental do mar Mediterrâneo, próxima da Turquia, da Síria e do Líbano, a ilha de Chipre (Kypros em grego e Kibris em turco) é o território da actual União Europeia (UE) geograficamente mais afastado de Portugal. A distância geográfica parece acompanhar de perto a distância histórica e o (des)conhecimento da actual realidade política, social, económica e cultural do país. Visto a partir deste extremo ocidental da Europa, Chipre normalmente só tem alguma visibilidade nos media quando as negociações de adesão da Turquia à União Europeia colidem com o problema da reunificação da ilha e as posições do governo cipriota. Todavia, várias dúvidas ocorrem: como é que se chegou a esta situação estranha e quase incompreensível para a actual island of peace europeia? Porque é que a ilha foi dividida, de uma maneira que faz lembrar a Alemanha durante a Guerra Fria? Qual a razão pela qual este novo Estado-membro da União Europeia entrou truncado de facto em mais de 1/3 do seu território e em cerca de 1/5 da sua população? Porque falhou, em 2004, o plano das Nações Unidas no seu objectivo de reunificar as duas partes da ilha? Será possível que, no quadro da União Europeia, e num horizonte temporal razoavelmente próximo, se possa alcançar este objectivo e dispensar definitivamente os serviços da mais antiga força de manutenção de paz das Nações Unidas ainda a actuar no terreno (a UNFICYP)?
Embora estes sejam problemas do presente, o estudo do actual conflito de Chipre acaba por nos reconduzir, de uma ou de outra forma, a um olhar sobre vários aspectos do passado como a Antiguidade Clássica greco-romana, o nascimento e expansão do Cristianismo, o reencontro traumático dos dois ramos desavindos da Cristandade sob as cruzadas, as relações problemáticas e de rivalidade com um Islão árabe (e turco) triunfante e a expansão colonial do Ocidente europeu. Mas, talvez mais do que sobre qualquer outro aspecto histórico, a ter de reflectir novamente sobre aquilo a que a historiografia europeia costumava chamar a «questão do Oriente»[1] e sobre os Estados que surgiram sob as cinzas do Império Otomano. Vale a pena ter em mente que esta questão diplomática mais ou menos obscura para o europeu e ocidental médio, ocupou não só as chancelarias europeias durante cerca de um século e meio, como foi marcada por várias crises graves[2] que colocaram as tradicionais potências (Rússia, Grã-Bretanha, França e Áustria e mais tarde também a Alemanha e a Itália unificadas) em situações de conflito político e militar. E que as principais áreas de instabilidade e conflitualidade actual na periferia interna ou externa da União Europeia têm em comum o facto de serem todas de territórios ex-otomanos (Chipre, Bósnia, Kosovo, Palestina/Israel, Líbano, Iraque…). Até há algum tempo atrás a «questão do Oriente» foi vista fazendo parte de um passado já bastante longínquo e sem qualquer interesse significativo para a compreensão dos conflitos do presente, pelo que foi amplamente esquecida pelos políticos e pela opinião pública europeia e ocidental e vista como um assunto de mera curiosidade histórica e académica. Os trágicos acontecimentos ocorridos no ex-território otomano de Chipre, no Verão de 1974, que levaram à partição de facto da ilha, não alteraram a percepção de que esse era um capítulo de um passado longínquo, encerrado e sem sequelas no presente. Pelo contrário, na época, os acontecimentos foram generalizadamente vistos como (mais) um episódio da clássica disputa ideológica soviético-americana pela primazia à escala mundial, através de actores locais interpostos (uma «guerra por procuração»), sem qualquer ligação especial com um passado pré-ideológico. Só com o final da Guerra-Fria, nos anos 1989-1991, e com os sangrentos acontecimentos que ocorreram nos Balcãs, se começou lentamente a alterar esta percepção, assistindo-se a um maior interesse por este passado na procura de explicações para os «incompreensíveis» conflitos que marcaram o fim da ex-Jugoslávia. Mais recentemente, a já referida integração de Chipre na União Europeia e o facto da Turquia ser também um país candidato à União, com negociações de adesão abertas em 2005, trouxeram algum interesse e adicional. Todavia, a questão de Chipre continua a ser vista (na nossa opinião erradamente, pela razões que vamos mostrar ao longo deste trabalho), como um assunto de importância menor para a política europeia e internacional.
Face à necessidade de contextualizarmos historicamente o problema objecto de estudo, vamos, nesta análise, dar alguma primazia aos aspectos histórico-diplomáticos, articulados com a realidade sociológico-política, que nos parecem ser a base mais sólida para um trabalho com as características do que nos propomos efectuar. Naturalmente que um estudo deste género – o qual se encontra no cruzamento da História com a Ciência Política e as Relações Internacionais –, levanta dificuldades de tipo metodológico e epistemológico a qualquer investigador, especialmente em Portugal, pela escassíssima produção científica existente sobre as questões históricas, políticas e de relações internacionais do Mediterrâneo Oriental (um área bastante longe dos tradicionais interesses portugueses, como as relações euro-atlânticas e os países lusófonos), e pelo frágil conhecimento dos seus povos e culturas. Em termos metodológicos, surge o problema de praticamente não existirem fontes documentais, ou mesmo fontes secundárias (livros e artigos científicos), em língua portuguesa. Há também a dificuldade do acesso às fontes em língua grega (clássica e actual) e turca (otomana e actual). Essa dificuldade, que não é menor, pode ser ultrapassada, pelo menos em parte, pelo recurso trabalhos anteriores de investigação científica, bem como pelo recurso à informação oficial publicada em língua inglesa pelo governo de Chipre (e da Grécia e Turquia, bem como naturalmente do Reino Unido). Em termos epistemológicos, levanta-se aqui, e com especial intensidade, o problema da equidistância face às partes envolvidas no conflito, pois há naturais sentimentos de empatia ou repulsa face às atitudes adoptadas pelos diversos protagonistas envolvidos (que, como veremos ao longo do livro, vão muito para além dos próprios cipriotas). A diversificação das fontes e a confrontação de perspectivas foi a maneira que encontrámos para tentar reduzir, o mais possível, as distorções e enviesamento de perspectiva de uma investigação sobre um problema particularmente intricado como este.
Ainda sobre o problema epistemológico, é inevitável reconhecer-se que o substrato cultural e a visão do mundo do investigador, bem como a influência, consciente ou inconsciente, das ideologias do presente sobre a interpretação do passado – nacionalismo e multiculturalismo –, não são um mero fait-divers. Até há algum tempo atrás, a dificuldade típica com que se confrontava quem quisesse analisar com alguma imparcialidade um problema como o de Chipre consistia no clássico problema de manter equidistância face às historiografias nacionalistas de cipriotas gregos (e da Grécia) e de cipriotas turcos (e da Turquia), e dos respectivos simpatizantes. Hoje, para além desta dificuldade que continua a persistir, surgiu uma nova (o que complica ainda mais a questão), que é a dos trabalhos, normalmente de perfil académico, imbuídos de uma ideologia pós-moderna[3] de tipo multiculturalista[4] e que já começam a constituir um acervo considerável. Estes geram, frequentemente, uma ilusória ideia de equidistância face aos actores do conflito e de um carácter progressista da solução avançada para o mesmo – tipicamente um multiculturalismo pós-nacional apresentado como inovador face aos nacionalismos retrógrados. Todavia, como teremos oportunidade de mostrar ao longo do trabalho, sob esta capa atractiva esconde-se, não invulgarmente, um superficial e distorcido conhecimento do passado não ocidental (por exemplo, ignorando a opressão exercida até uma fase avançada do século XIX pelo sistema de dominação «multicultural» dos millet/dhimmi, o qual marca ainda hoje a memória colectiva dos povos submetidos ao poder imperial e colonial otomano em todo o Sudeste europeu).
Assim, para abordarmos este difícil problema das actuais relações europeias e internacionais e tentarmos responder, com alguma consistência e profundidade, às interrogações que formulamos anteriormente, optamos por enquadrar o conflito de Chipre numa visão histórica e política abrangente. Isto levou-nos a considerar também diversos acontecimentos ocorridos na Grécia, no Império Otomano/Turquia e no Império Britânico/Grã-Bretanha/Reino Unido, como relevantes para o rumo dos acontecimentos em Chipre e a procurar enquadrá-los no ambiente político internacional da era colonial, da Guerra Fria e do actual período do pós-Guerra Fria. Para o efeito, estruturamos a nossa abordagem em cinco capítulos. Num primeiro é passado em revista, ainda que de uma forma necessariamente sintética, o passado mais longínquo, no qual abrangemos o longo período histórico que vai da Antiguidade Clássica até à governação veneziana da ilha, terminada na segunda metade do século XVI com a conquista otomana de 1571. No segundo capítulo, a análise vai incidir sobre o longo período de dominação otomana e de pertença da ilha ao devlet-i al-i Osman (o Estado e a casa de Osman), o qual se prolongou no tempo até ao último quartel do século XIX (1878), quando deu lugar aos britânicos, e nas profundas marcas que este deixou na sociedade e na política cipriota. O terceiro capítulo analisa o relativamente curto período da administração colonial britânica (82 anos), com um especial ênfase na forma como foi gerido o processo de descolonização e independência na década de 50 do século XX, e tratadas as pretensões contraditórias dos cristãos ortodoxos/cipriotas gregos de autodeterminação/enosis (união com a Grécia) e dos muçulmanos/cipriotas turcos de manutenção do statu quo ou de taksim (partição) da ilha. O quarto capítulo tem por objecto o curto e conturbado espaço temporal que decorreu entre a independência de 1960 e a partição da ilha em 1974, como resultado da intervenção militar directa da Turquia no conflito cipriota e da permanência das suas tropas no Norte do território, à margem das resoluções da Assembleia Geral e Conselho de Segurança das Nações Unidas. Num quinto e último capítulo a abordagem incidirá sobre as diversas tentativas de reunificação, até agora infrutíferas, com especial destaque para a mais recente destas – o plano do ex-Secretário Geral das Nações Unidas, Kofi Annan. São discutidas as razões do seu fracasso, bem como as implicações e oportunidades que decorrem da integração europeia da República de Chipre, nomeadamente a possibilidade de ser encontrada um solução que satisfaça as ambições das população cipriota grega e turca e os interesses das Potências Garantes (Grécia, Turquia e Reino Unido). Finalmente, são analisadas a consequências que podem advir para a União Europeia e o processo de negociações de adesão da Turquia actualmente em curso, se não for encontrada um solução satisfatória para o conflito cipriota no decurso dos próximos anos.
NOTAS
[1] A questão do Oriente esteve directamente ligada ao que normalmente é apresentado como tendo sido o processo de decadência do «homem doente da Europa» (a expressão foi celebrizada pelo czar russo Nicolau I nas vésperas da guerra da Crimeia, de 1853-1856, referindo-se ao Império Otomano). Os seus marcos convencionais são o tratado Tratado de Küçük-Kaijnardja, celebrado em 1774 entre a Rússia e o Império Otomano, após a derrota militar deste último pelos exércitos do czar, e o Tratado de Lausana de 1923, que regulou a dissolução do multissecular Império Otomano e a emergência da República da Turquia.
[2] Para uma panorâmica das sucessivas crises que marcaram a questão do Oriente ver o trabalho de A. L. Macfie, The Eastern Question 1774-1923 (1989).
[3] Tal como a universidade moderna, criada sob o modelo que Whilhelm von Humboldt instituiu em Berlim, na Alemanha do século XIX, tinha como missão principal ser repositório da cultura nacional (ou seja, estava imbuída de uma ideologia nacionalista), hoje é a universidade pós-moderna que está imbuída de uma ideologia e fervor multiculturalista (não assumida explicitamente para o grande público, que a julga ainda devotada à cultura nacional, à promoção da Razão e produção de Ciência, tal como no modelo Iluminista). Se, no passado, podíamos encontrar alguns dos mais fervorosos adeptos e prosélitos da cultura nacional nos departamentos de História e de Literatura, hoje, são os departamentos de Antropologia, Sociologia, Estudos Culturais e de Literatura (Pós-Colonial), que estão na linha da frente do zelo missionário.
[4] Esta ideologia tem as suas raízes na segunda metade do século passado e baseia-se, em termos ontológicos e epistemológicos, uma atitude de soupçon (desconfiança), face ao que chama as «grandes narrativas» da cultura ocidental – o nacionalismo é uma delas – denunciando o perigo de visões essencialistas e a necessidade da sua desconstrução (como se estivéssemos perante uma narrativa literária). Ou seja, no caso aqui em análise, sustenta que a Nação (e consequentemente o Estado-Nação) não é uma realidade primordial ou «essencial», mas uma mera construção social (uma «comunidade imaginada», na expressão celebrizada por Benedict Anderson). Para além do mais, e segundo esta mesma visão ideológica, a construção social da Nação e os movimentos nacionalistas a que esta deu origem, estão na génese das maiores tragédias do século XX. Assim, impõe-se a criação de entidades políticas (e de identidades nacionais) pós-nacionais que a superem. Como facilmente se compreende, estamos perante mais uma proposta ideológica com o seu próprio esquema de acção política e não perante uma solução neutral, nem propriamente uma «terceira via» ou meio termo face aos nacionalismos em disputa (como procura se apresentar), pelo que também necessita de uma vigilante crítica e equidistância.
© José Pedro Teixeira Fernandes
© Almedina, 2009 (excerto, Introdução)