Guia da novilíngua para compreender a linguagem política

Orwell-Nineteen-Eighty-Four

 

Ajustamento: O mesmo que recessão económica, redução do bem-estar, aumento do desemprego e generalização da pobreza.

Competitividade (aumento da): Palavra mágica para fazer sair o país da crise. (Quase) todos a apontam como solução, mas poucos conseguem melhorá-la na prática. Existem várias escolas com teses sobre o aumento da competitividade. A mais influente sobre o poder político atual sugere que o caminho é transformar Portugal na pequena China da União Europeia. Após essa “destruição criadora”, o país emergirá extremamente atractivo para o Investimento Directo Estrangeiro (IDE).

Consolidação orçamental (necessidade de): Eufemísmo para buraco orçamental e necessidade de encontrar meios financeiros para equilibrar as contas públicas. É prática corrente a consolidação orçamental ser feita à custa de mais impostos sobre a classe média.

Crescimento económico: É, cada vez mais, uma miragem em Portugal e na maioria dos países União Europeia. As gerações mais novas só o conhecem pelos livros ou, se o viram na realidade, foi porque emigraram para o estrangeiro.

Default: Incumprimento ou bancarrota na designação tradicional portuguesa. Dá mais estilo usar em inglês.

Dívida soberana: Designação cínica atribuída à dívida dos Estados (soberanos). É um contra senso pois, ser soberano, no plano externo, significa ser independente. Ora, o efeito da dívida é precisamente o contrário: torna os Estados dependentes (dos credores e do exterior), ou seja, não soberanos.

Inovador (na política e sociedade): Equivalente contemporâneo do alquimista da Idade Média. Serve para solucionar quase tudo, incluindo para justificar ideias disparatadas

Interesse nacional: Expressão para dar cobertura a interesses económicos particulares e de lobbies que influenciam o poder político. A técnica consiste em chamar interesse nacional ao seu próprio interesse.

Mitigar: O mesmo que modulação (ver entrada neste léxico), com a vantagem de ser uma palavra diferente. O objetivo é transmitir aos incautos a sensação de conhecimento e ponderação sobre um assunto potencialmente gerador de contestação social.

Modulação (de uma medida): Forma de tentar salvar a face após o anúncio de uma medida que gera grande contestação social, sendo, não invulgarmente, pouco sensata (exemplo: a descida em 6% da TSU para as empresas e subida em 7% para os trabalhadores).

Parceria Público-Privada (PPP): Fórmula inovadora e particularmente criativa de socializar os riscos e custos do investimento empresarial (que ficam a cargo dos contribuintes durante décadas) e privatizar os lucros sem problemas de concorrência e de mercado. Muito popular entre políticos grandes grupos empresariais, escritórios de advocacia ligados a esses meios.

Reforma: Medida destinada a criar uma aparência de mudança, deixando (praticamente) tudo na mesma (exemplo: a extinção de fundações ou a reforma do mapa autárquico). Pode também traduzir-se numa alteração real e significativa a favor de um grupo influente junto do poder político, a pretexto de aumentar a competitividade ou do interesse nacional (exemplo: o Código de Trabalho com alterações sempre em desfavor do trabalhador).

Refundação (do Estado): Proposta do PM que lançou um desafio de descodificação, gerando confusão entre os comentadores políticos. Os hermeneutas especializados no pensamento do PM divergem quanto ao verdadeiro sentido a dar-lhe (admitindo que tem algum). Todas as interpretações são possíveis: para uns é um erro político (mais um…) que libertará o maior partido da oposição do memorando com a “Troika”; para outros, a admissão implícita de que o Programa de “Ajustamento” (ver entrada neste dicionário) é um fiasco; uma terceira corrente acha que é uma proposta vazia para distrair das questões realmente importantes, como a aprovação do orçamento.

Sustentabilidade: Palavra adaptável a (quase) tudo, do ambiente às finanças públicas, passando pelas empresas. Fica bem num discurso para impressionar a audiência.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, 3/03/2012. Última revisão, 6/06/2015

© Imagem: capa do livro de George Orwell, “1984”, edição da Penguin UK

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