Mas é na doutrina social da Igreja, datada de finais do século XIX – Encíclica Rerum Novarum –, que me parece existir o maior reservatório de foça moral e de intervenção social, perfeitamente válida para o mundo que vivemos.
1. A Igreja Católica, à semelhança de outras formas do Cristianismo, está a enfrentar, e vai continuar a enfrentar, dois desafios cruciais. O primeiro é o de uma secularização/descristianização no seu território histórico de referência – a Europa. O segundo é o crescimento, em paralelo, de outras religiões, impulsionadas pela ação conjugada da dinâmica demográfica dos seus crentes e da sua resistência aos atrativos do secularismo à europeia/ocidental. O Islão, uma religião com similar vocação universalista ao Cristianismo, é o caso mais óbvio. Quanto ao primeiro aspecto, para podermos perceber bem o que está em jogo, precisamos de olhar para o mundo no seu conjunto. Está o mundo a tornar-se mais secular e/ou irreligioso, como a Europa, ou está, pelo contrário, a (des)secularizar-se, como sugerem Peter Berger e outros (The Desecularization of the World: Resurgent Religion and World Politics?) e, mais recentemente, Eric Kaufmann (Shall the Religious Inherit the Earth?: Demography and Politics in the Twenty-First Century.)
2. Se as análises prospetivas de Berger e Kaufmann estiverem certas vamos ter, em algumas décadas, uma Europa e um mundo muito diferente do que maioria dos europeus imagina hoje. O europeu tem impregnado, desde o Iluminismo, que a Europa=Civilização=Mundo. Este quadro mental leva a pensar que as outras culturas, mais tarde, ou mais cedo, vão ser como nós. Hoje parece cada vez mais claro que isso não passa de uma falácia intelectual. Em vez de sociedades com indivíduos moldados pelo pensamento racional, científico e secular/ateu (a utopia social e “científica” de Richard Dawkins – ver The God Delusion), o resultado pode muito bem ser outro. O crente no Cristianismo está em retrocesso em solo europeu. As evidências empíricas confirmam-no claramente, quando avaliadas pelo nível de prática religiosa. Mas o que parece ser, numa análise superficial, um rumo face ao triunfo total do indivíduo secular/ateu, pode muito bem mostrar-se uma vitória de Pirro. Só com a Europa isolada do resto do mundo e revertendo, rapidamente, o seu grave problema demográfico é que esse eventual triunfo poderia ser duradouro. Não é essa a realidade que se antecipa no futuro discernível.
3. Num notável discurso proferido em finais de 2010, Václav Havel, sintetizou bem, o drama existencial da atual “sociedade ateísta”. A perda de conexão com o infinito e transcendental, leva a um natural egoísmo de indivíduos e gerações. Este reflete-se, por exemplo, na deterioração do ambiente e na redução da natalidade, vista como um entrave à satisfação hedonista de necessidades do presente. Por outro lado, a sobranceria da “sociedade ateísta” associada à convicção de domínio da natureza e da economia pode transformar-se num caminho para o “inferno”. Václav Havel referia-se, explicitamente, à crise financeira desencadeada em 2007/2008. Explica-a, em grande parte, pela arrogância do capitalismo financeiro. Este convenceu-se que, por mobilizar jovens matemáticos brilhantes e pô-los a conceber produtos financeiros sofisticados, usando programas informáticos e computadores de última geração, tinha resolvido o problema do risco que atormentara os banqueiros das gerações anteriores (ver o livro de Gillian Tett Fool’s Gold: How Unrestrained Greed Corrupted a Dream, Shattered Global Markets and Unleashed a Catastrophe). Esta arrogância revelou-se autodestrutiva e está a pagar-se bem caro. Destruiu milhões de empregos em todo o mundo e lançou milhões de famílias na pobreza, ou próximo dela.
4. Neste contexto, quais deverão ser as prioridades do Papa Francisco I? Numa visão pessoal diria que, para além de resolver os problemas internos – o que já não é uma tarefa fácil pelas situações que têm vindo a público –, terá a árdua tarefa de conduzir a Igreja Católica a enfrentar os desafios da sociedade contemporânea. Uma das prioridades deverá ser o diálogo com outras religiões e os não crentes, para defesa de valores humanistas transversais. Mas este é também um assunto delicado. Implica abertura sem abdicar dos princípios estruturantes singularizam e dão sentido ao Cristianismo. Parece-me fundamental uma abertura em reciprocidade e não lógicas simplistas de concessão, supostamente tolerantes, como sugere a sensibilidade relativista extremada. Esta, sob uma aparência de tolerância – a qual, por vezes, disfarça um conhecimento superficial de outras culturas e dos seus aspectos mais problemáticos –, abre a porta à intolerância. Ainda que involuntariamente, são corroídas as bases universalistas de princípios de dignidade humana, que deveriam ser transversais, como os Direitos Humanos. Mas é na doutrina social da Igreja, datada de finais do século XIX – Encíclica Rerum Novarum –, que me parece existir o maior reservatório de foça moral e de intervenção social, perfeitamente válida para o mundo que vivemos. A Igreja Católica pode, e deve, ser um contrapeso à sobranceria destrutiva da “sociedade ateísta” denunciada por Václav Havel. Pode e deve ser uma força inspiradora e mobilizadora para todos aqueles que não pretendem perder a conexão com o infinito e o transcendental. Pode e deve ser uma força para todos aqueles que não se revêm num neoliberalismo extremado, reduzindo o ser humano à sua faceta de homo oeconomicus. A sua mensagem de justiça social tem de transmitir esperança e ser um incentivo ao não conformismo com o poder económico e político estabelecido.
© José Pedro Teixeira Fernandes, 15/03/2015
© José Pedro Teixeira Fernandes, foto do quadro de Marc Chagall, “Abraham et les trois anges”, Musée National Message Biblique Marc-Chagall, Nice, 2006