Teorias das Relações Internacionais: da abordagem clássica ao debate pós-positivista

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Direi, talvez, à laia de introdução, por que escolhi exactamente este tema. Sou racionalista, e com isto quero dizer que acredito no debate e na discussão. Do mesmo modo acredito na possibilidade, tanto quanto na conveniência, de aplicar a ciência aos problemas que se levantam no campo social.

Karl POPPER[1]

 

O contacto com a abordagem teórico-académica das Relações Internacionais (RI)[2] pode ser um exercício simultaneamente fascinante e decepcionante. Abstraindo do facto de essas sensações contraditórias poderem resultar da motivação e apetência de cada um de nós para esta área do conhecimento, o que ocorre é que a literatura desta área académico-científica, é, desde logo, marcada por uma extrema diversidade de correntes teóricas, com rótulos que podem ser tão sugestivos, quanto desesperantes, para quem inicia o seu estudo: realista, neo-realista, liberal, neo-liberal, tradicionalista, behaviorista, pluralista, globalista, estruturalista, construtivista, feminista, pós-estruturalista, pós modernista, etc… Se, por um lado, isto revela uma aliciante riqueza de perspectivas, por outro lado, traz consigo incertezas teóricas e confusões conceptuais frequentemente geradas por rótulos e classificações teóricas pouco precisas. Par além disso, encontram-se facilmente abordagens tendencialmente incompatíveis, ou, pelo menos, de difícil integração num todo coerente, bem como teorizações e especulações algo primitivas[3] as quais, quer do ponto de vista da solidez científica, quer do ponto de vista do rigor analítico não deixam de merecer naturais reservas e distanciamento crítico.

Para os espíritos que gostam de áreas com séculos de tradição, de autonomia académica longamente estabelecida e inquestionada, e com respostas às questões centrais do seu estudo tendencialmente consensuais, ou, pelo menos assentes em consensos bastante alargados, o contacto com a disciplina de RI pode converter-se facilmente num exercício decepcionante, pois quase nada disto existe. Não só estas são de recente autonomização no quadro da academia, como abundam as perguntas e as teorias que procuram responder às mesmas, mas escasseiam as respostas amplamente partilhadas pelos investigadores e teóricos da disciplina. Mas, por outro lado, não é esta uma situação mais ou menos normal no processo de afirmação duma disciplina recente, e até do processo de conhecimento científico geral, especialmente do que se desenvolve no âmbito Ciências Sociais e Humanas, as áreas de referência privilegiadas para o estudo das RI?

Na Europa, com algumas excepções importantes como é o caso britânico, que, importa sublinhar, foi onde surgiu, pela primeira vez, uma cátedra universitária de RI, no imediato pós-I Guerra Mundial, os problemas atrás apontados sentem-se ainda com mais intensidade, facto ao qual não é certamente estranho uma autonomização muito recente, pelo menos quando comparada com disciplinas académicas clássicas, como a História, a Economia, a Geografia e o Direito. Neste contexto, importa notar ainda que, em Portugal, a sua autonomização é das mais tardias da Europa, só tendo ocorrido nos curricula universitários, a partir da segunda metade da década de 70 do século XX. Assim, não surpreende que estas sofram duma tibieza[4] bastante similar aquela que há duas décadas atrás Jacques Huntzinger (1986: 8) constatava existir no meio académico francês da disciplina. Nem é também muito surpreendente que o diagnóstico que, na altura, este efectuou para tentar explicar essa tibieza, possa também conter pistas que, ainda hoje, são válidas para nós. Estas pistas apontavam duas grandes razões para essa debilidade: (i) uma primeira razão, de tipo exógeno, estava relacionada com o cepticismo e resistência das disciplinas académicas clássicas relativamente à emancipação das RI; (ii) uma segunda razão, de cariz endógeno, e provavelmente mais preocupante, era a da inexistência de verdadeiros teorizadores no âmbito da disciplina[5].

Seja como for, uma coisa é certa, as pistas explicativas de Huntzinger apontam para uma imagem geral da disciplina que é bastante idêntica à que foi traçada por Stanley Hoffmann que, num título bastante conhecido, qualificou-a como An American Social Science (1977), querendo com isto evidenciar a esmagadora predominância da América do Norte, ou seja dos Estados Unidos, em aspectos chave que condicionam o desenvolvimento e a afirmação da disciplina. Estes são: (i) o nível do interesse pela temática das relações internacionais, nos meios políticos, académicos, e no público em geral; (ii) o estímulo e o apoio dado às actividades de investigação nesta área; (iii) o volume e a qualidade da produção teórica. Mais recentemente, já no final dos anos 90 do século XX, Ole Wæver, num artigo sugestivamente intitulado The Sociology of a Not So International Discipline: American and European Developments in International Relations (1998), publicado numa das principais revistas académicas da disciplina, a inevitavelmente norte-americana International Organization, chegou a conclusões mais ou menos similares, chamando, no entanto, à atenção para o facto de existir uma excepção relevante, que resulta dos esforços de autonomia da Escola Inglesa[6], à qual ele próprio se considera ligado intelectualmente.

A primazia anglo-saxónica na disciplina, especialmente pela via do pensamento norte-americano, torna praticamente impossível efectuar um trabalho teórico sem referências mais ou menos alargadas aos debates que marcaram, e marcam, a sua evolução nesse contexto académico, cultural e político. Naturalmente que esta predominância esmagadora tem importantes implicações na maneira como o estudo da disciplina é feito fora desse contexto, como é o caso português. Uma primeira implicação é a de que, como já se pode imaginar, a generalidade das teorias, conceitos e ideias, que marcam a disciplina estão amplamente dependentes da importação desses desenvolvimentos teórico-conceptuais corridos no universo anglo-saxónico, o que, em si mesmo, não é um nenhum fénomeno negativo, bem pelo contrário, é uma fonte de imprescindível inspiração e vitalidade para qualquer esforço sério de teorização. A questão é que, não invulgarmente, se cai num excesso de centragem nesse universo cultural, o que faz perder de vista que há outros desenvolvimentos[7] relevantes, ainda que mais discretos e limitados, fora do mesmo.

Uma segunda implicação é a de que não é fácil efectuar uma filtragem e/ou adaptação crítica dessas teorias e conceitos à realidade portuguesa, pois, a tendência natural, à qual não escapam certamente os académicos e investigadores das RI, até pela enorme apetência sociológica portuguesa pelos produtos importados, sejam eles banais bens de consumo, ou produtos culturais sofisticados, é reproduzir, mais ou menos acriticamente, discursos de moda no país a, b, ou c, os quais, frequentemente, se auto justificam, não tanto pelos seus méritos intrínsecos, mas, mais pela autoridade que lhe é implicitamente conferida pela notoriedade do autor, da corrente teórica, da universidade, ou do país onde foram produzidos, associada à novidade da sua introdução em Portugal.

Por isso, na nossa opinião, um dos desafios mais interessantes e importantes que se levantam à produção teórica portuguesa é o que resulta da possibilidade de se tentar converter a desvantagem que inegavelmente resulta da ausência duma tradição de estudo e investigação autónoma da disciplina, numa certa vantagem, beneficiando do facto do pensamento teórico não estar excessivamente moldado, ou até mesmo deformado, por uma determinada escola de pensamento ou universo cultural. Claro que isto só poderá ser feito com o desenvolvimento de um esforço deliberado e sistemático para aceder a um leque mais alargado de contributos e perspectivas, o que, convenhamos, não é tarefa nada fácil.

Falando, agora, do pequeno contributo que nos propomos dar para o estudo teórico da disciplina, impõe-se efectuar, previamente, algumas observações à sua leitura. A primeira observação é a de que se trata de um trabalho de síntese de teorias e de ideias, de tipo quase introdutório a uma matéria ampla e complexa como é a da(s) Teoria(s) das Relações Internacionais[8] em que os objectivos são os seguintes: (i) funcionar como um elemento de orientação e de reflexão sobre o estudo da disciplina, fornecendo algumas pistas para estudos subsequentes em maior profundidade; (ii) estimular o interesse intelectual pela disciplina aos alunos das diferentes licenciaturas de RI existentes em Portugal, bem como aos alunos em que a sua formação académica não implica uma abordagem sistemática dos seus conteúdos, mas, apenas, contactos mais ou menos selectivo com estas; (iii) e, ainda, aguçar a curiosidade intelectual de todos aqueles que têm apetência suficiente para se poderem interessar pela sua produção teórico-académica, nas suas diferentes facetas.

A segunda observação é que, face à amplitude e complexidade da temática, bem como à diversidade de escolas e correntes que marcam a disciplina, oriundas das mais diversas Ciências Sociais e Humanas, optámos por tentar abranger, sem quaisquer pretensões de exaustividade, uma razoável diversidade teórica, tendo particularmente em conta alguns dos seus desenvolvimentos mais recentes, por nós julgados como os mais representativos da evolução da disciplina. Neste sentido, as escolhas efectuadas são bastante pessoais e resultam de um acumular de leituras, de actividades de investigação, e de experiências docentes, pelo que, naturalmente, também podem ser objecto de críticas e de discordância.

A terceira observação é a de que o facto de termos intitularmos o nosso trabalho Teorias das Relações Internacionais: da abordagem clássica ao debate pós-positivista[9] resulta duma dupla intenção, que é a de chamar à atenção para a extrema diversidade teórica que se pode encontrar no âmbito da disciplina, bem como para o controverso debate que, desde finais dos anos 80 do século XX se instalou na Teoria das Relações Internacionais, por um processo de importação e transposição de ideias, que teve origem em disciplinas como a Filosofia, a Sociologia e a Literatura. A quarta observação é que este debate é, sem qualquer margem para dúvidas, amplamente difundido pelo pensamento anglo-saxónico da disciplina, pelo que, ao procedermos à sua transposição para Portugal, estamos, inevitavelmente, não só em débito intelectual com este, como incorremos no risco, que atrás apontamos, de podermos ser reprodutores acríticos do mesmo e de enviesarmos a imagem da disciplina por um enfoque excessivo na agenda de investigação do universo intelectual anglo-saxónico. Contudo, achamos que vale a pena correr esses riscos. Desde logo, o facto de temos consciência destes, é, em si mesmo, já um bom ponto de partida. Depois, porque este debate, ao contrário dos anteriores que são razoavelmente conhecidos em Portugal, é praticamente desconhecido, ou, pelo menos, bastante ignorado[10]; mas também porque este é marcado, quer por saudáveis preocupações epistemológicas[11] e ontológicas[12], quer por um certo radicalismo de perspectivas que se opõem às abordagens realistas-racionalistas-empiricistas tradicionalmente dominantes na disciplina, cujas implicações vale a pena analisar com alguma profundidade.

Por último, vamos agora fazer uma breve referência à estrutura do trabalho que a seguir apresentamos. Este foi dividido em duas partes que podem ser consideradas essencialmente autónomas entre si. Numa Iª Parte, expomos e analisamos, de uma maneira essencialmente cronológica, os grandes debates (re)fundadores da disciplina desde a célebre controvérsia que opôs realistas a idealistas, e que marcou definitivamente a autonomização do estudo académico das Relações Internacionais, passando pelo debate entre behavioristas a tradicionalistas e pelo debate inter-paradigmático, e terminando com o mais recente debate pós-positivista. Por sua vez, na IIª Parte, são analisadas algumas das teorias gerais ou parciais que, na nossa óptica, representam as principais propostas contemporâneas da disciplina, e que, implícita ou explicitamente, contêm visões prospectivas, por procurarem antever e/o influenciar a construção do Mundo em devir. O objectivo é naturalmente explicar o teor dessas diferentes propostas, mas é também o de enquadrá-las nas grandes correntes teóricas da disciplina. Essas propostas e/ou visões do Mundo em devir são a(s) realista(s), a(s) liberal(ais), a(s) construtivista(s) e a(s) pós-modernista(s). Em ligação com estas «visões do Mundo»[13], apresentamos, no final do nosso trabalho, um estudo de caso teórico sobre a polimorfia das concepções da segurança, cujo objectivo é analisar as diferentes formas de conceptualização dessa realidade e evidenciar a maneira como essas conceptualizações se articulam com as diferentes correntes teóricas da disciplina.

 

NOTAS

[1] Popper (1948 [1964]: 336).

[2] Utilizamos a prática usualmente instituída de usar a sigla «RI» para falar da disciplina e a palavra «relações internacionais», por extenso, para falar do conteúdo da disciplina.

[3] Contrariando o discurso laudatório que habitualmente se pode encontrar nos textos da disciplina, esta é também a opinião do britânico Barry Buzan (1995 [1997]: 214), quando, ao pronunciar-se sobre esta questão, refere que «International Relations theory is still in its infancy, and there is no disguising the fact that the discipline is theoretically primitive».

[4] Ainda assim, importa lembrar há contribuições indubitavelmente meritórias feitas entre nós. Desde logo, o trabalho fundador de Adriano Moreira, ao qual se deve a primeira e única Teoria das Relações Internacionais até agora elaborada por um académico português, a qual foi publicada pela primeira vez no ano de 1996, e já teve várias reedições. Para além deste trabalho fundador, e sem quaisquer preocupações de exaustividade, importa referir que outras publicações de relevo foram feitas nesta área, como, por exemplo, o trabalho de Manuel Gonçalves Martins, especialmente direccionado para o campo da política internacional, intitulado Relações Internacionais (Política Internacional), originalmente publicado em 1995 e também já objecto de uma reedição, em finais do ano transacto., ou o de António José Fernandes, sobre as organizações internacionais, Relações Internacionais. Factos, Teorias e Organizações (1990). Entretanto, outros trabalhos relevantes surgiram recentemente, como o Curso de Relações Internacionais de Adelino Maltez e as Visões do Mundo de João Gomes Cravinho, ambos editados em 2002, e que parecem apontar para um interesse acrescido pela produção teórico-académica no âmbito da disciplina, neste início de século XXI.

[5] Segundo Huntzinger (1986: 8), em França, as únicas excepções dignas de registo eram constituídas pelos trabalhos de cariz sociológico, ou histórico-sociológico, de Raymond Aron e Marcel Merle.

[6] Sobre a agenda de investigação da Escola Inglesa e a sua contribuição para o estudo académico e a produção teórica das RI, ver Barry Buzan (1999) e João Marques de Almeida (1999).

[7] Parece-nos ser bastante razoável admitir que existem, um pouco por toda a Europa, contributos autónomos relevantes para a disciplina, especialmente em França, na Alemanha e nos países Escandinavos, e até em outras áreas do Mundo, como, por exemplo, no Japão, na China, na Índia ou no Brasil. O problema é que estes normalmente não são objecto de divulgação fora dos países onde são produzidos, nem junto do Mundo anglo-saxónico, o que leva a que estes contributos sejam mais ou menos ignorados, dada a enorme predominância na disciplina dos textos escritos em língua inglesa.

[8] Quando nos referimos à Teoria das Relações Internacionais, no singular, estamos a dar-lhe um sentido amplo, que é próximo daquele que lhe é dado por Philippe Braillard [ed.] (1977a: 113), e que abrange quer as teorias gerais, quer as próprias teorias parciais: «Por uma teoria geral das relações internacionais entendemos uma teoria que procura que procura, a partir de uma visão global, esclarecer estas relações no seu conjunto, por oposição a uma teoria parcial que se limita a um aspecto destas relações, a um tipo de processo que elas manifestam, que procura explicar em detalhe certos tipos precisos de comportamento».

[9] O nome debate «pós-positivista» é tomado de empréstimo a um título da autoria de Yosef Lapid The Third Debate: On the Prospects of International Theory in a Post-positivist Era, originalmente publicado na revista académica norte-americana, International Studies Quarterly, no ano de 1989.

[10] Algumas excepções a este statu quo de indiferença ao debate pós-positivista são os artigos de José Manuel Pureza (1998a e 1998b), desenvolvidos, sobretudo, numa perspectiva socológico-jurídica, e, também, o trabalho de investigação de Ana Paula Brandão (1999) sobre a reconceptualização da segurança no âmbito das relações internacionais, onde a diversidade teórica que marca o debate pós-positivista é bem evidenciada.

[11] Epistemológicas, no sentido que habitualmente é dado à palavra no âmbito da Filosofia das Ciências, que é o estudo da origem, da natureza ou do valor do conhecimento, ou seja, o estudo crítico dos princípios, das hipóteses e resultados das diferentes Ciências, procurando determinar-lhes a origem lógica, o valor e o alcance objectivo.

[12] Ontológicas, no sentido em que normalmente é dado no âmbito da Filosofia, que é o de uma reflexão de tipo sobre ser enquanto ser, que aqui é efectuada especificamente sobre a disciplina de RI.

[13] Expressão que tomamos de empréstimo ao título do livro de João Gomes Cravinho, Visões do Mundo. As Relações Internacionais e o Mundo Contemporâneo (2002).

 

© José Pedro Teixeira Fernandes

© Almedina, 2009 (excerto, Introdução)