Dificilmente se encontrará outro povo mantendo durante tanto tempo relações tão conflituais e ambíguas com a Europa, formando um contencioso feito de invejas e ressentimentos, de fascinação e de terror, tudo isto depositado em sedimentos de preconceitos, onde se enterra toda a abordagem pouco racional do problema. Assim, uma vez cometida a imprudência da escolha de tal objecto de estudo, era sobretudo necessário fazer prova de humildade, não pretendendo fazer a história dos turcos e da sua relação com o Ocidente, enumerar os seus pretensos defeitos e qualidades, para acabar por lhe atribuir bons e maus pontos, ou, ainda, revestir-se duma objectividade condescendente esquecendo os milhares de volumes já escritos sobre este assunto.
Stéphane YERASIMOS (1994a: 9-10)
Encontrando-se no centro da problemática das Relações Internacionais, a questão da «identidade»[1] cultural/social/nacional só nos anos 90 do século XX adquiriu, especialmente sob o impulso dos conflitos da ex-União Soviética e da ex-Jugoslávia, uma merecida atenção nos estudos desta área académico-científica. Todavia, apesar do grande aumento de interesse por esta problemática no Mundo Ocidental, a generalidade das abordagens não conseguiu, ainda hoje, particularmente em Portugal, ultrapassar uma certa superficialidade, quer factual, quer analítica. Provavelmente, a este facto não são estranhos nem o carácter periférico do Estado português, face à Geografia e à História europeia, nem as exigências de uma análise académico-científica de tipo pluridisciplinar que esta temática requer.
Esta constatação não deixa de causar preocupações, sobretudo se tivermos em conta que, para o português e europeu do século XXI, a questão da «identidade» se reveste de uma especial importância, que se pode facilmente aferir pela observação das seguintes tendências histórico-sociológicas, e pelas interrogações que estas inevitavelmente projectam quanto aos seus desenvolvimentos futuros:
(i) o ideal de uma identidade (nacional[2]) relativamente homogénea e controlada pelo Estado, está, cada vez mais, a ser confrontado com uma realidade cultural-nacional muito mais heterogénea e pluralista, de tipo multicultural;
(ii) o processo de integração da União Europeia (UE) pode estar a produzir, ainda que lentamente, uma nova identidade – a europeia –, a qual, no futuro, poderá tender para uma sobreposição face à(s) identidade(s) nacionais;
(iii) os sucessivos alargamentos da UE aos países do Centro e Leste europeu, e, especialmente, o possível alargamento à República da Turquia, oriunda de uma matriz cultural-civilizacional com um grau de diferenciação mais evidente, colocam não só a interrogação de saber quais as consequências destes processos ao nível político e estratégico, mas, também, a questão da possibilidade, e dos limites, duma osmose cultural, ou seja, da possibilidade de integração de culturas claramente diferenciadas, numa identidade europeia que se pretende (minimamente) harmoniosa e consistente.
Estas últimas são as questão centrais da investigação que a seguir apresentamos, com particular incidência no problema identitário. Para a sua análise, propomo-nos explorar aquele que, na nossa opinião, é, muito provavelmente, o caso mais interessante, multifacetado e complexo de (re)construção de uma identidade cultural-nacional, em moldes radicalmente diferentes do passado, que se pode encontrar no mundo do século XX/XXI: a transformação do antigo Império Otomano na actual República da Turquia. Desde logo, porque envolveu um esforço de metamorfose cultural, percebido no exterior como «ocidentalizador», que pode ser considerada único no contexto Euro-Asiático, uma vez que se desenrola entre duas áreas civilizacionais bem diferenciadas e historicamente rivais: o Ocidente e o Islão. Mas também porque este processo teve, e tem, consequências sobre a Europa, cuja imagem de si própria também não é, propriamente, uma constante ao longo da história.
Um estudo académico-científico com o(s) objectivo(s) que nos propomos, levanta, naturalmente, dificuldades de tipo metodológico e epistemológico a qualquer investigador originário do Mundo Ocidental, especialmente em Portugal, pela reduzida dimensão da investigação existente nesta área específica das Ciências Sociais e Humanas. Desde logo, em termos metodológicos, levanta-se o problema de praticamente não existirem quaisquer documentos oficiais, ou mesmo fontes secundárias, em língua portuguesa. Há também o problema do acesso às fontes em língua turca, dificuldade essa que pode ser ultrapassada, pelo menos em parte, pelo recurso à informação oficial do governo da República da Turquia, publicada em língua inglesa, nos «sites» oficiais na Internet dos seus diferentes orgãos ministeriais e organismos associados.
Por outro lado, em termos epistemológicos, levanta-se aqui, e com especial intensidade, a questão do etnocentrismo uma vez que o tema em análise implica, frequentemente, o recurso às perspectivas do «outro», quer sobre si póprio, quer sobre nós «europeus» e «ocidentais», tudo isto num objecto de análise que implica conjugar conceitos, ideias e teorias oriundas de duas áreas culturais-civilizacionais, as quais, apesar das suas frequentes interacções, têm, paralelamente, as suas próprias matrizes culturais específicas profundamente enraizadas. Também aqui, a diversificação das fontes e a confrontação de perspectivas pareceu-nos ser a melhor maneira de tentar reduzir, o mais possível, o inevitável etnocentrismo subjacente a uma investigação particularmente complexa, onde o substracto cultural do investigador não é um mero fait-divers e a objectividade é um ideal nunca atingido.
NOTAS
[1] Conforme faz notar o antropólogo Bozkurt Güvenç (1997:2), a identidade permite responder a uma questão primordial: «quem és tu?». Muitas das respostas a essa questão podem ser qualificadas como escolhas pessoais; outras são modelos de identidades sociais (colectivas) que podem ser qualificadas como culturais (linguística, étnica, religiosa) ou de tipo nacional (oficial ou ideológica). A afiliação tende a ser identificada com um grupo social onde o voluntário, ou o imposto, leva um sujeito a demarcar-se do(s) outro(s), através de um processo de metacontraste, onde se acentuam aquelas características que o separam do(s) «outro(s)». Por outras palavras, a identidade social envolve, simultaneamente, um processo de inclusão e exclusão e está associada a uma categorização nós/eles. Para além disso, importa notar que as imagens nunca são congruentes ou similares na medida em que o conceito de «nós» é tendencialmente diferente das imagens externas que os outros têm «sobre nós».
[2] Para além das tradicionais categorias de identidade (individual, social e nacional), o sociólogo Manuel Castells (1997 [2003]: 4-5) fala na existência de outras categorias como a «identidade legitimadora», entendida como a identidade que «é introduzida pelas instituições dominantes na sociedade no intuito de expandir e racionalizar a sua dominação sobre os actores sociais» (por exemplo, a identidade nacional que é gerida e controlada pelas instituições do Estado); e na «identidade de resistência» que, por sua vez, este define como aquela que é «criada por actores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica de dominação, construíndo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos» (por exemplo, os grupos sociais, étnicos e/ou religiosos que não são reconhecidos pelo Estado).
© José Pedro Teixeira Fernandes
© Imprensa de Ciências Sociais, 2005 (excerto, Introdução)