Agora que há razões de substância para uma modificação dos Tratados, a União encontra-se refém dos seus erros e bloqueada pelo medo das ratificações. A Grécia e o Euro são vítimas colaterais desse bloqueio.
1. A crise da dívida externa da Grécia voltou a agudizar-se durante o mês de Junho. Com as negociações entre os credores e o governo grego num impasse, a possibilidade de incumprimento – leia-se, bancarrota – paira no ar. Por sua vez, a discussão em torno de um hipotético abandono do Euro reemergiu com nova intensidade. Na Grécia, no entanto, os eleitores têm-se mostrado largamente favoráveis à sua permanência. O actual governo, que partilha da mesma visão, faz, simultaneamente, o (im)possível por governar sem as políticas de austeridade das instituições europeias e FMI. Do lado da União Europeia, uma hipotética opção grega de abandono do Euro, para desbloquear este (in)sanável impasse, tem sido vista negativamente, por razões económicas e políticas. Afinal, o Euro foi concebido não só como um projecto económico, mas também político. No final da década de 1990, esperava-se que a sua adopção desencadeasse uma maior integração, numa lógica política federalizante. O falhado Tratado Constitucional Europeu, abandonado em 2005, era uma peça dessa estratégia. Por essa razão, em termos políticos, qualquer saída do Euro, seja da Grécia (o “Grexit” popularizado pela imprensa anglo-saxónica) ou de outro Estado, será sempre vista como uma derrota da integração europeia. O seu progressivo e contínuo aprofundamento fica em causa. No terreno económico-financeiro a saída é também potencialmente (muito) negativa. Isso ocorre quer pelo previsível impacto desestabilizador nos mercados financeiros, quer pelas eventuais perdas que acarretaria nos credores – União Europeia e Estados-membros incluídos –, quer ainda por afectar a confiança no Euro, a nível interno e internacional. No entanto, várias declarações políticas de responsáveis europeus e do FMI sugerem não existir hoje o mesmo grau de receio que existia em 2012. Na altura, temia-se que uma hipotética saída grega arrastasse, de forma imparável, outras economias vulneráveis Sul da Europa (Portugal, Espanha ou até a Itália). Aparentemente, hoje não. Se essa percepção é correcta ou subestima as consequências dos “estilhaços”, é uma questão em aberto que só o rumo dos acontecimentos poderá clarificar.
2. A discussão sobre a saída do Euro, da Grécia ou de outro Estado em dificuldades, não é nova. Praticamente desde o desencadear da crise financeira e económica, no Verão de 2008, que está presente, com maior o menor visibilidade, na opinião pública. No entanto, é centrada quase exclusivamente nos aspectos económico-financeiros. A faceta jurídica, ou melhor, político-jurídica do problema, é relativamente secundarizada, sendo certo que, em qualquer hipotético cenário de saída, as questões político-jurídicas teriam um peso fundamental na decisão. Tal como os aspectos económico-financeiros, trata-se de uma matéria complexa, especialmente nos seus aspectos puramente jurídicos, e que merece uma abordagem especializada. Ainda que de forma simplificada, vale a pena olhar aqui para o problema e tentar identificar as suas principais vertentes e possíveis soluções. Em primeiro lugar, e este é talvez o aspecto mais conhecido da opinião pública, os Tratados Europeus não prevêem, expressamente, a saída do Euro. A única coisa que está prevista, no artigo 50.º do Tratado da União Europeia, é a saída da própria União Europeia. Em qualquer caso, o Estado-membro que optar por essa via, após notificar dessa intenção o Conselho Europeu (art. 50.º n.º 1), terá de negociar com a União Europeia “um acordo que estabeleça as condições da sua saída, tendo em conta o quadro das suas futuras relações com a União” (art. 50.º n.º 2). Estabelece ainda o mesmo dispositivo (art. 50.º n.º 3) que os Tratados “deixam de ser aplicáveis ao Estado em causa a partir da data de entrada em vigor do acordo de saída ou, na falta deste, dois anos após a notificação.” Em termos de respeito pela legalidade dos Tratados, a hipótese de uma saída unilateral do Euro, feita, em termos automáticos, através de uma mera notificação desse Estado-membro à União Europeia (por exemplo, ao Conselho Europeu e BCE), está afastada. Quer dizer, “de jure”, um Estado-membro só poderá abandonar a zona Euro saindo, também, da União Europeia. Eventualmente renegociaria, depois, nova adesão a esta, exceptuando o uso do Euro. Se esse processo é concebível numa lógica puramente jurídica, é bastante improvável em termos políticos. A saída e reentrada de um Estado-membro na União seria vista como uma coisa estranha e bizarra pela opinião pública, para além doutros impactos negativos sérios, a nível de certeza das regras jurídicas aplicáveis e do funcionamento económico. Assim, a hipótese mais plausível – provavelmente a única imaginável com algum bom senso –, é a de uma saída negociada. Se os Tratados Europeus tivessem previsto a saída do Euro no seu dispositivo, essa obrigação de negociação, pela multiplicidade de assuntos envolvidos (por exemplo, a moeda em que seriam pagas as obrigações internacionais do Estado, dos contratos de privados, a participação no BCE, etc.), seria certamente incluída na formulação legal. Tal formulação abrangeria provavelmente também a negociação de um compromisso sobre a forma de funcionar no período transitório, incluindo ao nível dos movimentos de capitais. Por outras palavras, seria necessário um acordo ou tratado, entre a União Europeia e o Estado que abandonasse o Euro. Este regularia as relações transitórias e futuras, tal como está previsto no caso de uma saída voluntária da União Europeia. A dificuldade óbvia, do ponto de vista político-jurídico, é que, no caso do Euro, isso só pode ser feito, ao que tudo indica, com alteração dos Tratados. Para além da complexidade intrínseca das negociações técnicas, há o problema da ratificação por todas as partes envolvidas. Enfrentará, previsivelmente, o obstáculo (inultrapassável?) dos referendos.
3. A questão da hipotética saída da Grécia da Zona Euro, e a eventual necessidade de revisão dos Tratados, poderá interligar-se com a pretensão britânica de renegociar a sua relação com a União Europeia. Várias das reivindicações britânicas, se forem aceites, implicarão a renegociação dos Tratados, de forma limitada ou abrangente. É o caso, por exemplo, da pretensão de limitar o acesso aos benefícios sociais de trabalhadores de outros Estados-membros. Em termos jurídicos, esta colide, de forma clara, com os atuais princípios do mercado único e da não discriminação em razão da nacionalidade. Nesse cenário, será interessante ver em que medida os britânicos irão tentar aproveitar o “timing” de uma eventual saída grega do Euro, para fazer valer a sua própria agenda política. Seja qual for a evolução, o que se verifica é que a integração europeia está numa fase fortemente instável e de futuro incerto. Isso ocorre por razões ligadas ao crescente eurocepticismo em vários Estados-membros, como no caso britânico. Ocorre também pela própria arquitectura dos Tratados. São demasiado federalizantes em certas áreas, como na moeda; são demasiado “nacionais” noutras áreas, pelas limitadas capacidades de governação económica e ausência de um orçamento europeu de outra dimensão, o qual permitiria uma ajuda “federal” em tempos de crise. Este desequilíbrio tem reflexos óbvios no caso grego. Independentemente do resultados das atuais negociações sobre a dívida grega, provavelmente só com um redesenho das competências europeias (e nacionais), se encontrará uma solução de estabilização, para casos como o da Grécia. Basicamente, há duas vias possíveis. Um “upgrade” da integração, aumentando as competências da União Europeia; ou, então, um “downgrade”, voltando certas competências a ser nacionais. A primeira é indubitavelmente a mais consentânea com a integração europeia, tal como tem sido entendida até agora. A segunda, falhando as soluções europeístas, pode mostra-se a única exequível. Em termos político-jurídicos, o Tratado de Lisboa não veio responder a nenhuma das dificuldades mais prementes da actualidade. Entrou em funcionamento em 2009, já ultrapassado pela realidade. Ao não conter disposições específicas sobre o processo de saída voluntária do Euro, acrescentou o imbróglio jurídico ao problema económico-financeiro. Numa União de Estados soberanos, essa possibilidade, ainda que altamente indesejável, nunca deveria ter sido descartada. Por outro lado, não inclui mecanismos de governação económica europeia coerentes com as exigências de uma moeda única. Teria sido mais prudente não ter avançado para o Euro sem estes. Independentemente das intenções, o projecto de Tratado Constitucional Europeu e o Tratado de Lisboa tiveram um resultado: desbarataram simpatia e confiança do eleitorado europeu, sem trazerem soluções jurídico-políticas de relevo. Pior, agora que há razões de substância para uma modificação dos Tratados, a União encontra-se refém dos seus erros e bloqueada pelo medo das ratificações. A Grécia e o Euro são vítimas colaterais desse bloqueio.
© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Público, 18/06/2015
© Imagem: bandeira da República Helénica