Numa União Europeia que deveria estar alicerçada em princípios políticos de igualdade entre os Estados-membros e valores de solidariedade, o regresso de Maquiavel e da realpolitik é um retrocesso.
1. Não é preciso ser um moralista político para ficar consternado, se não mesmo chocado, com os conselhos sobre a arte de bem governar de Maquiavel (Niccolò Machiavelli) na obra O Príncipe do século XVI. Entre os muitos aspectos focados nesse tratado de governo encontram-se as relações entre quem governa e quem é governado e o respeito pelas promessas efectuadas. É o que na linguagem clássica se chamava honrar a palavra. Não é uma preocupação específica do Renascimento, nem das sociedades autocráticas. Nas atuais sociedades democráticas da União Europeia o cidadão comum tem demasiadas vezes a sensação das promessas políticas não serem cumpridas e de que os governantes faltaram à palavra. Pode isso ser considerado uma “boa” forma de governar? Atente-se na reflexão de Maquiavel sobre este problema intemporal da política (O Príncipe, cap. XVIII, “De que modo os príncipes devem cumprir a sua palavra): “Todos sabem quão louvável é um príncipe ser fiel à sua palavra e proceder com integridade e não com astúcia; contudo, a experiência mostra que só nos nossos tempos fizeram grandes coisas aqueles príncipes que tiveram em pouca conta as promessas feitas e que, com astúcia, souberam transtornar as cabeças dos homens; e por fim superaram os que se fundaram na sua lealdade.” Mas o cinismo político de Maquiavel e o seu desprezo pelo vulgo – na linguagem política de hoje o cidadão comum, ou as massas –, não se fica por aqui. Como este faz notar, o governante que engana achará sempre quem se deixe e enganar (idem): “Nem nunca faltaram a um príncipe razões para colorir a sua falta à palavra. Disto se poderiam dar infinitos exemplos modernos e mostrar quantas pazes, quantas promessas ficaram írritas e nulas pela falta de palavra dos príncipes; aquele que melhor soube proceder como a raposa, melhor se houve. Mas é necessário saber bem colorir esta natureza e ser grande simulador e dissimulador: os homens são tão simples e obedecem tanto às necessidades presentes que quem engana achará sempre quem se deixe enganar.” Quer dizer, o fundamental é que a acção política seja percebida pelo vulgo, ou seja pelas massas, como um sucesso, estando os meios empregues justificados pelos fins (ibidem): “Faça, pois um príncipe por vencer e por manter o seu Estado; os meios serão sempre julgados honrosos e de todos louvados. Porque o vulgo deixa-se sempre levar pela aparência e o sucesso das coisas; e no mundo não há senão vulgo e os poucos só têm lugar quando os muitos não têm em que apoiar-se.”
2. Ao contrário do que se poderia supor, o realismo político e a realpolitk, um termo germânico ligado à política europeia do século XIX, não têm só adeptos e praticantes – frequentemente não assumidos –, na área conservadora, próxima da direita política. Provavelmente o caso mais conhecido dessa atitude intelectual e política é o do ex-Secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger. No seu livro Diplomacia (1994), Kissinger faz uma quase apologia das virtudes da realpolitik em matéria de diplomacia e política internacional. No outro extremo do espectro político, o intelectual marxista italiano Antonio Gramsci (1891-1937) exemplifica o fascínio suscitado pelas ideias de Maquiavel – e de alguma forma da realpolitik –, à esquerda. Gramsci fez uma (re)leitura de O Príncipe não só como um tratado de ciência da política, mas também como texto voltado para a acção de carácter revolucionário. Nos Cadernos do Cárcere, escritos na prisão durante a Itália fascista, entre 1929-1935, procurou adaptar Maquiavel ao ideário socialista-comunista no contexto da época. O Príncipe do Renascimento que para conquistar e conservar o poder do Estado recorria à acção política amoral, deu lugar à vanguarda revolucionária do Partido – “O Príncipe moderno” –, agora com o objetivo de conquistar e manter a hegemonia do proletariado. Tal como Maquiavel, Gramsci validou o recurso estratégias políticas amorais para conquistar e preservar o poder: alianças de conveniência, guerra de posições, contra-hegemonia, etc. Face a este fascínio por Maquiavel, à direita e à esquerda, várias interrogações vêm à mente. Na União Europeia e Estados-membros do século XXI, o realismo político amoral é uma coisa do passado? A acção política como esfera humana separada das questões morais, cruamente retratada por Maquiavel, foi relegada para o caixote do lixo das ideias políticas? A realpolitk, assente na hierarquia do poder, na aferição crua do interesse nacional e num pragmatismo que não cede a valores e princípios morais, foi afastada da política nacional e europeia? Em sociedades democráticas, onde os governantes submeteram um programa político aos eleitores com um catálogo de medidas a adoptar, há espaço para o realismo político amoral e a realpolitk? É politicamente legítimo, e moralmente aceitável, pressionar pequenos Estados a aceitar compromissos internacionais que grandes potências provavelmente nunca aceitariam?
3. Analisar a política interna grega e as negociações na União Europeia à luz dos “conselhos ao Príncipe” de Maquiavel pode ajudar a compreender a actual forma de fazer política. Leva também a reflectir sobre as questões de moralidade e valores políticos, ou falta deles, que a crise económica-financeira iniciada em 2007//2008 fez emergir. Começando pela Grécia, o referendo de 5/7 é um caso óbvio de análise. Um referendo nunca é um puro exercício de democracia directa, estranho ao cálculo político. O timing em que é efectuado, bem como o teor da pergunta aos eleitores, são aspectos clássicos desse cálculo, com influência no resultado. Estes pesaram na decisão de avançar para o referendo de Alexis Tsipras e ajudam a explicar a esmagadora vitória do “não”. As subsequentes negociações com a União Europeia e FMI levantam, no entanto, sérias questões políticas e morais. A campanha do “não” assentou na ideia de melhoria da posição negocial grega e da recusa de mais austeridade. Na realidade, nem uma, nem outra, parecem estar a ocorrer. A proposta do governo grego submetida ao Eurogrupo retomou, no essencial, aquilo que tinha sido rejeitado pelo “não”. Abriu brechas no Syriza e na coligação governamental. Panagiotis Lafazanis, o Ministro da Reconstrução Produtiva do Syriza, e Panos Kammenos, o Ministro da Defesa do ANEL/Gregos Independentes, refutaram-na. No Parlamento, as fracturas foram também visíveis. Dezassete deputados da Syriza insurgiram-se, incluindo a Presidente do Parlamento. Foi a oposição ao governo do establishment europeísta – PASOK e Nova Democracia, mais o centrista To Potami/O Rio –, que permitiu obter uma ampla maioria parlamentar. Mas esses eram os partidos da campanha pelo “sim”… Entre muitos que votaram “não”, o sentimento é o de terem sido defraudados pela viragem política nas negociações. A reviravolta de Alexis Tsipras ecoa demasiado os conselhos de Maquiavel: “[…] nunca faltaram a um príncipe razões para colorir a sua falta à palavra”, pois os homens “obedecem tanto às necessidades presentes que quem engana achará sempre quem se deixe enganar.” Mas não é só na política interna grega que as ideias de Maquiavel parecem ser a chave de leitura dos processos políticos. Na União Europeia também. Após ter falhado a estratégia de aliciar o atual governo grego – protagonizada, entre outros, pelo Presidente da Comissão Europeia –, o “não” no referendo de 5/7 deu lugar a uma abordagem punitiva, numa lógica crua de poder. Esta forma de actuar parece também extraída de Maquiavel (cap. XIX, “Da Crueldade e da clemência e se mais vale ser amado que temido, ou temido que amado”). Aí pode ler-se o seguinte: “Responde-se que ambas as coisas seriam de desejar; mas porque é difícil juntá-las, é muito mais seguro ser temido que amado, quando haja de faltar uma das duas.” Numa União Europeia que deveria estar alicerçada em princípios políticos de igualdade entre os Estados-membros e valores de solidariedade, o regresso de Maquiavel e da realpolitik é um retrocesso. Alimenta uma lógica política perversa e um círculo vicioso de desconfiança, injustiça e nacionalismo fracturante. Não augura nada de bom para o futuro. A União Europeia é o maior legado de paz e prosperidade que as gerações anteriores de europeus nos deixaram. Cabe-nos a responsabilidade de o continuar e não de destruí-lo.
© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Público, 13/07/2015
© Imagem: capa do Livro de Peter Constantine (trad. e editor), “The Essential Writings of Machiavelli” (Modern Library, 2007)