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1. A guerra voltou à Europa! Esta frase, dita inúmeras vezes após o ataque da Rússia à Ucrânia, traduz o enorme choque que gerou a invasão de 24 de Fevereiro de 2022. Todavia, não foi apenas o voltar da guerra ao solo europeu que trouxe uma realidade trágica e desconcertante. Todo o quadro mental anterior estava direccionado para que as guerras convencionais do século XXI, a ocorrerem — e muitos na Europa achavam isso ultrapassado —, especialmente se feitas por uma grande potência, seriam travadas de forma bem mais futurista e sem as imensas perdas de vidas humanas do passado em sombrias trincheiras, terrenos repletos de minas, ou duelos de artilharia. As guerras ocorreriam apenas com números reduzidos de efectivos no terreno (soldados profissionais), com sofisticada tecnologia de grande precisão e poder destrutivo e amplos meios aéreos convencionais, bem como drones e inteligência artificial. Crescentes duelos seriam ainda travados no ciberespaço, os quais, em parte, substituiriam as lutas cinéticas e a destruição material. Ninguém estava preparado para uma longa guerra de exaustão com centenas de milhares de efectivos conscritos no terreno, ao longo de uma frente de cerca de 1.000 quilómetros, a terem se ser constante renovados, com múltiplos esforços de mobilização e de reenvio de novos efectivos, com constantes duelos de artilharia, com trincheiras e linhas defensivas estáticas, com centenas de milhares de mortos e feridos de ambos os lados.
2. Talvez não exista nada de mais perigoso para a humanidade do que a ideia de uma vitória rápida e decisiva, a baixo custo, numa guerra, conseguida por um génio militar que depois é idolatrado como exemplo a seguir. A história mostra como o instalar dessa ideia na cultura estratégico-militar de um país está na origem de algumas das maiores tragédias da humanidade. Explica muito das guerras de exaustão mais devastadoras, desde logo da engrenagem da Primeira Guerra Mundial e da Segunda Guerra Mundial. O que normalmente acaba por acontecer é que essa convicção aumenta o aventureirismo militar e a propensão para assumir crescentes riscos, desencadeando guerras inebriadas pela visão de um sucesso rápido que deixará os adversários paralisados, sem tempo e capacidade de resposta. O culto do génio da estratégia — continuador de Frederico II da Prússia, de Napoleão Bonaparte, ou Helmuth von Moltke, entre outros — que, pela sua visão e liderança extraordinária, tem vitórias decisivas numa blitzkrieg (“guerra relâmpago”) que desorganiza o adversário através do efeito surpresa, do choque psicológico e da velocidade e/ou poder de fogo obtidas pela concentração de forças, continua a fazer estragos nossos dias. A Rússia de Vladimir Putin é o exemplo mais flagrante dessa narrativa perversa (mas a Ucrânia, pelos seus sucessos em repelir os russos em 2022, também não escapou à ilusão da vitória rápida e decisiva como agora se vê). Os sucessos da Rússia nas guerras relâmpago da Geórgia (2008), da anexação da Crimeia (2014) e da intervenção na guerra civil da Síria (a partir de finais de 2015) criaram um excesso de confiança de que tais sucessos militares seriam (facilmente) replicáveis. O cálculo inicial era de que uma blitzkrieg levaria a quebrar o poder político na Ucrânia e a instalar em Kiev governantes pró-russos, sem dar tempo a que uma coligação internacional se formasse para impedir esse desfecho político-militar. O resultado foi um grande fiasco militar e a gradual transformação de uma guerra relâmpago de baixo custo numa guerra de desgaste e exaustão com elevadíssimas perdas humanas e materiais sem fim à vista.
3. Há um livro do historiador militar da Universidade de Boston nos EUA, Cathal Nolan, sobre o “fascínio da batalha” (The Allure of Battle, Oxford University Press, 2017) que é um dos textos mais estimulantes e que mais obrigam a repensar a guerra. A sua leitura é uma mais-valia, quer para o cidadão comum, quer para o especialista militar, contrariando imagens superficiais e belicismos que imaginam intervenções militares rápidas e decisivas. Como Cathal Nolan refere na introdução, o livro propõe-se “corrigir a memória pública distorcida do lugar da batalha na guerra moderna”, substituindo “as imagens populares da batalha decisiva por uma apreciação sóbria” em guerras “decididas por combates prolongados que mataram muitas centenas de milhares de pessoas no século XVIII, milhões no século XIX e dezenas de milhões no século XX. Nestas guerras modernas, travadas em escalas cada vez mais maciças para fins cada vez mais totais, por quaisquer meios que a tecnologia industrial e a ciência proporcionassem, o desgaste provou quase sempre ser o caminho para a vitória e para a derrota”. Embora escrito antes da invasão russa da Ucrânia, ajuda a compreender muito daquilo a que estamos hoje a assistir. Para além de mostrar como a convicção de uma vitória rápida numa batalha decisiva é, na grande maioria dos casos, uma ilusão perversa que alimenta o aventureirismo militar e acaba em longas e destrutivas guerras de desgaste, para além de mostrar ainda que uma vitória militar decisiva é incomum, obriga a repensar o que pode significar a transformação da guerra da Ucrânia num longo conflito de desgaste e exaustão.
4. Mas a quem favorece a transformação da invasão da Ucrânia numa longa guerra de exaustão? Esta é a questão mais importante que se pode colocar nesta altura. O que a história nos mostra é que a larga maioria das grandes guerras é ganha pelo beligerante que detém o maior número de recursos fundamentais de poder. A razão é simples: são esses recursos que permitem sustentar uma guerra no longo prazo para além do heroísmo e vitórias tácticas, por mais brilhantes que sejam. Todavia, neste caso, a resposta é difícil de dar. Se consideramos só a Ucrânia e a Rússia como beligerantes, há uma vantagem clara russa numa guerra de atrito prolongada. Tem uma população que actualmente será mais de quatro vezes superior à da Ucrânia (incluindo múltiplas minorias onde pode recrutar), quer devido aos territórios ocupados no Donbass e Crimeia, quer aos milhões de ucranianos que fugiram para o exterior. Tem uma capacidade industrial militar muito superior à da Ucrânia, não tanto na qualidade, mas especialmente na quantidade de produção de munições e equipamentos militares (e tem ainda um enorme arsenal nuclear). Dispõe ainda de uma produção alimentar e energética muito considerável, a qual tem sido usada como arma no conflito. Todavia, a Ucrânia tem a suportá-la uma poderosa coligação ocidental, quer a nível militar (países da NATO), quer ao nível económico-financeiro (EUA, União Europeia, G7), embora sem envolvimento directo na guerra com soldados no terreno. Ao mesmo tempo, essa coligação ocidental impôs pesadas sanções económicas à Rússia que a vulnerabilizam. Até agora, o resultado de tudo isto tem sido largamente um impasse. No início, a Rússia fracassou estrondosamente no intento de controlar toda a Ucrânia. Mas a contra-ofensiva ucraniana deste ano, até agora, claramente não atingiu os objectivos de recuperação substancial de território, desde logo de voltar a isolar a Crimeia da Rússia em termos de ligação terrestre, replicando os sucessos do final do Verão e Outono de 2022. Vem à mente uma reflexão do livro de Cathal Nolan de que a “guerra ocorre sempre num miasma de contingências”, ou seja, está sujeita à influência de múltiplos acontecimentos possíveis, mas incertos os quais podem alterar decisivamente o seu rumo. Quanto mais o conflito se prolongar, maior a possibilidade de estes influenciarem o rumo dos acontecimentos. Desde uma revolta na Rússia contra Vladimir Putin até uma substancial quebra no apoio à Ucrânia por alterações políticas nos EUA ou na União Europeia, muita coisa pode acontecer, ou não. Uma coisa é certa: nesta longa guerra de atrito ambas as partes estão a arrastar-se até ao abismo da exaustão. Resta saber quem cairá lá primeiro.
© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Público, 18/09/2023
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