O Fim da Paz Perpétua. Geopolítica de um mundo em metamorfose

Com o segundo aniversário da invasão da Ucrânia, que se assinala a 24 de Fevereiro, e uma outra tragédia bélica em curso no Médio Oriente, nunca neste século o mundo esteve numa situação tão perigosa.

A predisposição bélica e as tensões político-militares regressaram em força.

A ideia de um futuro pacífico e de cooperação entre Estados, sonhada por Kant, está a desmoronar-se.

Este livro reflecte sobre o recrudescimento de rivalidades e conflitos a nível internacional e sobre as grandes incógnitas geopolíticas com que estamos confrontados.

Uma das maiores ironias dos tempos conturbados que atravessamos é de índole geográfica. Immanuel Kant viveu em Königsberg, capital da Prússia Oriental, onde escreveu o panfleto Para a Paz Perpétua. Königsberg é hoje Kaliningrado, território russo situado entre a Polónia e a Lituânia, bem perto da guerra em curso no leste europeu. Aí, Putin descerrou em 2005 uma placa em honra de Kant, afirmando a sua admiração pelo filósofo que, segundo ele, «se opôs categoricamente à resolução de divergências entre governos pela guerra». O presidente russo está hoje bem menos kantiano – e o mundo também.

In Prefácio de Nuno Severiano Teixeira

© Excerto do Prefácio de Nuno Severiano Teixeira ao Livro  “O Fim da Paz Perpétua” de José Pedro Teixeira Fernandes (Livros Zigurate, 2024)

©  Imagem: capa do Livro de José Pedro Teixeira Fernandes “O Fim da Paz Perpétua” (Livros Zigurate, 2024)

[Livro financiado pela FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDB/04627/2020.]

Uma longa guerra de exaustão na Ucrânia

1. A guerra voltou à Europa! Esta frase, dita inúmeras vezes após o ataque da Rússia à Ucrânia, traduz o enorme choque que gerou a invasão de 24 de Fevereiro de 2022. Todavia, não foi apenas o voltar da guerra ao solo europeu que trouxe uma realidade trágica e desconcertante. Todo o quadro mental anterior estava direccionado para que as guerras convencionais do século XXI, a ocorrerem — e muitos na Europa achavam isso ultrapassado —, especialmente se feitas por uma grande potência, seriam travadas de forma bem mais futurista e sem as imensas perdas de vidas humanas do passado em sombrias trincheiras, terrenos repletos de minas, ou duelos de artilharia. As guerras ocorreriam apenas com números reduzidos de efectivos no terreno (soldados profissionais), com sofisticada tecnologia de grande precisão e poder destrutivo e amplos meios aéreos convencionais, bem como drones e inteligência artificial. Crescentes duelos seriam ainda travados no ciberespaço, os quais, em parte, substituiriam as lutas cinéticas e a destruição material. Ninguém estava preparado para uma longa guerra de exaustão com centenas de milhares de efectivos conscritos no terreno, ao longo de uma frente de cerca de 1.000 quilómetros, a terem se ser constante renovados, com múltiplos esforços de mobilização e de reenvio de novos efectivos, com constantes duelos de artilharia, com trincheiras e linhas defensivas estáticas, com centenas de milhares de mortos e feridos de ambos os lados. 

2. Talvez não exista nada de mais perigoso para a humanidade do que a ideia de uma vitória rápida e decisiva, a baixo custo, numa guerra, conseguida por um génio militar que depois é idolatrado como exemplo a seguir. A história mostra como o instalar dessa ideia na cultura estratégico-militar de um país está na origem de algumas das maiores tragédias da humanidade. Explica muito das guerras de exaustão mais devastadoras, desde logo da engrenagem da Primeira Guerra Mundial e da Segunda Guerra Mundial. O que normalmente acaba por acontecer é que essa convicção aumenta o aventureirismo militar e a propensão para assumir crescentes riscos, desencadeando guerras inebriadas pela visão de um sucesso rápido que deixará os adversários paralisados, sem tempo e capacidade de resposta. O culto do génio da estratégia — continuador de Frederico II da Prússia, de Napoleão Bonaparte, ou Helmuth von Moltke, entre outros — que, pela sua visão e liderança extraordinária, tem vitórias decisivas numa blitzkrieg (“guerra relâmpago”) que desorganiza o adversário através do efeito surpresa, do choque psicológico e da velocidade e/ou poder de fogo obtidas pela concentração de forças, continua a fazer estragos nossos dias. A Rússia de Vladimir Putin é o exemplo mais flagrante dessa narrativa perversa (mas a Ucrânia, pelos seus sucessos em repelir os russos em 2022, também não escapou à ilusão da vitória rápida e decisiva como agora se vê). Os sucessos da Rússia nas guerras relâmpago da Geórgia (2008), da anexação da Crimeia (2014) e da intervenção na guerra civil da Síria (a partir de finais de 2015) criaram um excesso de confiança de que tais sucessos militares seriam (facilmente) replicáveis. O cálculo inicial era de que uma blitzkrieg levaria a quebrar o poder político na Ucrânia e a instalar em Kiev governantes pró-russos, sem dar tempo a que uma coligação internacional se formasse para impedir esse desfecho político-militar. O resultado foi um grande fiasco militar e a gradual transformação de uma guerra relâmpago de baixo custo numa guerra de desgaste e exaustão com elevadíssimas perdas humanas e materiais sem fim à vista.

3. Há um livro do historiador militar da Universidade de Boston nos EUA, Cathal Nolan, sobre o “fascínio da batalha” (The Allure of Battle, Oxford University Press, 2017) que é um dos textos mais estimulantes e que mais obrigam a repensar a guerra. A sua leitura é uma mais-valia, quer para o cidadão comum, quer para o especialista militar, contrariando imagens superficiais e belicismos que imaginam intervenções militares rápidas e decisivas. Como Cathal Nolan refere na introdução, o livro propõe-se “corrigir a memória pública distorcida do lugar da batalha na guerra moderna”, substituindo “as imagens populares da batalha decisiva por uma apreciação sóbria” em guerras “decididas por combates prolongados que mataram muitas centenas de milhares de pessoas no século XVIII, milhões no século XIX e dezenas de milhões no século XX. Nestas guerras modernas, travadas em escalas cada vez mais maciças para fins cada vez mais totais, por quaisquer meios que a tecnologia industrial e a ciência proporcionassem, o desgaste provou quase sempre ser o caminho para a vitória e para a derrota”. Embora escrito antes da invasão russa da Ucrânia, ajuda a compreender muito daquilo a que estamos hoje a assistir. Para além de mostrar como a convicção de uma vitória rápida numa batalha decisiva é, na grande maioria dos casos, uma ilusão perversa que alimenta o aventureirismo militar e acaba em longas e destrutivas guerras de desgaste, para além de mostrar ainda que uma vitória militar decisiva é incomum, obriga a repensar o que pode significar a transformação da guerra da Ucrânia num longo conflito de desgaste e exaustão.

4. Mas a quem favorece a transformação da invasão da Ucrânia numa longa guerra de exaustão? Esta é a questão mais importante que se pode colocar nesta altura. O que a história nos mostra é que a larga maioria das grandes guerras é ganha pelo beligerante que detém o maior número de recursos fundamentais de poder. A razão é simples: são esses recursos que permitem sustentar uma guerra no longo prazo para além do heroísmo e vitórias tácticas, por mais brilhantes que sejam. Todavia, neste caso, a resposta é difícil de dar. Se consideramos só a Ucrânia e a Rússia como beligerantes, há uma vantagem clara russa numa guerra de atrito prolongada. Tem uma população que actualmente será mais de quatro vezes superior à da Ucrânia (incluindo múltiplas minorias onde pode recrutar), quer devido aos territórios ocupados no Donbass e Crimeia, quer aos milhões de ucranianos que fugiram para o exterior. Tem uma capacidade industrial militar muito superior à da Ucrânia, não tanto na qualidade, mas especialmente na quantidade de produção de munições e equipamentos militares (e tem ainda um enorme arsenal nuclear). Dispõe ainda de uma produção alimentar e energética muito considerável, a qual tem sido usada como arma no conflito. Todavia, a Ucrânia tem a suportá-la uma poderosa coligação ocidental, quer a nível militar (países da NATO), quer ao nível económico-financeiro (EUA, União Europeia, G7), embora sem envolvimento directo na guerra com soldados no terreno. Ao mesmo tempo, essa coligação ocidental impôs pesadas sanções económicas à Rússia que a vulnerabilizam. Até agora, o resultado de tudo isto tem sido largamente um impasse. No início, a Rússia fracassou estrondosamente no intento de controlar toda a Ucrânia. Mas a contra-ofensiva ucraniana deste ano, até agora, claramente não atingiu os objectivos de recuperação substancial de território, desde logo de voltar a isolar a Crimeia da Rússia em termos de ligação terrestre, replicando os sucessos do final do Verão e Outono de 2022. Vem à mente uma reflexão do livro de Cathal Nolan de que a “guerra ocorre sempre num miasma de contingências”, ou seja, está sujeita à influência de múltiplos acontecimentos possíveis, mas incertos os quais podem alterar decisivamente o seu rumo. Quanto mais o conflito se prolongar, maior a possibilidade de estes influenciarem o rumo dos acontecimentos. Desde uma revolta na Rússia contra Vladimir Putin até uma substancial quebra no apoio à Ucrânia por alterações políticas nos EUA ou na União Europeia, muita coisa pode acontecer, ou não. Uma coisa é certa: nesta longa guerra de atrito ambas as partes estão a arrastar-se até ao abismo da exaustão. Resta saber quem cairá lá primeiro. 

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Público, 18/09/2023

© Imagem: unsplash / RealpolitikMag

A geopolítica da transição energética

1. Entre finais de Outubro e inícios de Novembro de 2021 as atenções da opinião pública mundial irão estar centradas na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a qual terá a sua 26ª sessão (a Conferência das Partes — COP 26), em Glasgow, no Reino Unido.1. Entre finais de Outubro e inícios de Novembro as atenções da opinião pública mundial irão estar centradas na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a qual terá a sua 26ª sessão (a Conferência das Partes — COP 26), em Glasgow, no Reino Unido. A expectativa é que os representantes dos governos ao nível mundial possam avançar, em termos de entendimentos políticos, no aprofundamento e implementação do Acordo de Paris (2015). Assim, questões tão importantes como atingir a neutralidade carbónica global até 2050, mobilizar os governos e o sector privado para um adequado financiamento da transição energética e promover a cooperação internacional para enfrentar a crise climática, vão ser o centro das discussões políticas e técnicas. Todavia, para além das negociações globais sobre o ambiente, as quais têm grande visibilidade mediática e ressonância na sociedade, há outras facetas importantes — na prática cruciais para o sucesso do Acordo de Paris e da transição energética — que usualmente não fazem parte da discussão pública. Entre essas facetas está a dimensão geopolítica da transição energética.

2. Importa deixar claro um ponto crucial. Nas próximas décadas irá ocorrer uma transição energética de enorme alcance, com múltiplas ramificações difíceis de antecipar, mas que não podem ser subestimadas sob pena de não percebermos o mundo que estamos a criar. Assim, a passagem de um modo de vida humano assente em energias fósseis para energias renováveis com impactos ambientais neutros, terá consequências que vão muito além dos efeitos ambientais positivos que se esperam obter. Estas ocorrerão, desde logo, na economia, no emprego, na tecnologia, na distribuição de riqueza e na política mundial, sendo difíceis de discernir na plenitude dos efeitos. Se olharmos para o passado, desde a revolução industrial, vemos que a passagem para uma economia assente em combustíveis fósseis, especialmente no petróleo durante o século XX, trouxe impactos inesperados na natureza — daí o grave problema ambiental com que hoje nos confrontamos.  Mas provocou também profundos e imprevistos efeitos no poder, na riqueza e ideológicos. Um caso óbvio é o Médio Oriente árabe-islâmico que adquiriu uma importância geopolítica só explicável pelos seus imensos recursos energéticos. Originou aí uma enorme concentração de riqueza em Estados como a Arábia Saudita, o Qatar e os Emirados Árabes Unidos, entre outros grandes produtores de energias fósseis. Impulsionou, de forma surpreendente, a expansão do islamismo radical pelo mundo árabe-islâmico e fora dele, directa ou indirectamente financiado pela riqueza do petróleo. 

3. Por motivos geológicos, o petróleo, o gás natural (e também o carvão), não estão distribuídos uniformemente pelo planeta, mas concentrados largamente em regiões específicas. O caso mais conhecido e importante é o do Médio Oriente, como já foi notado. Mas com o enorme rasto de problemas e conflitos geopolíticos que a economia baseada no petróleo trouxe, incluindo várias guerras, a passagem para um novo modelo energético traz um adicional motivo de satisfação. Ou assim parece ser, pois há uma interrogação crítica que até agora não tem sido feita: será que a mudança vai eliminar a dimensão conflitual do acesso à energia, levando-nos a um mundo não só mais ecológico como isento de tensões geopolíticas ligadas ao abastecimento energético? Olhando com algum cuidado para o que está a ocorrer, verificamos que a transformação em curso para formas de energia renováveis está a alterar o mapa da energia a que estávamos habituados. Uma nova geografia emerge gradualmente, não só ligada à tecnologia e produção de equipamentos, como aos produtos naturais necessários para o fabrico das suas múltiplas componentes (por exemplo, baterias eléctricas para automóveis, painéis solares, turbinas eólicas, etc.). Esta última geografia está a deslocar-se para as áreas do mundo onde os metais críticos e elementos de terras raras — Rare Earth Element(REE) — existem em quantidades abundantes para a sua exploração. Aqui emergem dois problemas subestimados. Um primeiro é o da acessibilidade desses recursos minerais e da potencial escassez de alguns deles, que poderá levar a uma competição com múltiplos efeitos económicos e geopolíticos negativos. Um segundo é o do aumento da poluição e danos ambientais que a crescente procura desses minerais irá provocar. Para o cidadão comum ocidental tais problemas não existem. Todavia, a realidade é outra como mostra o relatório do Banco Mundial The Growing Role of Minerals and Metals for a Low Carbon Future “O Crescente Papel dos Minerais e Metais para um Futuro de Baixo Carbono” (2017). Como é referido na sua conclusão (p. 58) “as tecnologias assumidas para preencher a mudança para uma energia limpa (eólica, solar, hidrogénio e sistemas elétricos) são de facto significativamente mais intensivas em materiais em sua composição do que os actuais sistemas tradicionais de fornecimento de energia baseados em combustíveis fósseis”. Assim, como “o futuro da tecnologia verde é materialmente intensivo, se não for devidamente gerido poderá ser insuficiente para os esforços e políticas dos países fornecedores para cumprir os seus objectivos de cumprimento dos objectivos climáticos” (p. 59).

4. Num outro estudo mais recente, agora efectuado pela Agência Internacional de Energia (EIA) intitulado The Role of Critical Minerals in Clean Energy Transitions / “O Papel dos Minerais Críticos nas Transições para a Energia Limpa”, o qual faz parte do World Energy Outlook de 2021, a dimensão geopolítica e estratégica da transição energética fica ainda mais explícita. Aí pode ler-se o seguinte (p. 32): “a cadeia de abastecimento de muitas tecnologias de energia limpa e das suas matérias-primas é geograficamente mais concentrada do que a do petróleo ou do gás natural. Este é especialmente o caso de muitos dos minerais que são centrais para o fabrico de equipamento e infra-estruturas de tecnologias energéticas limpas.  Para o lítio, cobalto e elementos de terras raras (REEs), as três principais nações produtoras controlam bem mais de três quartos da produção global. Em alguns casos, um único país é responsável por cerca de metade da produção mundial. A África do Sul e a República Democrática do Congo são responsáveis por cerca de 70% da produção mundial de platina e cobalto respectivamente, e a China foi responsável por 60% da produção mundial de REE em 2019.” Quer dizer, sendo esses minerais uma componente-chave da transição energética e das cadeias de abastecimento de baixo carbono para as tecnologias renováveis, os países onde se encontram passarão a ter recursos — e armas geopolíticas potenciais — similares ao que actualmente têm os produtores de petróleo e gás natural. (A China emerge agora numa posição de potencial domínio, pela conjugação de tecnologia com recursos minerais críticos.) Abdicarão voluntariamente de usar estrategicamente tais recursos naturais, em prol de um bem global da humanidade? Infelizmente, essa é uma suposição improvável.

5. Como efeito colateral da transição energética, não são apenas os elementos de terras raras e outros minérios críticos que adquirem uma nova dimensão geopolítica. O mesmo ocorrerá com crescente recurso à electricidade. A transformação implicará redes cada vez mais interligadas a uma escala regional ou até eventualmente intercontinental. Mas essa crescente interconexão contém, também, riscos significativos do ponto de vista de segurança. A actividade humana normal, a produção económica e a circulação de veículos automóveis ficam quase totalmente dependente dessas redes. Para além de falhas acidentais, não é implausível imaginar que, em futuros cenários de tensões económicas e ou políticas, os cortes de electricidade provocados podem tornar-se um instrumento geopolítico poderoso. Claro que se imaginarmos um outro futuro — um mundo ideal —, onde os interesses da humanidade no seu conjunto prevalecerão e os recursos minerais e a tecnologia necessária a um mundo descarbonizado serão tratados como bens comuns globais, nada disto acontecerá. Mas esperar um mundo ideal é utópico. A articulação entre o aumento da produção de energias renováveis e a retirada de produção de combustíveis fósseis é um ponto crítico. Para além dos ganhos ambientais para toda a humanidade, há a perda de riqueza e poder de múltiplas empresas e Estados — desde logo dos membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP). Procurarão tirar vantagem da dificuldade em articular o novo e o velho modelo energéticos durante a longa transição em curso, manipulando preços e mercados. Se história e a natureza humana nos ensinam alguma coisa é que a geopolítica da energia permanecerá uma constante no século XXI, embora sob formas das quais apenas vemos os primeiros contornos.

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Público, 2/11/2021

© Imagem: capa do estudo da IRENA-International Renewable Energy Agency, Geopolitics of the Energy Transition. Critical Minerals (2023)