A metamorfose da banalidade do mal

 

Todo o sistema jurídico, político e intelectual que os europeus e ocidentais montaram para prevenir o regresso da banalidade do mal não estava preparado para esta nova realidade.

 

1. Nos últimos anos, múltiplos atentados terroristas perpetrados por islamistas-jihadistas provocaram centenas de vítimas na Europa, a maioria das quais em França. A Alemanha, que até um passado recente tinha escapado, teve também vários atentados no seu território, de maior ou menor dimensão. Em 2017, o Reino Unido parece ser o teatro preferencial do terror em solo europeu. Em 22/3 ocorreu um atentado terrorista em Westminster, no centro histórico e político de Londres. No passado 22/5 foi perpretado um novo atentado, ainda mais mortífero, na Arena de Manchester, durante um espectáculo musical. A tragédia ecoa os atentados de 7/7 de 2005, na rede de transportes públicos de Londres, que provocaram mais de 50 mortos e algumas centenas de feridos. Nos seus traços gerais há um perfil comum a todos eles. Os seus autores têm normalmente a nacionalidade de um Estado europeu, mas a sua origem está em populações oriundas de países islâmicos e/ou com ligações a esse ambiente cultural e religioso. Os alvos são populações civis em locais de grandes concentrações humanas. Estamos a assistir a uma nova forma de banalidade do mal?

2. O nome de Hannah Arendt está estreitamente ligado à ideia de “banalidade do mal”, enquanto conceito filosófico e analítico. A ideia resultou das suas reflexões durante o julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém, o criminoso de guerra nazi, que a filósofa acompanhou no início dos anos 1960 para a revista norte-americana The New Yorker. O assunto foi desenvolvido no seu livro Eichmann em Jerusalém (Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil, 1963), onde reflectiu sobre ele de forma mais abrangente. A banalização do mal foi vista como um dos efeitos secundários da massificação da vida em sociedade e das formas de trabalho modernas em organizações impessoais, num ambiente ideológico secular e totalitário. Criaram-se indivíduos amorais, que aceitam e cumprem ordens com conformismo ou indiferença. Adolf Eichmann, um dos executantes do extermínio de população judaica sob o regime nazi, seria um exemplo disso. Um funcionário vulgar, zeloso, que acolhia de forma acéfala as ordens, mais do que um ser antissocial ou um fanático ideológico.

3. Foi na civilização europeia e ocidental, na sua fase industrial da primeira metade do século XX, que o ocorreu a banalização do mal tal como foi observada e descrita por Hannah Arendt. Essencialmente tratou-se de um subproduto desta. Ocorreu devido à desumanização tecnológica, à impessoalidade da sociedade de massas e das grandes organizações, à quebra de uma visão do mundo ancorada em valores transcendentais e humanistas. Essas circunstâncias, conjugadas com a ascensão de ideologias políticas totalitárias, em particular do nazismo, levaram a um resultado particularmente trágico para os judeus e a Europa. No pós-II Guerra Mundial, a Europa e o Ocidente criaram uma teia de mecanismos para evitar que a história se voltasse a repetir. Baniram as ideologias políticas totalitárias seculares; criaram convenções de defesa dos direitos humanos; implementaram mecanismos de Estado de direito democrático; implementaram, ainda, formas de promover o pluralismo da sociedade e proteger as minorias.

4. No início do século XXI estamos a assistir a novas formas de banalização do mal. Não são as que foram retratadas por Hannah Arendt. Não são um subproduto de uma civilização industrial e tecnológica, impregnada de ideologias seculares e onde surgiram os totalitarismos. Também não ocorre agora sob a forma de “racionais” execuções em massa em câmaras de gás, ou em campos de concentração. Não recorre a tecnologia sofisticada, nem a desenvolvimentos científicos avançados para exterminar milhões de pessoas. Em termos tecnológicos é até rudimentar: facas, machados, bombas artesanais; ou então automóveis e camiões comuns, ou aviões civis desviados das suas rotas são os seus meios mais usuais. É, simultaneamente, pré-moderna e pós-moderna. A Europa e Ocidente não estavam preparadas para esta metamorfose da banalização do mal. Desta vez, não é um subproduto da sua civilização, hoje profundamente materialista e secular. Não entendem esta forma de banalidade do mal, que, à luz da ideia de evolução e progresso, seria um passadismo impossível. A dificuldade é acentuada pelo sentimento de culpa pós-colonial.

5. O Daesh, a Al-Qaeda e outros grupos islamistas-jihadistas, com a sua ideologia totalitária, são um subproduto do Islão nas suas facetas religioso-político-culturais mais problemáticas. São também o resultado de uma conjugação particular de circunstâncias do mundo islâmico de hoje, dos seus problemas, conflitos e frustrações. Em termos ideológicos, têm características similares aos totalitarismos nazis ou estalinista, apesar da sua fraseologia religiosa. Tornaram-se a principal forma de banalização do mal no mundo contemporâneo. O atentado de Manchester perpetrado por Salman Abedi, de nacionalidade britânica e ascendência líbia, evidencia bem a visão do mundo que lhe está subjacente. Aos seus olhos, as crianças e jovens que assistiam a um concerto eram filhos de uma sociedade britânica/europeia/ocidental corrupta nos seus valores hedonistas-materialistas. Acusam-na de negar o transcendental, a lei de Alá, e de agredir os muçulmanos. Eram “cruzados”, algo que nas reivindicações dos atentados feitas pelo Daesh ressoa aos sub-humanos dos nazis. Não mereciam viver. A linguagem justificativa pode ser de tonalidades religiosas e apelar ao transcendental. Mas a violência e o terror alicerçam-se em processos similares de desumanização do outro.

6. O problema é grave e também muito delicado. Todo o sistema jurídico, político e intelectual que os europeus e ocidentais montaram para prevenir o regresso da banalidade do mal não estava preparado para esta realidade. Foi traçado para conter o regresso dos totalitarismos seculares, subproduto da cultura europeia e ocidental. Foi também concebido para travar o mal oriundo do grupo maioritário, contra minorias desprotegidas. Não foi pensado para lidar com formas de banalização do mal não ocidentais, nem impregnadas de uma linguagem religiosa não cristã. Nem para lidar com formas de violência e terror com particular apelo em pessoas de grupos minoritários oriundos do Islão, que hoje se encontram, cada vez mais, na Europa. Por isso, os governos e as sociedades não estão preparados. Encontrar formas de travar esta metamorfose da banalidade do mal, sem pôr em causa os direitos humanos e a convivência com as pessoas das minorias que a rejeitam, é um desafio maior que os europeus vão enfrentar nas próximas décadas. Não é certo se irá ser bem-sucedido.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes. Artigo originalmente publicado no Público, 25/05/2017

domínio público Imagem: capa da versão em audiobook do Livro de Hannah Arendt, “Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil”, narrado por Wanda McCaddon (Tantor Media, 2011)

O dia em que o artigo 50º se tornou realidade

A batalha legal e política em torno do artigo 50º marcará o futuro de britânicos e europeus

1. Há artigos nos textos jurídicos com a ideia de não serem usados, apenas ficarem lá bem por qualquer razão. Foi esse o caso do artigo 50º do Tratado da União Europeia. Surgiu, pela primeira vez, nos trabalhos da Convenção para redigir uma Constituição Europeia (2002-2004), presididos por Valéry Giscard d’Estaing, que levaram ao Tratado Constitucional Europeu (a chamada Constituição Europeia). Mas esta não entrou em vigor devido à impossibilidade de ratificação, em consequência dos referendos na França e na Holanda de 2005. Passou, assim, para o seu sucedâneo, o actual Tratado de Lisboa. Na génese estão razões políticas para facilitar a aprovação e ratificação do texto da Constituição Europeia. A inserção de um artigo com esse teor permitia silenciar os críticos face aos avanços de uma integração federalizante. Estabelecia-se, desta forma, um direito de saída, mas apenas teoricamente acreditavam os seus redactores. Para os mais euroentusiastas tratava-se de uma espécie de ficção jurídica: mantinha a ilusão de que os Estados continuavam soberanos e conservavam pleno controlo do processo de integração.

2. A notificação do Reino Unido ao Conselho Europeu, a 29 de Março de 2017, é um facto singular na história da integração europeia. Pela primeira vez, um Estado-membro invoca o dispositivo do artigo 50º para se retirar da União Europeia. A ficção legal torna-se realidade. Apesar de tudo, não é muito surpreendente ter sido o Reino Unido a fazê-lo. Sempre foi um membro renitente da União Europeia. A Europa comunitária nunca foi o seu projecto de integração, o que teve consequências, nomeadamente na forma como este ganhou contornos. A auto-exclusão britânica levou a que fosse moldado à medida dos problemas e interesses nacionais de outros, essencialmente de alemães e franceses. A questão da Alsácia-Lorena, do Sarre, da bacia do Rhur e do rearmamento germânico no pós-II Guerra Mundial estiveram no cerne da formação das Comunidades. O Tratado de Roma de 1957 criou um mercado comum para produtos industriais, sobretudo alemães, e uma política agrícola essencialmente para os produtos e agricultores franceses. Não surgiu à imagem de uma visão britânica da Europa, nem do seu interesse nacional. Na complexa engrenagem que levou ao Brexit, percebe-se que este pecado original nunca foi perdoado.

3. Adivinha-se uma longa e dura batalha legal e política. Um acordo de saída, tal como está previsto no n.º 3 do artigo 50º, deverá prever a eliminação progressiva dos programas financeiros e de outras normas da União Europeia. A futura relação comercial deverá também ficar delineada no mesmo. Mas pode acontecer uma saída sem acordo, se passados dois anos este não tiver sido concluído, nem houver consenso de ambas as partes para prorrogar o prazo negocial. Em qualquer das hipóteses — saída com acordo, ou saída em dois anos sem este —, a legislação da União deixará de ser aplicável. Mas desligar-se totalmente não é fácil: os actos jurídicos de transposição de normas da União (e são milhares) só deixarão de ser válidos quando forem alterados ou revogados a nível nacional. Nos próximos dois anos a tarefa é, assim, bem espinhosa, especialmente na questão da contribuição britânica para o orçamento da União. Cessa imediatamente com a notificação de saída (tese britânica), ou apenas dois anos após essa notificação, ou com um acordo de saída (tese da União Europeia)? As mesmas questões e divergências se vão levantar sobre a livre circulação de trabalhadores, ou a aplicação das decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia, entre outros assuntos de maior ou menor relevância.

4. A sombra de Margaret Thatcher vai pairar sobre Theresa May e as negociações do Brexit. Para os britânicos, a comparação será inevitável, e não apenas por ambas serem mulheres e do Partido Conservador. Na memória está a percepção de uma vitória conseguida durante o Conselho Europeu de Fontainebleau, em Junho de 1984, após um longo contencioso orçamental. Devido ao peso da política agrícola comum na despesa europeia, da qual os agricultores franceses eram (e são) os principais beneficiários, obteve o direito a um reembolso parcial da sua contribuição. Foi especialmente celebrada por ter sido obtida em França e sobre François Mitterrand. Mas Theresa May não é Margaret Thatcher. A sua chegada ao poder resultou da demissão de David Cameron, com a derrota política no referendo de 23 de Junho de 2016. Theresa May terá ainda de conquistar o seu lugar na história política britânica. O seu primeiro obstáculo será agora Michael Barnier, o francês que chefia a equipa negocial da União Europeia. Veremos se Theresa May conseguirá replicar a vitória de Thatcher sobre Mitterrand em 1984, ou se assistiremos a uma revanche. A batalha legal e política em torno do artigo 50.º marcará o futuro de britânicos e europeus.

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Público, 29/03/2017

© Imagem: mural em Dover / Kent no Reino Unido, de provável autoria de Banksy / Wikimedia Commons

A França e o multiculturalismo de gueto

Islamismo e Multiculturalismo

Está a criar-se uma sociedade explosiva em França e na Europa. Impõe-se urgentemente revertê-la.

1. Os recentes e dramáticos acontecimentos de 7/1 e de 9/1 em França trouxeram, de novo, para o centro do debate político, a discussão sobre o que deve ser uma “boa” sociedade numa democracia europeia do século XXI. No âmbito da teoria da democracia tende a ser consensual que deve ser aberta, plural e tolerar a diferença. Todavia, se isso gera um tendencial acordo, já é muito mais controverso saber qual a forma concreta como estas ideias se devem traduzir numa determinada sociedade. Mais polémico ainda é traçar o ponto até ao qual pode, ou deve, ir o grau de abertura e pluralidade de uma sociedade. Várias interrogações ocorrem aqui. A abertura ou pluralidade são um fim em si mesmos, devendo o Estado, através de políticas públicas, promover essa abertura e fomentar a diversidade cultural na sociedade? Deve antes ser neutral em relação à diversidade cultural, não interferindo nesses processos? Ou deve ainda, face à diversidade da sociedade, atuar como um elemento promotor da integração, numa certa lógica de homogeneização da cidadania?

2. A discussão desta problemática está estreitamente associada ao multiculturalismo. Porém, o termo é ambíguo e susceptível de múltiplos usos. Um primeiro passo em qualquer discussão séria sobre este assunto deve ser, por isso, a clarificação do uso que se está a fazer deste. Num primeiro sentido – que é provavelmente o mais usual na linguagem comum –, o multiculturalismo descreve um facto, uma realidade da vida que é a diversidade cultural. Esta é observável, por exemplo, em qualquer uma das grandes cidades europeias – Paris é um caso óbvio –, onde circulam pessoas com diferentes aspectos étnicos, de vestuário, etc. Num segundo sentido, usado sobretudo nas discussões mais especializadas, o multiculturalismo é uma política pública de Estado (fala-se, assim, em políticas multiculturais); tem também uma dimensão ideológica, explícita ou implícita, na medida em que há um objetivo político de promover a diversidade. O pressuposto é o de que todas as culturas têm um valor idêntico e de que a construção de uma “boa” sociedade assenta na diversidade cultural, vista como um fim em si mesmo.

3. Para a discussão que aqui pretendo efetuar dois outros usos do termo são fundamentais. O multiculturalismo que designo como cosmopolita, em que pessoas e grupos minoritários oriundos de diferentes culturas se integram numa cultura maioritária e fundem os seus valores com esta, num processo fundamentalmente enriquecedor para ambas e de influencias recíprocas. E o multiculturalismo de gueto, em que a presença num mesmo país e território, normalmente suburbano, é feita através de um acantonamento em áreas específicas. Por sua vez, os contactos com a cultura maioritária da sociedade de acolhimento, as interações e a partilha de valores com o mainstream dessa sociedade são mínimos. Nos anos 1950 e 1960, quando começou o atual processo de aumento da diversidade cultural das sociedades europeias e ocidentais – essencialmente devido a fluxos migratórios ligados, ou não, à descolonização –, a expectativa era a da criação de um multiculturalismo cosmopolita. Da França à Suécia, da Itália à Holanda, da Grã-Bretanha à Alemanha, a realidade hoje mostra-nos que predomina largamente um multiculturalismo de gueto. Como se chegou a esta situação? Tipicamente, há duas lógicas explicativas que se detectam, quer nas discussões comuns, quer nas mais sofisticadas: as que colocam a culpa na sociedade de acolhimento e no grupo maioritário; e as que colocam a culpa nas populações migrantes e nas culturas minoritárias. Na primeira ótica, mais ou menos subsidiária do multiculturalismo ideológico, a explicação normalmente esgota-se num catálogo de “fobias” e “ismos” – xenofobia, racismo, islamofobia e falta de políticas sociais-multiculturais dos países de acolhimento. Na segunda ótica, próxima da extrema-direita e da direita populista, os emigrantes e/ou minorias culturais tendem a ser vistos estereotipadamente como atrasados, preguiçosos e uma fonte de despesa social para o Estado, excluindo-se, motu proprio.

4. A prevalência deste quadro mental tem criado um terreno social e político perigoso, do qual os grandes ganhadores são, por um lado, o islamismo radical – no sentido ideológico do conceito –, e, por outro, a extrema-direita e a direita populista. Vou mostrar como se tem alimentado esta engrenagem. Em primeiro lugar, importa compreender como se estratificam as nossas sociedades atualmente. Por cima, temos uma elite política, empresarial, intelectual e social que, em graus variáveis, corporiza o multiculturalismo cosmopolita atrás referido. Esta elite é sobretudo uma criação dos efeitos conjugados dos processos de integração europeia e de globalização, nas suas múltiplas dimensões. Apesar das críticas que dirige a esses processos, especialmente à globalização, sente-se, de um modo geral, confortável, ganhadora. Está mais próxima dos seus pares noutros países do que do cidadão comum do seu próprio país. Depois, na pirâmide da estratificação social, temos uma larga faixa da população, usualmente designada como classe média. Esta tem sido a mais afetada pelas transformações dos processos de integração económica e de globalização. Se isso já era verdade antes da crise de 2007/2008, agora acentuou-se drasticamente. No fundo da pirâmide social, temos as camadas baixas e populares, de dimensão mais ou menos significativa em todos os países europeus. Juntamente com a classe média e média-baixa, está aqui o núcleo duro das populações mais agarradas aos valores nacionais tradicionais. Isto ocorre devido à prevalência de uma educação mais tradicional, a níveis mais baixos de qualificações e à de falta de meios económicos. É também a faixa da população tradicionalmente destinatária das prestações sociais.

5. As alterações demográficas ligadas ao envelhecimento da população europeia são também relevantes para compreender o problema. A França, com mais de 65 milhões de habitantes, mantendo um crescimento regular da população e com uma taxa de fertilidade média de cerca de 2,0 filhos por mulher, parece estar numa boa posição demográfica, pelo menos para padrões europeus. Esta apreciação geral esconde uma outra realidade que é a das taxas de fertilidade dos diferentes grupos que compõem a sociedade francesa. Em França, por limitações legislativas, não existem estatísticas oficiais que permitam aferir com rigor essa realidade. É muito provável que o dinamismo demográfico genérico seja assegurado à custa de grupos específicos, oriundos de culturas minoritárias e/ou de migrações. Se assim for, a sociedade francesa está atravessada por uma dupla clivagem. Uma clivagem geracional, do tipo da que vemos em Portugal no atual contexto de crise, a qual opõe pensionistas e reformados às gerações mais jovens. E uma clivagem (multi)cultural que se interliga com esta, em que os mais velhos são sobretudo do grupo cultural maioritário da sociedade e os mais jovens são, crescentemente, de grupos culturais minoritários, com origem em migrações.

6. Este conjunto de circunstâncias tende a criar em partes significativas da população do grupo cultural maioritário, habituadas, até um passado recente, a uma lógica monocultural, sentimentos de vulnerabilidade, receio e insegurança perfeitamente legítimos. Importa notar que são as camadas média, média-baixa e popular, as quais estão mais em contacto, e, sobretudo, em competição, por recursos escassos, com o multiculturalismo de gueto. Habitam zonas residenciais das cidades e subúrbios relativamente pobres, onde sentem, muitas vezes, a sensação desconfortável de serem “estrangeiros” no seu país. As suas qualificações, normalmente baixas, obrigam-nos a uma disputa com estes dos lugares no mercado de trabalho, que se torna quase predatória em tempos de crise. Sentem, correcta ou incorrectamente, a competição desses grupos nas prestações sociais em redução devido à austeridade. Veem os emigrantes e/ou minorias serem usados para baixar os salários e fornecer uma mão-de-obra barata, a qual quebra a força dos sindicatos que os protegiam. Por isso, nelas grassa o sentimento generalizado de serem perdedoras.

7. No passado, especialmente os partidos da esquerda, competiam por atrair a classe média e média-baixa, prestando especial atenção ao “proletariado”. Hoje não respondem aos seus problemas. Os interesses empresariais e da competitividade económica, ou os grupos minoritários e as políticas de identidade substituíram-nos. Ironicamente, o multiculturalismo ideológico e a diversidade cultural ocupam, em grande parte da esquerda intelectual e política, um papel similar ao que na direita tem a ideologia neoliberal e a competitividade. (Consoante o quadrante ideológico, sacraliza-se o mercado, ou a diversidade cultural. Comum a ambos está uma visão mais próxima da fé religiosa do que do espírito crítico.) Assim, no atual quadro ideológico, esta população oriunda do grupo cultural maioritário é vista como insensível à diferença cultural e suspeita de xenofobia (pela esquerda), ou sem espírito empreendedor e capacidade competitiva (pela direita), ambos pecados capitais. Resultado: largas faixas da população sentem-se politicamente abandonadas e sem representação política. Não é difícil perceber por que a extrema-direita e a direita populista têm aí um terreno eleitoral em crescendo.

8. Por último, impõe-se olhar para a questão na perspetiva dos grupos minoritários, especialmente nos que têm origem nos fluxos migratórios das últimas décadas. Frequentemente vêm de zonas rurais de países pouco desenvolvidos (Argélia, Tunísia e Marrocos, no caso francês), habituados a valores tradicionalistas muito diferentes dos valores que encontram à chegada. Por razões de pobreza, língua, religião ou outras, têm muita dificuldade em se integrar na sociedade de acolhimento. O seu acantonamento em guetos, devido à pobreza e à segurança conferida pela proximidade cultural com outros membros grupo, alimenta o processo de exclusão e dificulta a progressão social. Enfrentam a desconfiança das populações locais e o desinteresse dos empregadores, a não ser nas condições salariais já referidas de mão-de-obra barata e não sindicalizada. Na segunda e terceira geração, não se sentem, frequentemente, nem franceses, nem argelinos, marroquinos ou tunisinos, ou de qualquer outro país. O anonimato das grandes cidades, a falta de perspetivas de evolução social e económica gera frustração e, frequentemente, ódio ao próprio país do qual são nominalmente cidadãos. Essa frustração e descontentamento poderia ser enquadrada por ideologias e forças com capacidade de mobilização de massas, que dessem esperança num quadro democrático e de respeito do Estado de direito. Todavia, com a perda de atração política da esquerda secular europeia – o multiculturalismo ideológico não tem força política de massas –, este terreno ficou livre para o islamismo radical, que agora fornece uma identidade e uma causa a estes “rebeldes sem causa”. É esta sociedade explosiva que se está a criar em França e na Europa. Impõe-se urgentemente revertê-la.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes. Artigo originalmente publicado no Público, 13/01/2015

domínio público Imagem: capa do Livro de José Pedro Teixeira Fernandes, “Islamismo e Multiculturalismo. As Ideologias Após o Fim da História” (Almedina, 2006)