A Ciberguerra como Nova Dimensão dos Conflitos Internacionais

Ciberguerra - artigo

A importância crescente do ciberespaço e o aumento da relevância das questões de segurança neste não são surpreendentes. Há mais de um bilião de computadores pessoais, a maioria dos quais estão ligados à Internet. No início de 2008, o número de proprietários de telemóveis ultrapassou a população (crianças incluídas) dos não proprietários. Cada telemóvel digital (em breve todos serão digitais), pode ser uma porta para o ciberespaço. A maioria dos utilizadores de computadores importa-se pouco com a segurança e sabem ainda menos desta. Uma consequência disto é que milhões, talvez até dezenas de milhões de computadores, são bots capazes de ser controlados por nefastos desconhecidos que os seus proprietários nem sabem que existem.

Martin C. LIBICKI[1]

 

A (in)definição do conceito de ciberguerra

Todos os termos novos que, por uma razão ou por outra se popularizam, tornando-se palavras de moda, acabam por trazer consigo uma utilização demasiado livre, tendencialmente proteiforme e confusa. É fácil constatar que isso está a acontecer atualmente com o termo ciberguerra. No seu uso mais comum e livre, designa, vagamente, algum tipo de «ataque» ou «represália», intrusão ilícita numa rede e/ou computador ou uma situação de espionagem que ocorre usando meios informáticos. Tais situações poderão surgir, ou não, ligadas a conflitos políticos e/ou militares no mundo «real», ou seja, ocorrer em paralelo com uma conflitualidade «física» ou de forma totalmente autónoma (nesta última hipótese estaríamos perante uma ciberguerra «pura»). Por outro lado, poderão ter origem diretamente em estados, ou, então, ser protagonizadas por atores não estaduais. Sejam quais forem os contornos dados ao conceito é inquestionável que um uso livre, e, consequentemente, impreciso do termo é inadequado para um estudo académico-científico. Em tais circunstâncias de falta de rigor na conceptualização, também não poderá ser uma base para uma adequada atuação internacional nesta área. Basta pensarmos, por exemplo, numa análise da ciberguerra sob o prisma legal. Esta leva-nos, inevitavelmente, a ter de considerar o Direito Internacional Humanitário[2]/Direito dos Conflitos Armados. Aqui colocam-se curiosas questões, como, por exemplo, a de saber se os seus protagonistas poderão, ou deverão, ser tratados de forma similar aos combatentes ou se as ciberarmas poderão ser legalmente equiparadas a armas «físicas».

 

Quadro 1 – As Fontes do Direito Internacional Humanitário/Direito dos Conflitos Armados

Fonte  Título Data Nº Artigos
Convenção de Genebra Melhoria das Condição dos Feridos no Campo de Batalha 1864 10
IIª Conferência de Haia Leis e Costumes da Guerra em Terra 1899 60 (55 em Anexo)
IVª Conferência de Haia Leis e Costumes da Guerra em Terra 1907 64 (56 em Anexo)
Protocolo de Genebra Para a Proibição do Uso na Guerra de Gás Asfixiante e dos Métodos de Guerra Bacteriológica 1928 ___
Iª Convenção de Genebra Para Melhoria das Condições dos Feridos e Doentes das Forças Armadas no Terreno 1864(revista em 1949) 77 (13 em Anexo)
IIª Convenção de Genebra Para Melhoria das Condições dos Feridos, Doentes e Náufragos das Forças Armadas no Mar 1949 63
IIIª Convenção de Genebra Relativa ao Tratamento dos Prisioneiros de Guerra 1929(revista em 1949) 143
IVª Convenção de Genebra Relativa à Proteção de Civis em Tempo de Guerra 1949 180 (21 em Anexo)
Convenção de Genebra Proibindo o Desenvolvimento, Produção e Armazenamento de Armas Bacteriológicas e Tóxicas e sobre a sua Destruição 1975 15
Protocolo I Relativa à Proteção das Vítimas de Conflitos Armados Internacionais (amplia a definição dos mesmos às guerras de libertação nacional) 1977 102
Protocolo II Relativa à Proteção das Vítimas de Conflitos Armados Não Internacionais (completa o art.º 3 comum às quatro Convenções de Genebra) 1977 28
Protocolo III Relativa à Adopção de um Emblema Adicional Distintivo 2005 17

Fonte: «Working Towards Rules for Governing Cyber Conflict. Rendering the Geneva and Hague Conventions in Cyberspace», Nova York: THE EASTWEST INSTITUTE, 2011, p. 13 (Adaptado).

 

A dificuldade de definir, no âmbito da rede, o conceito de ato de guerra, de combatente, etc., acresce a outros problemas com que atualmente se confronta o Direito dos Conflitos Armados/Direito Internacional Humanitário. De facto, se pensarmos em vários conflitos do passado recente verificamos que houve guerra – casos do Kosovo em 1999, do Afeganistão em 2001, do Iraque em 2003, do Líbano em 2006 –, sem declaração formal de guerra de estado a estado. Verificamos, também, que nem sempre as partes em confronto são estados – casos, por exemplo, da Al-Qaeda e dos talibãs no Afeganistão versus Estados Unidos/NATO, ou do Hezbollah no Líbano versus Israel. Isto levanta, desde logo, o problema da definição de quem pode, ou deve, ser considerado combatente. A ciberguerra insere-se nesta tendência, que já vem detrás, a qual evidencia algumas dificuldades na aplicação do Direito Internacional Humanitário/Direito dos Conflitos Armados aos conflitos atuais. Todavia, pelas implicações do que está em jogo – nomeadamente saber se um determinado ciberataque poderá ser considerado um ato de guerra –, é inevitável concordar-se que a clareza e o rigor do conceito são fundamentais não só para a segurança jurídica, como, também, para os decisores políticos poderem escolher a opção mais adequada em caso de um ciberconflito.

Uma vez efetuada esta nota prévia vamos proceder a uma revisão de literatura, com vista a identificar e avaliar alguns dos principais esforços de conceptualização já empreendidos. O objectivo será apresentar o que usualmente se designa pelo state of the art. Note-se que qualquer conceptualização rigorosa apontará, por um lado, para um fenómeno complexo e multifacetado, e, por outro lado, será sempre passível de alguma contestação. Pela natureza do fenómeno, esta implica articular aspectos estratégico-militares e político-legais com aspectos tecnológicos e até económico-empresariais. Por isso, vale a pena aqui relembrar uma reflexão sobre a definição conceitos, efetuada num contexto de investigação jurídica, por Reinhold Zippelius. Como este explica, «os conceitos são, portanto, combinações de traços comuns a vários objetos. Mas saber quais dos aspectos comuns correntes pomos em evidência e abarcamos nos nossos conceitos, isso depende daquilo por que nos interessamos»[3]. Ou seja, «a formação dos conceitos orienta-se pela questão de se saber» qual a delimitação em que os «conceitos servem melhor os objectivos da investigação para que são formados»[4]. No caso da ciberguerra, vamos então agora ver algumas das mais relevantes propostas de conceptualização até agora efectuadas.

 

Conceptualizações estratégico-militares de ciberguerra

Em Ciberwar is Coming!, John Arquilla e David Ronfeldt procuraram traçar pioneiramente os contornos do conceito de «ciberguerra» (cyberwar). Estávamos, então, nos primórdios da sociedade em rede tal como hoje a conhecemos, em termos de uso da Internet, da Web, de comunicações móveis e de outras tecnologias digitais. Para clarificarem a sua conceptualização, estes procuraram destrinçar o conceito de ciberguerra de outros próximos, nomeadamente daquilo que estes designaram como «infoguerra» (netwar). Quanto a esta última, a infoguerra, foi definida como «um conflito relacionado com a informação a um grande nível, entre estados ou sociedades. Significa tentar desarticular, danificar ou modificar o que uma população «sabe», ou pensa que sabe, sobre ela própria e o mundo à sua volta. A infoguerra pode focalizar-se na opinião pública, ou na elite, ou em ambas. Pode envolver medidas de diplomacia pública, propaganda e campanhas psicológicas, subversão cultural e política, induzir em engano ou interferir com os media locais, ou infiltrações em redes de computadores e bases de dados e esforços para promover movimentos dissidentes e de oposição através das redes de computadores. Assim, conceber uma estratégia para a infoguerra significa reunir em conjunto, sob uma nova perspectiva, um conjunto de medidas que já foram usadas anteriormente, mas eram vistas de forma separada. Por outras palavras, a infoguerra representa uma nova entrada no espectro do conflito que abrange formas de «guerra» económica, política, social e militar. Em contraste com guerras económicas que têm como alvo a produção e a distribuição de bens, e as guerras políticas que têm como alvo a liderança e as instituições do governo, as infoguerras distinguir-se-ão por procurarem atingir a informação e comunicação. Como outras formas neste espectro, as infoguerras serão largamente não militares, mas poderão ter dimensões que se justapõem à guerra militar»[5].

Uma vez clarificado este conceito afim, John Arquilla e David Ronfeldt procuraram definir o conceito de ciberguerra propriamente dito. Na sua óptica, este «refere-se a conduzir e preparar para conduzir, operações militares de acordo com os princípios da informação. Significa interromper, se não mesmo destruir, os sistemas de informação e de comunicação, definidos de forma ampla, de modo a incluir até a cultura militar, nos quais um adversário se apoia para se ‘conhecer‘ a si próprio: quem é, onde está, o que pode fazer quando, porque está a lutar, que ameaças contrariar primeiro, etc. Significa tentar saber tudo sobre um adversário, enquanto que se evita que este saiba muito sobre nós próprios. Significa modificar a ‘balança de informação e conhecimento‘ a nosso favor, especialmente se a balança de forças não é favorável. Significa usar conhecimento, pelo que menos capital e trabalho terão de ser gastos. Esta forma de guerra pode envolver diversas tecnologias – nomeadamente para C3I[6]; recolha de informação, posicionamento e identificação de amigos ou inimigos (IFF)[7]; e sistemas de armas ‘inteligentes‘ – para dar apenas alguns exemplos. Pode também envolver interferência eletrónica, falseamento, sobrecarga e intrusão nos circuitos de informação e comunicação de um adversário»[8]. Por tudo isto, a ciberguerra «poderá também implicar o desenvolvimento de novas doutrinas sobre o tipo de forças necessárias, onde e como deslocá-las, e saber o quê e como atacar no lado do inimigo. Como e onde posicionar determinados tipos de computadores e sensores relacionados, redes, bases de dados, etc., pode-se tornar tão importante como a questão que costumava ser efectuada sobre deslocação de bombardeiros e as suas funções de suporte. A ciberguerra pode também ter implicações para a integração dos aspectos políticos e psicológicos com os aspectos militares de fazer a guerra»[9].

Importa relembrar que esta conceptualização data de 1993, numa altura em que, como já referimos, a Internet e sociedade em rede estavam a dar os primeiros passos e era difícil discernir a evolução futura. Daí que Arquilla e Ronfeldt tenham sido também bastante cautelosos na sua formulação prospetiva. No seu texto original estes faziam notar que «como inovação na forma de fazer a guerra, antecipamos que a ciberguerra pode ser para o século XXI o que a blitzkrieg foi para o século XX. Mas, por agora, também acreditamos que o conceito é demasiado especulativo para uma definição precisa»[10].

O conceito de ciberguerra, tal com definido Arquilla e Ronfeldt, tornou-se influente pelo prestígio dos autores e da Rand Corporation à qual estão ligados, bem como pelo seu caráter pioneiro e «futurista». Tal como ocorreu frequentemente no século XX, com muitas inovações em diferentes domínios, projetou-se rapidamente para fora Estados Unidos. Neste caso, naturalmente que interessou, em primeira linha, os meios estratégicos e militares de diferentes países. No universo lusófono encontramos, desde logo, essa influência de maneira evidente num Estado – o Brasil –, o qual tem sido crescentemente apontado como uma das principais potências em ascensão neste início de século XXI. Fazendo eco destas ideias, F. G. Sampaio num paper elaborado para a Escola Superior de Geopolítica e Estratégia, referiu-se ao conceito de ciberguerra em termos bastante similares[11]. Segundo este, a «ciberguerra» derivaria do conceito estratégico-militar germânico de leintenkrieg[12], o qual data dos tempos da II Guerra Mundial. Na sua formulação atual, visaria «a paralisação de um adversário», o qual poderá ser um país, um bloco económico, ou uma aliança militar, «pela penetração das redes de computadores que regem as atividades vitais da economia, criando o caos e difundindo um estado de medo generalizado»[13]. Acrescenta ainda que «tal quadro permite o enfraquecimento das defesas convencionais, podendo-se, então, por técnicas de infiltração, atacar o país, bloco ou aliança, por meio de ações terroristas, boatos (difundidos por agentes infiltrados), notícias falsas veiculadas pelos meios de informação de massa»[14]. Estas ações permitiriam destruir «a coesão, a capacidade de resistência e levariam a um colapso total, que seria a paralisação estratégica, elevada, porém, a um potencial muito maior do que o previsto até hoje»[15]. Quanto aos alvos preferenciais da ciberguerra, estes são, segundo o mesmo autor, «os computadores, individualmente ou em rede»[16]. Para os atingir, são invadidos os mais diversos «programas de controlo de operações, e, uma vez os mesmos penetrados», é aguardado o «momento propício para ativar a sabotagem»[17]. Por sua vez, «os alvos preferenciais para serem penetrados e desvirtuados são os programas de computador que controlam ou gerem»[18] os seguintes sectores de atividade económico-empresarial e/ou de serviço público – as chamadas infraestruturas críticas: i) comando das redes de distribuição de energia elétrica; ii) comando das redes de distribuição de água potável; iii) comando das redes de gestão dos caminhos-de-ferro; iv) comando das redes de gestão do tráfego aéreo; v) comando das redes de informação de emergência (112, serviços de urgência médica, polícia, bombeiros); vi) comando das redes bancárias, possibilitando a inabilitação das contas, ou seja, apagando o dinheiro registado em nome dos cidadãos; vii) comando das redes de comunicações em geral e em particular (incluindo as redes de estações de rádio e de televisão); viii) comando dos links com sistemas de satélites artificiais (incluindo fornecedores de sistemas telefónicos, de sinais para TV, de previsões de tempo e de sistemas GPS); ix) comando da rede do Ministério da Defesa (incluindo também outros ministérios chave, como o do Interior e da Justiça, e o próprio Banco Central); x) comando dos sistemas de ordenamento e recuperação de dados nos sistemas judiciais, incluindo os de justiça eleitoral. Para o mesmo autor, os protagonistas típicos da ciberguerra seriam os hackers[19] e os computadores usados por estes.

Mas há outros desenvolvimentos mais recentes relevantes. Nos últimos anos, sobretudo desde os conflitos da Estónia (2007) e da Geórgia (2008) com a Rússia, tem-se assistido a um crescente interesse por este assunto e a uma maior sofisticação das abordagens teóricas. Verificamos, também, que têm surgido crescentemente análises mais aprofundadas e apuradas, quer da parte dos meios militares e de segurança, quer de organizações internacionais, de think tanks e de académicos ou de outros interessados. Por exemplo, para o Institute for Advanced Study of Information Warfare dos Estados Unidos, a ciberguerra define-se como «o uso ofensivo e defensiva da informação e dos sistemas de informação para negar, explorar, corromper, ou destruir a informação de um adversário, processos baseados na informação, sistemas de informação e redes baseadas em computadores, enquanto se protegem as próprias. Tais ações são projetadas para atingir vantagens sobre adversários militares»[20].

Recentemente, Peter Sommer e Ian Brown, num relatório elaborado para a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE) no âmbito do projeto «Choques globais no futuro» intitulado «Reduzindo o Risco Sistémico da Cibersegurança», voltaram a analisar esta importante questão concetual. No relatório começaram por notar o problema já aqui referido, o qual decorre do facto do termo tender a ser usado de forma livre, em sentidos bastante variáveis e pouco precisos[21]. Passando em revista alguns dos seus usos mais correntes, estes referem que, no âmbito do pensamento sobre segurança e estratégia, é frequente encontrarmos o termo utilizado no sentido de «uma guerra conduzida substancialmente no ciberespaço ou no domínio virtual»[22]. Aqueles que partilham de tal conceção «têm frequentemente em mente que as ciberguerras tendem a ser muito similares às guerras convencionais»[23] pelo que idênticas doutrinas de retaliação ou dissuasão poderão ser aplicadas. Todavia, Sommer e Brown consideram que é mais fácil definir «ciberguerra», se os critérios aplicáveis ao conceito forem os mesmos que são utilizados para qualquer guerra convencional ou «cinética». Desde logo, para a qualificação de uma ocorrência como guerra – e, por isso, também de ciberguerra –, será fundamental ter em conta as disposições contidas em alguns tratados internacionais, nomeadamente as convenções de Haia de 1899 e 1907[24], a Carta das Nações Unidas de 1945, a Convenção das Nações Unidas de 1948 sobre o Genocídio e a Convenção das Nações Unidas de 1980 sobre Armas Convencionais Excessivamente Lesivas (ou cujos efeitos são indiscriminados) – ou seja, o normativo que integra o Direito dos Conflitos Armados/Direito Internacional Humanitário[25]. Assim, defendem estes, na sua essência, para se decidir se um ato deve, ou não, ser qualificado como ciberguerra, deverá submeter-se ao teste de verificar se pode ser considerado «equivalente» a um ataque convencional no seu objectivo, intensidade e duração. E, acrescentam, Sommer e Brown, «há também uma distinção a fazer entre atos que procuram atingir alvos militares e atos destinados a alvos civis»[26]. Estes fazem notar que a «Carta das Nações Unidas requer uma justificação para a adopção de contra-medidas por aqueles que afirmam ter sido atacados. No essencial, a vítima deve ser capaz de produzir provas fidedignas sobre quem a atacou (algo nem sempre fácil no cibermundo) e sobre os efeitos dos ataques. O objectivo das contra-medidas deverá ser forçar o estado atacante a acatar as suas obrigações nos termos da Carta das Nações Unidas. Todavia, como estes referem, entendido desta maneira o conceito apenas poderá, por princípio, aplicar-se aos estados e não a atores não estaduais. Face a estas dificuldades de definição dos contornos e da abrangência do conceito, pode-se argumentar que o foco da análise da ciberguerra deveria antes deslocar-se para a avaliação das capacidades das várias formas de (ciber)armamento. Nessa hipótese, a primeira preocupação deveria ser então tentar encontrar as razões pelas quais alguém pode querer fazer a guerra, ou iniciar uma atividade hostil em grau menor do que uma guerra em larga escala. Tipicamente, são disputas sobre o território, disputas para afirmar a hegemonia, disputas sobre o acesso a recursos e a matérias-primas, disputas sobre a religião ou disputas históricas e vingança»[27] que levam ao conflito e à guerra. Uma vez que «estas hostilidades existem no mundo real, parece haver pouca razão para os Estados se limitarem ao armamento ‘cinético‘»[28]. O (ciber)armamento apenas fornece «meios adicionais através dos quais a hostilidade pode ser prosseguida».

 

Capacidades e vulnerabilidades ofensivas e defensivas dos atores estaduais

Quando se analisa a ciberguerra num plano estratégico, inevitavelmente nos ocorre efetuar um levantamento das capacidades ofensivas e defensivas dos diversos atores que se podem confrontar num hipotético cenário de conflito. Em termos modernos, quando pensamos a guerra pensamos, por inerência, nos estados. Esta tradição de considerar o estado soberano (vestefaliano) como ator central das relações internacionais tem um profundo enraizamento histórico. A sua principal referência diplomática são os Tratados de Vestefália (1648), que puseram fim à Guerra dos Trinta Anos, na Europa do século XVII. Marcaram a ascensão progressiva do estado soberano a forma primordial de organização política das comunidades humanas, primeiro na Europa, depois, por todo o mundo. Isto sobretudo por influência europeia ao longo do século XIX e primeira metade do século XX. Todavia, no mundo atual, como já referimos, a primazia dos estados vestefalianos sofre a competição de outros atores, com maior ou menor peso (OIG, ONG, empresas transnacionais, grupos subestaduais, etc). No caso da ciberguerra, a questão da relevância dos atores não estaduais levanta-se com especial acuidade. Os exemplos dos ciberataques mais conhecidos – Estónia (2007) e Geórgia (2008), ao qual se poderá juntar o caso do ataque do vírus Stuxnet (2010), às instalações nucleares do Irão –, podem ser vistos como uma espécie de «guerras por procuração». De facto, o ponto comum é que ocorreram ciberataques contra esses estados, mas, oficialmente, não têm qualquer autoria de outros estados. Aparentemente, a responsabilidade caberia apenas a elementos da «sociedade civil»: netizens[29] («cibercidadãos»), ativistas ou «hackers patrióticos». Estes, teoricamente, atuariam de motu próprio, à margem e sem qualquer conhecimento dos estados dos quais são cidadãos. Vamos deixar esta questão para uma análise própria a efetuar mais à frente e, para já, concentrarmo-nos apenas nos atores estaduais.

Uma análise das capacidades e vulnerabilidades dos principais potências militares mundiais foi efectuada recentemente por Richard Clarke e Robert Knake nos Estados Unidos. Estes colocaram um especial ênfase no aspecto das capacidades defensivas e das vulnerabilidades, por considerarem que estas facetas estavam a ser subavaliadas pelos meios governamentais de segurança norte-americanos. Na sua abordagem, apresentaram uma estimativa das capacidades de ciberguerra dos Estados Unidos, bem como de alguns do seus principais competidores ou inimigos. Segundo Richard Clarke e Robert Knake, qualquer avaliação (ainda que estimativa) dessas capacidades deve ter em conta três dimensões: i) a capacidade ciberofensiva, entendida como a capacidade de efetuar ciberataques a outros estados; ii) a capacidade ciberdefensiva configurada como “a medida da capacidade de adoptar ações sob um ataque” ações essas que «irão bloquear ou mitigar esse ataque»; iii) a ciberdependência medida como “a extensão em que um estado está ligado e assente sobre redes e sistemas que podem ser vulneráveis no caso de um ciberataque[30]. Adotando estas três dimensões chegaríamos a um quadro estimativo dessas capacidades, como o que se apresenta em baixo.

 

Quadro 2 – Estimativa de capacidades de globais de ciberguerra de alguns estados

Estados Capacidade ciberofensiva Ciberdependência Capacidadeciberdefensiva Score total
EUA 8 2 1 11
Rússia 7 5 4 16
China 5 4 6 15
Irão 4 5 3 12
Coreia do Norte 2 9 7 18

Fonte: CLARK, Richard A. e KNAKE, Robert K. – Cyber War. The Next Threat to National Security, Nova York: Harper Collins, 2010, pp. 147-148p. 148.

 

Uma questão relevante é a de saber, em concreto, quais os dados que os autores usaram para chegarem aos scores que apresentam em cada uma destas três dimensões. Estes referem apenas que as pontuações atribuídas a cada uma destas dimensões e estados se baseiam numa «avaliação pessoal»[31]. O reparo óbvio é que remetendo os dados apenas para uma perceção subjetiva, não são verificáveis, nem comparáveis com outros, o que, naturalmente, lhes retira valor num uso estritamente científico. De qualquer maneira, apesar das limitações óbvias, não significa que sejam totalmente destituídos de interesse para a discussão e reflexão sobre as capacidades estaduais que aqui nos ocupa. Assim, vale a pena notar os comentários que Clarke e Knake fazem a este ranking de capacidades. Tal como os autores referem, «a China tem um elevado score na ‘defesa‘ em parte porque tem planos e capacidade para desligar as redes do país inteiro do resto do ciberespaço. A China pode limitar a utilização do ciberespaço numa crise desligando os utilizadores não essenciais»[32]. Já os Estados Unidos não têm a mesma possibilidade. Por sua vez, a Coreia do Norte tem um score elevado, quer para ciberdefesa, quer para a ciberdependência. Isto porque o país «pode desligar a sua limitada conexão ao ciberespaço ainda de forma mais fácil e efetiva do que a China. Para além disso, a Coreia do Norte tem tão poucos sistemas dependentes do ciberespaço que um grande ciberataque à Coreia do Norte praticamente não provocaria danos. Importa lembrar que a ciberdefesa não se refere ao número de habitações com banda larga, ou ao número de smart phones (telemóveis ‘inteligentes‘) per capita; refere-se à extensão em que infraestruturas críticas (rede eléctrica, caminhos de ferro, gasodutos, cadeias de abastecimento, etc.), estão dependentes de sistemas em rede e não têm um backup efetivo»[33].

 

O papel dos atores não estaduais nos ciberconflitos

Num recente artigo publicado na revista Survival do International Institute of Strategic Studies (IISS) de Londres, Alexander Klimburg analisa a relevância dos atores não estaduais nos ciberconflitos[34]. O artigo incide especialmente nas situações em que estes são mobilizados e coordenados por Estados, ainda que de forma não oficialmente assumida por estes. Klimburg começa por fazer notar os pontos de contacto que existem, nomeadamente quanto à base tecnológica e ferramentas usadas, entre o cibercrime, o ciberterrorismo e os atos de ciberguerra: «Cibercrime, ciberterrorismo e ciberguerra partilha uma base tecnológica comum, ferramentas, logística e instrumentos. Podem também partilhar as mesmas redes sociais e ter objetivos similares. As diferenças entre estas duas categorias de ciberatividades são frequentemente ténues, ou estão apenas nos olhos de quem as vê. Na perspetiva de um ciberguerreiro, o cibercrime pode oferecer uma base técnica (ferramentas de software e apoio logístico) e o ciberterrorismo a base social (redes pessoais e motivação) com as quais podem ser executados ataques às redes de computadores de grupos inimigos ou nações»[35].

Assim, certos estados teriam interesse em manter, ou tolerar, aquilo que este designa como «organizações por procuração». Estas poderiam, quando oportuno, ser envolvidas em atividades de ciberataques (eventualmente, também, em atividades de ciberdefesa). Por exemplo, um ataque distribuído de negação de serviço poderá ser posto em prática por um utilizador médio de computadores, desde que disponha das ferramentas certas. Para os estados, uma vantagem, desde logo, é que os ataques de negação de serviço são, normalmente, mais de difíceis de imputação de autoria do que os ataques de exploração da rede (tipicamente espionagem e roubo de informação sensível). Nestes últimos, a informação tem de viajar na rede até ao perpetrador, o que normalmente deixa rasto, e, tendencialmente, permite imputar a autoria[36]. Podendo ser o roubo de informação, em si mesmo, já bastante problemático, quer para a segurança nacional, quer para as empresas (consoante o que estiver em causa) este pode não ser ainda o pior problema. Klimburg chama a atenção para o facto de um ataque de exploração da rede, com o objetivo de espionagem e/ou roubo de informação ser, ao mesmo tempo, a base (técnica) para um dos «mais perigosos tipos de ciberataques: a colocação, sem conhecimento, de ‘bombas lógicas‘ escondidas». Trata-se de «ficheiros ou de pacotes de software relativamente pequenos, escondidos, que, como não necessitam de comunicar, são extremamente difíceis de localizar. Uma vez acionadas as ‘bombas lógicas‘ podem ser massivamente destrutivas»[37]. Klimburg refere, como exemplos deste risco, o caso de um engenheiro de software indiano contratado pelo Fannie Mae – uma das instituições ligadas ao crédito hipotecário que esteve na origem do desencadear da crise financeira de 2008 nos Estados Unidos. Este, por descontentamento com a empresa, colocou uma ‘bomba lógica‘ na sua rede, a qual não chegou a ser acionada – por sorte, a programação da bomba lógica era defeituosa… –, mas poderia ter levado à paralisação, total ou parcial, do Fannie Mae durante uma semana, entre outros danos mais graves, como apagar toda a informação da empresa[38].

Algumas interrogações importantes colocam-se inevitavelmente aqui em matéria de imputação de responsabilidades: tendo em conta os meios técnicos necessários, que tipo de ciberataques é plausível que possam ocorrer por iniciativa de atores não estaduais e à margem dos estados? E, por similares razões técnicas, logísticas, de meios, etc., que tipo de ciberataques é plausível que só possam ocorrer com o apoio ou a anuência tácita dos estados, ainda que oficialmente estes neguem qualquer envolvimento? De acordo com Klimburg, ataques menos sofisticados do que a colocação de «bombas lógicas» mas mais visíveis do que estas, «como os ataques de negação de serviço ou os ataques que apagam páginas de um site na Web[39] são empreendidos por grupos não estaduais atuando, pelo menos, com o seu suporte tácito»[40]. Note-se que Klimburg faz esta afirmação tendo em mente os casos concretos da Rússia e da China e ocorrências como as que tiveram lugar na Estónia em 2007 e Geórgia em 2008. Todavia, em teoria, estes até poderão ocorrer apenas por motu próprio de atores não estaduais, dado o tipo de tecnologia, conhecimentos e recursos necessários estarem acessíveis a estes. Já a situação é diferente se estivermos a considerar os ataques de exploração da rede, sobretudo nos casos mais sofisticados. Mesmo que executados por atores não estaduais, os ataques de espionagem mais avançados requerem largas centenas de horas de programação e têm, frequentemente, objectivos políticos subjacentes, trazendo, consigo um benefício para um estado. Um exemplo desta situação poderá ser o caso do vírus Stuxnet, que infectou computadores, em pelo menos, onze países diferentes, o qual, tudo parece indicar, visava o programa nuclear iraniano. Todavia, este é também um bom exemplo dos «danos colaterais» que os ciberataques tendem a produzir. Tudo indica que o vírus terá sido concebido em diferentes módulos de forma a que a programação fosse feita por partes que não tinham conhecimento do projeto no seu conjunto. Para Klimburg este é um indício de que a execução do projeto poderá ter sido contratada a um certo número de indivíduos ou organizações envolvidas no cibercrime[41].

É na China, o Estado mais populoso do planeta, que existe também o maior número de utilizadores da Internet a nível mundial, bem como de blogues, calculando-se que o número destes últimos poderá atingir os 50 milhões[42]. Em valor absoluto, os utilizadores chineses ultrapassarão os 400 milhões, existindo, todavia, um enorme potencial de crescimento pois, em termos relativos, a população do país ligada à rede é ainda baixa (cerca de 30 por cento). Importa, por isso, reter que a liderança chinesa quanto ao número de utilizadores da Internet tem tendência para se reforçar significativamente (ao longo deste século, provavelmente só a Índia, pela sua também enorme dimensão populacional, a poderá eventualmente disputar). Todavia, em abstrato, isto confere já à China a maior massa potencial de hackers ou netizens, os quais, eventualmente, podem ser «recrutados» ou mobilizados para objectivos estratégicos e de interesse nacional.

Desde 2003 que a China integra na sua organização militar unidades preparadas para atividades de ciberguerra. Por exemplo, «a milícia da cidade de Guangzhou criou um batalhão de guerra de informação organizado em torno das instalações da empresa de comunicações dessa província chinesa. Esse batalhão integra companhias de ‘guerra de redes de computadores‘ e de ‘guerra electrónica‘»[43] Como faz notar Klimburg, é possível indivíduos «fazerem parte dessa milícia sem nunca terem usado um uniforme militar. Para muitos estudantes das universidades técnicas é uma condição de facto para a sua inscrição. Muitas instituições civis, especialmente as empresas detidas pelo estado, também têm o seu papel nessa milícias»[44]. Em geral, nada disto é novidade. A sua existência é parte integrante da estratégia de defesa nacional chinesa e da organização das forças armadas desde a fundação da República Popular da China em 1949. Todavia, o que é novo é que essas organizações, que previamente eram uma espécie de «tigres de papel», adquiriram agora um novo fôlego, «tornando-se atores de ciberguerra proficientes». Aqui entra também em conta a enorme massa humana que a China dispõe, e o facto de nas últimas décadas surgirem camadas da população com qualificações e conhecimentos tecnológicos importantes. Em 2007, «existiam mais de 25 milhões de estudantes em universidades estaduais. Milhões de pessoas são também empregadas nas empresas de informação-tecnologia detidas pelo Estado». Devido a estes números «e ao provável número de hackers patrióticos que podem fazer parte das estruturas militares, não é surpreendente que a maioria dos ciberataques aos Estados Unidos tenham origem na China»[45].

Ainda segundo Klimburg, não serão mais de mil a cinco mil os hackers que farão parte dessas estruturas ou programas paragovernamentais. Todavia, a afiliação informal poderá levar esse número a aumentar cerca de dez vezes. Muitos dos ataques são provavelmente encorajados de forma ativa para distrair os hackers de outras atividades. Assim, evita-se que «os seus talentos sejam direcionados para atividades antigovernamentais. Competições organizadas de hackers e outras ações desse género são não apenas tentativas de identificar bons talentos, mas também de manter o talento ocupado de forma segura». A referida estratégia chinesa coloca aos analistas ocidentais, entre outros problemas complexos, o problema das múltiplas identidades dos seus intervenientes. Isto torna difícil, se não mesmo, em certos casos, impossível, a sua catalogação adequada: estamos perante atores estaduais ou não estaduais; as ações resultam de iniciativa «própria» ou são determinadas por organismos estaduais? Assim, «é possível, para uma mesma unidade de milícia de ações de ciberguerra, ser, ao mesmo tempo, um departamento de tecnologias de informação numa universidade, uma agência de publicidade online, um clã de jogo online, uma equipa de hackers patrióticos e um sindicato do cibercrime local envolvido em pirataria informática»[46].

Outro caso interessante de atuação de atores não-estaduais, direta ou indiretamente patrocinados pelo seu país de origem, é o caso da Rússia. A Rede de Negócios Russa é considerada a principal organização mundial no fornecimento de base logística para ciberataques e de outras atividades, sem motivações politicas, que encaixam no perfil de cibercrime. É também identificada pela NATO como uma ameaça à cibersegurança dos seus membros. Entre outras acusações que lhe têm sido feitas, consta a da facilitação dos ciberataques à Geórgia, no Verão de 2008. Como se explica esta atitude de benevolência das autoridades russas face a essa organização? Parecem existir duas grandes explicações. Uma primeira sugere a proximidade com os serviços de informações e segurança russos, que lhe permitiriam um «tratamento especial». Uma outra razão avançada prende-se com a maneira de encarar este tipo de atividades na sociedade russa. Uma parte significativa da população vê isso não como problemático para o país, mas antes para os países ocidentais – o alvo preferencial dessas atividades. Isto leva a que estes atos sejam vistos como uma espécie de «maus modos de cavalheiros», ou até em termos quase heroicos[47]. Tal como vimos no caso do «patrocínio» de atores não estaduais pela China – fenómeno que, naturalmente, não é exclusivo desse país, nem da Rússia…. –, os serviços secretos e de segurança procuram mobilizar ‘hackers patrióticos‘ que possam ser usados em ciberataques sem envolver diretamente, pelo menos na aparência, o estado russo.

Mas serão estes usos, questionáveis do ponto de vista ético e legal, de atores não-governamentais ou que supostamente têm esse perfil, um exclusivo de estados onde autoritários ou semi-democráticos? Por razões ligadas aos valores democráticos e aos constrangimentos legais dos governos, a mobilização de atores não estaduais – que também se pode constatar nas democracias liberais –, não se verifica da mesma maneira. Não é típico destas, nem expetável face aos seus princípios, que organizem cibermilícias no modelo chinês, ou direcionem organizações do cibercrime para esse efeito, como parece ser o caso da Rússia. (Não estamos com isto a querer dizer que os países ocidentais estejam totalmente «limpos» em matéria dessas estratégias). O que tipicamente os governos dos estados democráticos normalmente têm procurado fazer, é criar mecanismos de cooperação e de estímulo à participação de elementos dos meios empresariais e da sociedade e civil nos objectivos governamentais na área da cibersegurança. Por exemplo, no Reino Unido, existe um Centro para a Proteção da Infraestrutura Governamental, o qual desempenha um papel importante na ajuda à indústria britânica a defender-se do cibercrime. Nos Estado Unidos, as indústrias relevantes para a segurança nacional operam em proximidade com o governo federal. Como faz notar Klimburg, «as empresas privadas envolvidas diretamente em trabalhos de segurança e defesa podem estar tão estreitamente entrelaçadas com o Estado que, vistas do exterior, dificilmente se descortina qualquer distinção clara entre ambos»[48]. Para além disso, a forma mais relevante de mobilização de atores não estaduais passa pela identificação destes com os objetivos dos governos. Desde logo, há o papel desempenhado por numerosos think tanks com propostas e contributos em matéria de cibersegurança, bem como outros grupos e organizações da sociedade civil. «É esse, por exemplo, o caso da Security Trusts Networks, o qual tem tido um papel relevantes na análise de cibertaques (por exemplo, no caso dos ataques à Geórgia, no Verão de 2008), algures entre o jornalismo de investigação e a informática forense»[49].

 

O problema da avaliação do impacto económico dos ciberataques

Num estudo efectuado em 2004 e apresentado ao Congresso dos Estados Unidos, Brian Cashell e outros investigadores procuraram avaliar as consequências económicas que podem resultar de um ciberataque[50]. Apesar dos anos decorridos, esse estudo foi dos mais exaustivos até agora efetuados. Mostra também como a avaliação dos danos económicos de um cibertaque é um problema complexo e difícil de quantificar. Em primeiro lugar, «porque há fortes razões que desencorajam relatar as falhas de segurança informática»[51] (devida a receio de danos na imagem, perda de valor nos mercados bolsistas, perda de clientes, sanções legais por não observância de regras de segurança, inspirar outros ciberataques, etc.). Em segundo lugar «porque as organizações são frequentemente incapazes de quantificar os riscos dos ciberataques que enfrentam, ou avaliar monetariamente o custo dos ataques que já tiveram lugar. Assim, mesmo que toda a informação confidencial e privada sobre ciberataques fosse tornada acessível e coligida numa base de dados, a mensuração do impacto económico continuaria a ser problemática»[52].

Mas a mensuração dos custos económicos de um ciberataque, ou de um ciberconflito, é também problemática por outras razões[53]. Como explicam Brian Cashell et. al. «os custos associados aos ciberataques podem ser divididos em diretos e indiretos. Os custos diretos incluem as despesas relacionadas com a restauração do sistema original do computador, anterior ao ataque. A recuperação de um ataque irá, tipicamente, requerer despesas extras em trabalho e materiais, sendo estes os custos mais fáceis de medir. Mas, mesmo a este nível básico de contabilização de custos, podem surgir complexidades. Se um ataque levar ao aumento das despesas em tecnologias de informação serão esses custos atribuíveis ao ataque? E se um upgrade no hardware ou no software for acelerado por um ataque, deve esse upgrade ser considerado como um custo de segurança? Um outro conjunto de custos indiretos deriva da interrupção dos negócios o que, numa linguagem mais jurídica, poderíamos designar como ‘lucros cessantes’. Estes custos podem incluir perda de receita e perda de produtividade dos trabalhadores durante a interrupção. Receitas perdidas podem facilmente ser medidas por referência a um período pré-ataque, mas isto pode não resolver toda a questão. As receitas perdidas podem ser um fenómeno transitório, limitado ao período do ataque (e, possivelmente, também a um período posterior), ou podem ser de longo prazo, se, por exemplo, alguns mudarem permanentemente para empresas competidoras»[54].

Mas, para além das consequências ao nível microeconómico e empresarial, e da (já difícil) avaliação e quantificação desses danos, a questão das consequências de um ciberataque coloca-se, também, a nível macroeconómico, aumentando a dificuldade de avaliação. Neste contexto, Brian Cashell et. al. fazem notar que «qualquer estimativa do potencial custo económico de um ciberataque será, em última instância, especulativa». Se imaginarmos um cenário em que toda a atividade económica é «interrompida temporariamente interrompida por um ciberataque, a única consideração na estimativa dos custos será a duração do evento. A percentagem do Produto Interno Bruto (PIB), produzida num dado dia é de cerca de 0.3% do total do ano. Alguma da produção que poderia ser interrompida é improvável que fosse perda permanente. Seria simplesmente adiada até que os efeitos do ataque se dissipassem. Desde que uma considerável, ainda que desconhecida, fatia dos ouptus não esteja dependente dos computadores, o custo final será menor do que esse. Historicamente, a produção total anual de bens e serviços tem sido, em média, cerca de 1/3 do valor total de stock de capital físico. Em 2001 o equipamento informático e o software contavam cerca de 18% do stock total de capital. Se for assumido que o equipamento e o software contribuem para o output da mesma maneira que outras formas de capital, a sua contribuição direta será cerca de 18% da produção total anual. Se essa fatia do output fosse interrompida durante um único dia, isso representaria cerca de 0,05% do PIB total anual. Desde que um ciberataque não seja abrangente e seja de duração curta, é provável que quaisquer consequências macroeconómicas sejam relativamente pequenas. Mas, seja qualquer for o âmbito do ataque, a capacidade de recuperar rapidamente é importante, pois a duração do período em que os computadores permanecem afectados é uma determinante importante dos custos. Pode ser quase tão importante para as empresas tratar das suas competências para restaurar as operações como trabalhar para isolar qualquer potencial ataque»[55].

 

Conclusões

A reflexão estratégica e legal sobre a ciberguerra e sobre as suas possíveis consequências ainda está nos primórdios. Este caráter incipiente deteta-se no próprio conceito de ciberguerra que não é objeto de um consenso internacional, sendo frequentes as suas utilizações «livres». A fronteira desta com o cibercrime e o atos ciberativismo com motivações políticas também nem sempre é simples de traçar. O protagonismo que, tendencialmente, os atores não estaduais têm neste novo terreno, complica a análise, nomeadamente ao nível da atribuição de responsabilidades nos ciberataques. Avaliação das suas consequências microeconómicas e macroeconómicas levanta questões de mensuração de danos problemáticas, quer por falta de informação relevante, quer por dificuldade de estabelecer critérios adequados. Por outro lado, até agora, não tivemos nenhum ciberconflito em grande escala sustentado abertamente por atores estaduais. Aliás, em total rigor, os ciberataques até agora ocorridos, mesmo nos casos da Estónia e da Geórgia, não parecem configurar um ato de guerra face ao Direito dos Conflitos Armados/Direito Internacional Humanitário. Por isso, tudo o que se possa dizer sobre este assunto é, naturalmente, ainda um pouco especulativo e susceptível de revisão. Todavia, a revolução tecnológica e digital em marcha desde finais do século passado, está, indiscutivelmente, a transformar a economia, a sociedade e a maneira de fazer a guerra. Tanto quanto é possível avaliar hoje, a tendência é para que o ciberespaço – entendido como a rede global de infraestruturas de tecnologias de informação interligadas entre si, especialmente as redes de telecomunicações e os sistemas de processamento dos computadores – se transforme, também, uma nova dimensão aos conflitos internacionais. Apesar das dificuldades de avaliação das reais consequências de uma genuína ciberguerra, é de recear que estas possam ser bem destrutivas para o normal funcionamento de sociedades complexas.

 

NOTAS

[1] LIBICKI, Martin – «Cyberdeterrence and Cyberwar», Rand Corporation, 2009, pp. 3-4. Disponível em: http://www.rand.org/pubs/monographs/2009/RAND_MG877.pdf

[2] Para Michel Deyra «apesar de as Nações Unidas utilizarem preferencialmente a expressão sinónima de ‘Direito dos Conflitos Armados’, a designação de Direito Internacional Humanitário é a mais adequada, já que as disposições que integram esta disciplina constituem precisamente uma transposição para o Direito das preocupações de ordem moral e humanitária. A expressão direito da guerra encontra-se actualmente abandonada a partir do momento em que caducou o conceito do estado de beligerância, ou pelo menos desde a adopção do princípio da proibição do recurso à força». In DEYRA, Michel – Direito Internacional Humanitário. Lisboa: Procuradoria-Geral da República, 2001, p. 15.

[3] ZIPPELIUS, Reinhold – Filosofia do Direito, Lisboa: Quid Juris, 2010, p. 23.

[4] Ibidem, p. 23.

[5] ARQUILLA, John e RONFELDT, David – «Cyberwar is Coming!», In Comparative Strategy, vol. 12, nº. 2, 1993, p. 28.

[6] Communications, Command, Control and Intelligence.

[7] Indentification-Friend-or-Foe.

[8] ARQUILLA, John e RONFELDT, David – «Cyberwar is Coming!», In Comparative Strategy, vol. 12, nº. 2, 1993, pp. 30-31.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem, p. 31.

[11] SAMPAIO, Fernando G. – Ciberguerra. Guerra Electrónica e Informacional, um Novo Desafio Estratégico, Escola Superior de Geopolítica e Geoestratégia, 2001, pp. 3-4. Disponível em: http://www.defesanet.com.br/esge/ciberguerra.pdf

[12] «A leintenkrieg, ou ‘guerra de controlo‘, é o mesmo que ciberguerra variando quanto ao uso do vocábulo alemão. Ambas as ideias, entretanto, estão relacionadas com um novo tipo de operação de guerra, que podemos chamar de uma variante da ‘guerra total‘ de Lundendorf, já que se trata de atacar não só as forças aramadas mas também os civis. Talvez, até, a ‘ciberguerra‘ ou leintenkrieg, sejam a forma de ‘guerra total‘ que pode vir a ser aplicada ao século XXI, sendo que é evidente que o conceito abrange aquilo que os grandes teóricos da guerra, tanto Liddel Hart como Fuller, entendiam como ‘paralisação estratégica.‘» Cfr. Ibidem.

[13] Ibidem.

[14] Ibidem.

[15] Ibidem.

[16] Ibidem.

[17] Ibidem.

[18]Ibidem.

[19] O termo hacker é aqui usado no seu sentido mais corrente actual, o qual tem, conforme já referimos, uma conotação negativa. Refere-se a alguém, mais ou menos, dotado para a informática, mas que usa o seu conhecimento especializado para acções abusivas e/ou ilegais de acesso a outros computadores e redes, bem como para praticar actos maliciosos que podem produzir danos de dimensão variável.

[20] Citado em SINKS, Michael A. – «Cyber Warfare and International Law», Research Report Submitted to the Faculty in Partial Fulfillment of the Graduation Requirements, Air Command and Staff College/ Air University, Maxwell, Al, 2008, p. 5.

[21] SOMMER, Peter e BROWN, Ian – «Reducing Systemic Cybersecurity Risk», Paris, OECD/IFP-International Future Program Department, 2011, p. 5. Disponível em: http://www.oecd.org/dataoecd/3/42/46894657.pdf

[22] Ibidem.

[23] Ibidem.

[24] Nas Convenções de Haia de 1907 foram estabelecidas as leis e costumes de guerra, os direitos e deveres dos Estados neutros, ao regime dos navios de comércio, à transformação de navios de comércio em navios de guerra, à colocação de minas submarinas automáticas de contacto, etc.

[25] Sobre as fontes do Direito dos Conflitos Armados/Direito Internacional Humanitário, ver DEYRA, Michel – Direito Internacional Humanitário, pp. 19-24.

[26] SOMMER, Peter e BROWN, Ian – «Reducing Systemic Cybersecurity Risk», p. 5.

[27] Ibidem.

[28] Ibidem.

[29] Termo em língua inglesa criado a partir da junção das palavras net+citizen, e que, em lingua portuguesa, poderia ser traduzido como «cibercidadão».

[30] CLARK, Richard A. e KNAKE, Robert K. – Cyber War. The Next Threat to National Security, Nova York: Harper Collins, 2010, pp. 147-148.

[31]Ibidem.

[32] Ibidem, pp. 148-149.

[33] Ibidem, pp. 148-149.

[34] KLIMBURG, Alexander – «Mobilising Cyber Power» In Survival, vol. 53, nº 1, Fevereiro-Março 2011, pp. 41-60.

[35] Ibidem, p. 41.

[36] Ibidem, p. 42.

[37] Ibidem.

[38] Ver RAGAN, Steve – «Fannie Mae logic bomb creator found guilty» In The Tech Herald, 7 de Outubro de 2010. Disponível em: http://www.thetechherald.com/article.php/201040/6256/Fannie-Mae-logic-bomb-creator-found-guilty. Ver também DVORAK, John C. – «The curious case of Rajendrasinh B. Makwan» In Market Watch, 30 de Janeiro de 2009. Disponível em : http://www.marketwatch.com/story/the-curious-case-of-rajendrasinh-b-makwana

[39] Para o apagamento de páginas na Web normalmente são exploradas falhas presentes na própria página ou nas aplicações da Web, ou então é aproveitada uma falha de exploração do servidor a página está alojada. Na maioria dos casos, os sites são afectados apenas na sua página inicial, sendo esta tipicamente totalmente apagada e/ou substituída por uma mensagem. Todavia, o apagamento da página em si mesmo não acarreta a perda dos dados. Para dados estatísticos sobre o apagamento de páginas Web ver ALMEIDA, Marcelo – «Defacements Statistics 2008-2009 – 2010», In Zone-h, 27 de Maio de 2010, Disponível em: http://www.zone-h.org/news/id/4735.

[40] KLIMBURG, Alexander – «Mobilising Cyber Power» In Survival, vol. 53, nº 1, Fevereiro-Março 2011, p. 42.

[41] Ibidem, p. 43.

[42] Ibidem, p. 45.

[43] Ibidem.

[44] Ibidem.

[45]Ibidem, p. 46.

[46] Ibidem.

[47] Ibidem, p. 50.

[48] Ibidem, p. 52.

[49] Ibidem, p. 54.

[50] CASHELL, Brian (et. al.) – «The Economic Impact of Cyber-Attacks», CRS Report for Congress, The Library of Congress, 2004. Disponível em: http://www.cisco.com/warp/public/779/govtaffairs/images/CRS_Cyber_Attacks.pdf

[51] Ibidem.

[52] Ibidem, p. 13.

[53] Ibidem, p. 15.

[54] Ibidem.

[55] Ibidem, pp. 32-33.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, “A Ciberguerra como Nova Dimensão dos Conflitos Internacionais” artigo originalmente publicado em Relações Internacionais nº 33, março (2012): 53-69.

©  Imagem: capa do Livro de José Pedro Teixeira Fernandes, “Ciberguerra: Quando a Utopia se Transforma em Realidade” (QuidNovi/Verso da História, 2014)

Da Geopolítica clássica à Geopolítica pós-moderna: entre a ruptura e a continuidade

Geopolítica- logo

L’ histoire de ce mot n’est pas simple pas plus que son champ sémantique qui tend à s’élargir: aujoud’hui on parle de géopolitique a propos de la multiplication […] de problèmes aussi diverses que l’appartion de nouveaux États, le tracé de leurs frontières, leurs conflits territoriaux, l’expansion de certaines ideologies politiques et religieuses comme l´islamisme, ou les revendications de peuples qui veulent être indépendents; mais on parle aussi de géopolitique, et de plus en plus, depuis quelques années, a propos de problèmes politiques au sein d’un même État […] Il est tentat de considerer qu’il s’agit d’un phénomène de mode.

Yves LACOSTE (1993 [1995]: 7)

1. A Geopolítica como disciplina académico-científica e saber prático tem múltiplas histórias relevantes, simultaneamente paralelas e concorrenciais, estando longe de ser um campo do conhecimento unitário, ao contrário do que a palavra usada no singular sugere. Face a esta multiplicidade de abordagens propomo-nos, como primeiro objectivo deste artigo, passar em revista os traços fundamentais da(s) histórias Geopolítica(s) alemã e britânica da primeira metade do século XX, pelo seu maior impacto sobre este campo do conhecimento. Como segundo objectivo propomo-nos analisar em que medida a Geopolítica da primeira metade do século XX (a Geopolítica clássica), que neste artigo designamos também por «primeira vaga» da Geopolítica, foi de facto «morta» ou continua a influênciar, de uma maneira directa ou indirecta, o pensamento ocidental sobre as Relações Internacionais no mundo do século XXI. E, como terceiro e último objectivo, vamos ainda tentar avaliar até que ponto o interesse acrescido que, a partir dos anos 70 do século XX, surgiu relativamente a este campo do conhecimento e gerou aquilo que designamos por «segunda vaga» da Geopolítica (nome sob o qual agrupamos uma pluralidade de abordagens, entre as quais a pós-moderna), radica nas virtudes descritivas, explicativas, analíticas ou mesmo críticas da Geopolítica, ou, pelo contrário, se estamos, apenas, perante mais um fenómeno de moda alimentado artificialmente a partir dos meios académicos, políticos e jornalísticos.

2. Um primeiro aspecto relevante na análise da Geopolítica clássica é o da origem da própria palavra «Geopolítica». Embora haja divergências[1] quanto ao momento exacto em que esta foi utilizada pela primeira vez, é consensual, no âmbito dos estudos académicos desta disciplina, que o neologismo foi originalmente cunhado, no crepúsculo do século XIX, pelo sueco Rudolf Johan Kjellén, professor das Universidades de Gotemburgo e Uppsala.

Independentemente das incertezas quanto à data da sua primeira utilização é fácil constatar que o neologismo «Geopolítica» foi um produto directo do contexto histórico-político vivido por Kjellén, na transição do século XIX para o século XX. Nessa época, a Suécia estava profundamente dividida pelo debate em torno da dissolução da união de Estados Súecia-Noruega, que datava de 1814, facto que acabou por ocorrer em 1905. O professor de Uppsala foi um forte opositor da independência da Noruega, tendo, para o efeito, redigindo diversos manuscritos (entre os quais aquele em terá utilizado pela primeira vez a palavra «Geopolítica», intitulado Inledning till Sveriges Geografi) e efectuado virulentas intervenções políticas contra essa dissolução.

A receptividade ao discurso imperialista/conservador/autoritário e ao neologismo de Kjellén foi bastante significativa, não só na Suécia, como entre o público de língua alemã (Alemanha e Áustria). Por isso, as ideias de Kjellén rapidamente se tornaram populares no espaço cultural germânico, onde o neologismo foi introduzido, tal como os seus trabalhos, pelo geógrafo austríaco Robert Sieger nos primeiros anos do século XX. (Korinman, 1990: 349, nota 79). Esta rápida germanização da Geopolítica deveu-se também ao facto do sueco Kjellén ter uma profunda admiração pela Alemanha imperial e constituir, juntamente com o britânico Houston Stewart Chamberlain e o francês Joseph-Arthur, conde de Gobineau, «um famosíssimo trio não alemão super germanófilo» (Weigert, 1942: 275).

A explicação do significado do neologismo e do objecto deste novo saber foi feita por Kjellén na sua obra mais importante, Staten som Lifsform («O Estado como forma de vida», 1916) redigida originalmente em sueco, mas rapidamente traduzida para alemão («Der Staat als Lebensform», com a 1ª edição em 1917). Nesta obra, a Geopolítica foi apresentada como «a ciência do Estado enquanto organismo geográfico tal como este se manifesta no espaço» sendo o Estado entendido como país, como território, ou de uma maneira mais significativa como império. Esta nova «ciência» tinha por objecto constante o Estado unificado e pretendia contribuir para o estudo da sua natureza profunda, enquanto que a Geografia Política «observava o planeta como habitat das comunidades humanas em geral». (Korinman, 1990: 152).

Assim, para Kjellén, a Geopolítica não era um neologismo inócuo de agradável ressonância erudita, como afirmavam os seus críticos e detractores. Tratava-se, antes, de um neologismo que designava uma verdadeira ciência autónoma, com um objecto novo, diferente da Politische Geographie («Geografia Política», 1897), criada pelo mais importante geógrafo germânico da segunda metade do século XIX – Friedrich Ratzel[2] – detentor da cátedra de Geografia (1886) na prestigiada Universidade de Leipzig e um dos mais influentes geógrafos da Europa novecentista

3. Com ligação mais ou menos directa à prestigiada tradição novecentista alemã de estudos geográficos e à tradição histórica-nacionalista de Leopold von Ranke e Heinrich von Treitschke, surgiu na Alemanha, na segunda década do século XX, aquilo que ficou conhecido como a «Escola alemã da Geopolítica» ou «Escola de Munique». A sua principal publicação divulgadora foi a Zeitschrift für Geopolitik[3] («Revista de Geopolítica»), fundada em 1924 e destinada preferencialmente a geógrafos profissionais, mas visando também a divulgação dos seus conteúdos junto de não especialistas, diplomatas, homens políticos, jornalistas e industriais.

A personalidade central da Zeitschrift für Geopolitik foi Karl Haushofer, que reunia as características de um militar e de um académico: para além dos conhecimentos de estratégia militar inerentes à sua formação de alta patente e ao exercício de docência na academia militar, era detentor de significativas credenciais académicas. Os seus trabalhos académicos, livros e artigos publicados, tornaram-se rapidamente populares na Alemanha e tiveram mesmo algum reconhecimento internacional fora do mundo germânico. Note-se que para o seu sucesso contribuiu muito a sua experiência no exercício de cargos militares e o vasto conhecimento prático das imensas regiões da Ásia e do Pacífico, especialmento do Japão, onde desempenhou funções como adido militar (1908-1910).

Para a compreensão dos trabalhos de Haushofer e da Zeitschrift für Geopolitik é importante notar que estes se desenvolveram num período político, económico e social extremente conturbado da história da Alemanha da primeira metade do século XX, em que era grande a difusão entre a população de um sentimento de decadência. A este facto temos de juntar a humilhação sofrida pela derrota militar na I Guerra Mundial e a incapacidade do regime democrático instituído pela República de Weimar (1918-1933) – que sucedeu à renúncia do Kaiser Wilhelm II e ao fim da Alemanha imperial do II reich (1871-1918) – em resolver os problemas sociais e territoriais. E temos de adicionar também a subversão do regime democrático de Weimar e a sua deposição pelo partido nazi de Adolf Hitler, com a fundação do III Reich (1933-1945), estreitamente associada ao desencadear dos trágicos acontecimentos da II Guerra Mundial.

É ainda importante notar que os trabalhos de Haushofer surgiram no contexto de um grande debate[4] que, nos anos 1924-1925, estalou entre a comunidade de geógrafos alemães e que opôs os defensores da Geografia Política clássica, na linha de Ratzel, aos defensores de uma nova Geopolítica. Karl Haushofer foi um dos principais protagonistas desse debate. Num artigo que ficou famoso nos anais desta polémica, precisamente intitulado Politische Erdkunde und Geopolitik («Geografia Política e Geopolítica», 1925), começou por sustentar a necessidade de difundir o conhecimento geopolítico, como saber estratégico, entre a elite dirigente alemã (políticos, diplomatas e militares) e a população em geral. E, para isso, era necessário romper com a tradição geográfica anterior, pois, a disciplina tinha-se constituído de uma maneira errada, sobre o dualismo Geografia Física/Geografia Humana, sendo o trabalho de Ratzel, embora indiscutívelmente importante, já ultrapassado. Então, traçou uma distinção entre a Geografia Política, que estuda a distribuição do poder estatal à superfície dos continentes e as condições (solo, configuração, clima e recursos) nas quais este se exerce, e a Geopolítica que tem por objecto a actividade política num espaço natural. (Korinman, 1990: 155).

Para além desta tomada de posição no debate que opôs geógrafos a geopolíticos podem-se encontrar, no âmbito dos vastíssimos trabalhos de Haushofer na Zeitschrift für Geopolitik, várias ideias e teses geopolíticas importantes, algumas das quais vamos analisar mais de perto, pela sua relevância, quer para a compreensão do seu pensamento, quer pelas suas implicações políticas na Alemanha do período entre as duas guerras mundiais. A primeira foi formulada em Grenzen in iher Geographischen und Politischen Bedeutung («As Fronteiras e o seu Significado Geográfico e Político», 1927), onde exortou os seus compatriotas a aprofundarem o conhecimento sobre as fronteiras nacionais, defendendo que estas são factos biogeográficos, e que por isso não se podem compreender, nem justificar, apenas por critérios jurídicos.

Num outro trabalho intitulado Geopolitik der Pan-Ideen («Geopolítica das Ideias Continentalistas», 1931), foi desenvolvido aquilo que ficou conhecido como tese das «Pan-regiões».[5] Nesta tese geopolítica foram identificadas quatro grandes regiões mundiais: a «Euro-África» (abrangendo toda a Europa, o Médio-Oriente e todo o continente africano); a «Pan-Rússia» (abrangendo a generalidade da ex-União Soviética, o sub-continente indiano e o leste do Irão); a «Área de Co-prosperidade da grande Ásia» (abrangendo toda a área bordejante da Índa e sudeste asiático, o Japão, as Filipinas, a Indonésia, a Austrália e generalidade das ilhas do Pacífico); e a «Pan-América» (onde se inseria todo o território desde o Alaska à Patagónia e algumas ilhas próximas do Atlântico e do Pacífico). Estreitamente ligada com a tese das «Pan-regiões» encontra-se a ideia dos «Estados-directores» (i. e. de um directório de potências), que consistia na liderança de cada uma dessas áreas por um Estado forte, dinâmico, com grande população e recursos, dotado de altos padrões económicos e industriais, bem como de uma posição geográfica que lhe permitisse exercer um efectivo domínio sobre os restantes. Os Estados melhor posicionados para exercer essa liderança seriam, segundo Haushofer, a Alemanha (Euro-África), a Rússia (Pan-Rússia), o Japão (Área de Co-prosperidade da grande Ásia) e os EUA (Pan-América).

5. Se é associado à história da geopolítica sueca-alemã que encontramos a origem do conceito e os mais significativos esforços de teorização (e justificação) de uma disciplina nova é, por sua vez, no âmbito da Geopolitics (i. e. da geopolítica britânica) que encontramos o que habitualmente é considerado principal texto fundador da disciplina: The Geographical Pivot of History, tema da conferência proferida pelo Honourable Sir Halford John Mackinder, em Londres, na Sociedade Real de Geografia, a 21 de Janeiro de 1904. O seu autor foi um notável geógrafo e académico da sua época, professor de Geografia em Oxford (1987-1905), director do Colégio Universitário de Reading (1892-1903), director da London School of Economics and Political Sciences (1903-1908) e um explorador famoso do continente africano, sendo o primeiro europeu a escalar o monte Quénia até ao seu cume (1899).

Embora The Geographical Pivot of History de Mackinder seja generalizadamente considerado o texto fundador do discurso geopolítico moderno, não deixa de ser curioso notar no mesmo a ausência total da palavra Geopolítica. Essa ausência pode-se também constatar em todos os outros trabalhos importantes do geógrafo britânico. Tudo indica que essa ausência foi deliberada, e que não se deve propriamente a um desconhecimento dos trabalhos de Kjellén e dos seus seguidores alemães, mas a uma premeditada atitude patriótica (compreensível se atendermos às suas posições políticas anteriormente expostas), de rejeicção do neologismo devido à sua conotação germânica.

Voltando à análise do texto fundador de Mackinder, verifica-se que este passou em revista, de uma maneira sintética e abrangente, a história universal, através de uma grelha de leitura geográfica, sustentando que foi nas imensas planícies asiáticas que ocorreram os acontecimentos decisivos da história universal, e que esta zona do mundo teve, milenarmente, uma influência decisiva no rumo dos acontecimentos mundiais. Face a esta constatação histórico-geográfica propôs um conceito analítico original – a área pivot (1904) – cuja designação foi posteriormente alterada para Heartland (1919), através da adopção da metáfora do «coração da terra», situado no continente Euro-Asiático, e coincidindo, grosso modo, com a ex-URSS, também já utilizada por outro geógrafo britânico, James Fairgrieve, em Geography & World Power (1915).

O trabalho de 1904 de Mackinder pode ser essencialmente interpretado como uma reacção britânica à influência das teses do almirante norte-americano Alfred Thayer Mahan sobre a apologia do poder marítimo (que este considerava serem falaciosas para os britânicos), a mais famosa das quais formulada em The Influence of Sea Power upon History, 1660-1783 (1890). O grande impacto dos trabalhos de Mahan sobre os seus contemporâneos pode facilmente constatar-se na rival Alemanha onde, por exemplo, o Kaiser Wilhelm II determinou que os livros Mahan fossem leitura obrigatória pelos oficiais da sua marinha imperial…

Por sua vez, em Democratic Ideals and Reality (1919) Mackinder fez notar que, apesar da importância dos ideais democráticos, não se podia subestimar o impacto do pensamento estratégico de «grandes organizadores», como Napoleão Bonaparte e Otto von Bismarck. Recorrendo a uma metáfora cheia de simbolismo lembrou aos dirigentes dos Estados vencedores da I Guerra Mundial que, conforme um general romano instruíra um escravo para segredar-lhe ao ouvido que era mortal (de modo a que nos momentos de triunfo militar não perdesse a noção da realidade), também estes deveriam ter alguém a lembrar-lhes repetidamente: who rules East Europe commands the Heartland; who rules the Heartland commands the World-Island; who rules the World-island commands the World (quem controlar a Europa de Leste domina o Heartland; quem controlar o Heartland dominará a Ilha-Mundial; quem controlar a Ilha-Mundial dominará o mundo). (Mackinder, 1919 [1942]: 150].

De facto, Mackinder, com a publicação de Democratic Ideals and Reality, pretendeu intervir nesse debate, chamando à atenção dos principais dirigentes políticos da aliança militar vencedora – Lloyd George (Reino Unido), Woodrow Wilson (EUA) e Georges Clemenceau (França) – para a necessidade premente de organizar a Europa de Leste, mantendo-a fora do controlo de uma única potência terrestre, por força das específicas características penínsulares da Europa Ocidental. Assim, aquilo que designou como um cordão de buffer-states («Estados-tampão»), deveria separar a Alemanha da Rússia, evitando que uma só potência dominasse o Heartland. (Mackinder, 1919 [1942]: 158). Assinalável é o facto de este trabalho do geográfo britânico ser não só um marco importante do pensamento realista-político, em defesa da tradicional balance of powers («balança de poderes»), como constituir uma interessante antecipação de muitos dos argumentos usados nos virulentos ataques a que foi sujeito o idealismo consubstanciado na Sociedade das Nações (instituída precisamente em 1919), ao longo da segunda metade dos anos 30

6.  Não é possível compreender as imagens profundamente negativas e diabolizadas (criadas sobretudo no mundo anglo-saxónico e especialmente nos EUA), em torno da Geopolitik e de Karl Haushofer, se não se tiver em conta o enorme impacto (e apreensão) gerado junto do público norte-americano, pelos sucessos da wermacht (o exército da Alemanha nazi) na II Guerra Mundial, durante a sua blitzkrieg («guerra relâmpago») que levou à conquista de quase toda a Europa, nos anos 1939-1941. Nem é possível compreender também essas imagens, senão tivermos em consideração o envolvimento directo dos EUA nesse conflito, a partir do ataque do Japão à base naval de Pearl Harbour, nas ilhas do Hawai, no Oceano Pacífico, a 8 de Dezembro de 1941.

No processo de descredibilização e «diabolização» da Geopolitik o ano de 1942 foi particularmente importante tendo sido, durante o mesmo, publicados diversos trabalhos influentes, todos da autoria de emigrantes europeus da Mittel Europa («Europa Central»), que se radicaram nos EUA. Entre esses trabalhos destacam-se os de Hans Weigert[6] intitulado Generals and Geographers: The Twilight of Geopolitics («Generais e Geógrafos: O Crepúsculo da Geopolítica») e o de Robert Strausz-Hupé, Geopolitics: The struggle for Space and Power («Geopolítica: A luta pelo Espaço e pelo Poder»), que vamos analisar sinteticamente e apenas nos seus traços essenciais.

Paralelamente ao processo de descredibilização e de «satanização» que se desenvolvia nos media norte-americanos e na literatura do tipo middle-brow, a Geopolitik foi simultaneamente objecto de um processo de descredibilização mais profundo, especificamente a um nível académico-científico. Nesse processo, destacou-se o mais célebre e influente geógrafo norte-americano da primeira metade do século XX, Isaiah Bowman, director da American Geographical Society (1915-1935), conselheiro-chefe para as questões territoriais do presidente Woodrow Wilson, na Conferência de paz de Versalhes (1919), membro fundador e presidente (1931-1934) do Council on Foreign Relations que esteve na origem da fundação da revista norte-americana, Foreign Affairs (1922), presidente da Universidade John Hopkins (1935-1945) e conselheiro do departamento de Estado para as questões territoriais durante a II Guerra Mundial.

Isaiah Bowman começou a ser conhecido do grande público, pela organização de expedições patrocinadas pela American Geographical Society e posterior publicação dos seus relatos, sendo a mais importante aos Andes, ao Sul do Perú, em 1915 (numa semelhança notória com o percurso de Mackinder). Mas foi sobretudo o trabalho intitulado The New World: Problems in Political Geography («O Novo Mundo: Problemas de Geografia Política», 1921), onde descreveu e analisou os impérios, os Estados e as colónias do mundo, na sequência dos arranjos territoriais saídos da I Guerra Mundial, que lhe deu maior notoriedade.

Por sua vez, com os desenvolvimentos da II Guerra Mundial e a crescente atenção prestada pelos media à Geopolítica aumentou a notoriedade de Bowman. No discurso público norte-americano era referido correntemente como «o nosso» geopolítico; e, simultaneamente, gerou-se nos media uma tendência espontânea de o qualificar como o «Haushofer americano» o que, por razões patrióticas e académicas compreensíveis, irritou o geógrafo. E, por reacção a esta «ligação perigosa», Isaiah Bowman publicou um influente artigo na Geograghical Revue, em Outubro de 1942, intitulado Geography versus Geopolitics, onde afirmava que «a Geopolítica representa uma visão distorcida das relações históricas, políticas e geográficas do mundo e das suas partes… os seus argumentos tal como são desenvolvidos na Alemanha servem apenas para sustentar o caso da agressão alemã» (Isaiah Bowman citado por Ó Tuathail, 1996: 154).

Este esforço de demarcação de Isaiah Bowman face à Geopolítica (i.e. à Geopolitik) foi secundado em publicações sobre Política Internacional dirigidas a públicos selectivos, como a Foreign Affairs, através da contraposição de teses geopolíticas «boas»[7], onde se evitava o uso da palavra proscrita. Nesse mesmo ano de 1942 surgiram ainda dois importantes trabalho da autoria de um norte-americano de origem holandesa, Nicholas John Spykman, ex-jornalista (1913-1920) e professor de Relações Internacionais na Universidade de Yale desde 1928, (onde foi também director do Instituto de Relações Internacionais. O primeiro, intitulado The America´s Strategy in World Politics. The United States and the Balance of Power («A Estratégia Americana na Política Mundial. Os Estados Unidos e Balança de Poder», 1942). Para além de ter recebido comentários elogiosos de Isaiah Bowman, foi qualificado pelo seu editor, a Harcourt, Brace and Company, como «a primeira análise geopolítica abrangente da posição dos Estados Unidos no mundo» feita pela «maior autoridade norte-americana em geopolítica» (apresentação de Spykman na capa da edição de 1942). Quanto ao segundo, The Geography of the Peace («A Geografia da Paz», 1944), redigido em 1943 mas publicado postumamente, marcou decisivamente a política externa dos EUA no pós-II Guerra Mundial, com o conceito de rimland (uma zona entre os poderes marítimo e terrestre, que abrangia parte da Europa Ocidental, o Médio Oriente, a Turquia, o Irão, a Índia, o Paquistão, a China, a Coreia, o Japão, o Sudoeste Asiático e a costa do pacífico da Rússia) uma área geoestratégica determinante para a segurança dos EUA no mundo.

É neste contexto politicamente tumultuoso e de separação de águas entre uma geopolítica «boa» e uma geopolítica «má» que tem de ser entendida a afirmação do professor da Universidade de Chicago, Hans J. Morgenthau, de que «a Geopolítica é uma pseudociência» (1948 [1997]: 178). O que Morgenthau, tal como Bowman, quis de facto qualificar como uma pseudociência não foia Geopolítica (entendida como o saber geopolítico em geral), mas, apenas, uma determinada visão geopolítica particular, a da Geopolitik (i.e. a geopolítica alemã-nazi). Certamente que nem Bowman, nem Morgenthau, pretendiam incluir nas suas críticas os trabalhos geopolíticos do britânico Mackinder (que sempre evitou usar a palavra Geopolítica…) nem os do seu compatriota Spykman que, aliás, se inserem perfeitamente na sua visão realista e anglo-saxónica das Relações Internacionais. Mas, o esforço empreendido pelos meios académico-científicos norte-americanos de «separação de águas», entre uma «Geopolítica boa» (não designada por Geopolítica…) e uma «Geopolítica má» não foi em vão: o uso da palavra Geopolítica foi praticamente banido durante três décadas, encerrando-se, assim, aquilo que parafraseando um conhecido título de Alvin Toffler, podemos designar como a «primeira vaga» da Geopolítica.

7. Foi só a partir dos anos 70 do século XX que ocorreu a (re)entrada em força da palavra «Geopolítica» no léxico académico-político e dos «mass media», que está na génese da «segunda vaga». Essa (re)entrada resultou essencialmente da conjugação de duas circunstâncias: um maior distancimento temporal face à II Guerra Mundial e à Alemanha nazi e o aparecimento de conflitos que «não encaixavam» na lógica dominante da confrontação ideológica (por exemplo, o conflito entre o Vientame e o Cambodja, no final anos 70, ocorrido entre dois Estados que perfilhavam uma similar ideologia socialista-comunista). Mas, se este interesse pelo saber geopolítico clássico retirou, progressivamente, a palavra «Geopolítica» do ostracismo, o facto é que também acabou por transformá-la numa palavra de moda, o que acarreta múltiplas dificuldades e ambiguidades. A este propósito, e tal como já fizera notar com alguma ironia Robert Harkavy, atente-se na seguinte apreciação critica que Daniel Deudney (1997: 93) faz sobre a utilização indiscriminada da palavra:

Few words in the study of world politics are widely used and vaguely defined as the term «geopolitics». As Robert Harkavy has observed, «the term geopolitics has come to be used in such a variety of contexts that it is no longer clear just what it means… It has come to mean almost everything, and therefore, perhaps almost nothing».

Como todas as palavras de moda (veja-se por exemplo o caso da globalização) tende a ser usado de uma maneira «livre» e indiscriminada, o que não só dá origem a confusões conceptuais, como lhe pode retirar alcance analítico, no âmbito dos estudos académico-científicos da disciplina. Voltaremos a este aspecto na parte final do nosso artigo. Para já, vamos deter-nos na análise aprofundada das circunstâncias e vias pelas quais a palavra e o saber geopolítico foi (re)introduzido.

No âmbito processo de (re)introdução académica da plavra «Geopolítica», o geógrafo francês Yves Lacoste, e a revista de Geografia e Geopolítica Hérodote (1976), ocupam normalmente um lugar de destaque. Um primeiro passo na direcção da Geopolítica foi dado por Yves Lacoste, professor de Geografia na célebre Universidade experimental de Vincennes (actual Paris VIII), com a publicação do muito aplaudido La Géographie ça sert d´abord à faire la guerre («A Geografia, isso serve para fazer a guerra», 1976), um trabalho escrito com a intenção de provocar uma ruptura[8] com a tradição geográfica francesa, essencialmente herdeira da Geografia descritiva de Paul Vidal de la Blanche. Um segundo passo mais explícito foi dado com a incorporação da própria palavra Geopolítica, no subtítulo do Hérodote, que passou também a designar-se como Revue de Géographie et Géopolitique (1983). Um terceiro passo foi a edição de um trabalho colectivo de fundo de análise geopolítica: o Dictionnaire de Géopolitique (1993).

Paralelamente aos trabalhos de Yves Lacoste e do Hérodote podem também destacar-se os de Michel Korinman sobre a Geopolitik, entre os quais de destaca o intitulado Quand l´Allemagne pensait le monde. Grandeur et décadence d´une Géopolitique («Quando a Alemanha pensava o mundo. Grandiosidade e decadência de uma Geopolítica»,1990); o do general francês Pierre-Marie Gallois, o principal teorizador da força nuclear francesa criada nos anos 60 por decisão do general de Gaulle, intitulado Géopolitique: les voies de la puissance («Geopolítica: as vias da potência», 1990); o de um outro importante geógrafo francês, o professor da Sorbonne (Paris I), Paul Claval, com Géopolitique et Géostratégie («Geopolítica e Geoestratégia»,1994); o de François Thual, director-adjunto do Institut de Relations Internationales et Stratégiques (IRIS), intitulado Méthodes de la Géopolitique. Apprendre à déchiffrer la realité («Métodos de Geopolítica: Aprender a decifrar a realidade», 1996); e o investigador do Institut International d’Études Stratégiques (IIES) e da Universidade de Paris II, Alexandre Del Valle, sugestivamente intitulado Guerres contre l ´Europe («Guerras contra a Europa», 2000). O sucesso das publicações francesas e em especial da revista Hérodote, estimulou o aparecimento de outras publicações sobre geopolítica em diversos países europeus. O caso mais evidente é o de Itália, onde no início dos anos 90, surgiu a Limes Rivista Italiana di Geopolitica (1993), uma publicação que arrancou com o apoio e colaboração de alguns elementos da equipa redactorial[9] do Hérodote.

Paralelamente aos esforços europeus, especialmente franceses, de recuperação da Geopolítica, surgiram nos EUA movimentos que convergiram no processo de (re)entrada em força da palavra «Geopolítica» no léxico académico-político e dos «mass media». Neste contexto, destaca-se a publicação, na década de 70, do importante trabalho do estratega anglo-americano Colin S. Gray, intitulado The Geopolitics of Nuclear Era. Heartlands, Rimlands and the Technological Revolution (1977), seguido de um outro, já em meados dos anos 80, intitulado Maritime Strategy, Geopolitics and the Defence of the West (1986). Mas foi uma personalidade emblemática do mundo académico e político norte-americano – o ex-secretário de Estado da administração Nixon, Henry Kissinger – quem deu o impulso mais importante na (re)introdução da Geopolítica, ao utilizar a palavra, durante os anos 70, nas suas análises sobre diversos conflitos internacionais, associando-a às virtudes do realismo político, do qual é um dos defensores mais famosos.

Com o final da Guerra Fria e o desaparecimento da União Soviética (1989-1991), assistiu-se à multiplicação de trabalhos e artigos de análise geopolítica, nos EUA. Também aí surgiu um dicionário, o Dictionary of Geopolitics, editado por John Ó Loughlin (1994), bem como importantes trabalhos de teorização. Entre estes destacam-se o de Samuel P. Huntington The Clash of Civilizations. Remaking of World Order («O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial», 1993-1996); o do ex-conselheiro do presidente norte-americano James Carter, Zbigniew Brezinski, intitulado The Grand Chessboard («O Grande Jogo», 1997).

É importante notar que a «segunda vaga» da Geopolítica não surgiu apenas pela mãos da corrente realista norte-americana das Relações Internacionais, a qual, aliás, nunca deixou propriamente cair[10] as análises da geopolítica clássica (como comprovam, por exemplo, os trabalhos do geógrafo/geopolítico Saul B. Cohen, nomeadamente através do célebre Geography and Politics in a World Divided «Geografia e Política num Mundo Dividido», 1963) apenas se limitando, conforme já assinalámos, a banir a palavra e a repudiar as teses germânicas. Na América do Norte, outras vias marcaram o regresso da disciplina, sobretudo nas abordagens de cariz mais académico. Este é o caso da chamada Critical Geopolitics («Geopolítica Crítica»), protagonizada, entre outros, pelo irlandês Gearóid Ó Tuathail, professor de Geografia na Virginia Tech dos EUA, pelo canadiano Simon Dolby e também pelo britânico Paul Routledge, juntamente com os quais editou uma interessante compilação dos principais textos de geopolítica intitulada The Geopolitics Reader («O Leitor da Geopolítica», 1998). Esta corrente filia-se num movimento académico que ganhou força durante os anos 80 e 90 no âmbito das Ciências Sociais e Humanas e que por simplificação podemos designar por «pós-modernismo»[11]. Tem o que é provavelmente o seu trabalho mais emblemático em Critical Geopolitics: The Politics of Writing Global Space («Geopolítica Crítica: A Política de Escrever o Espaço Global»1996), do já referido Gearóid Ó Tuathail. Outros contributos relevantes para esta abordagem, embora mais na perspectiva da chamada Economia Política Internacional (EPI), podem ser encontrados no trabalho de John Agnew e Stuart Corbridge intitulado, Mastering Space: Hegemony, Territory and International Political Economy («Dominando o Espaço: Hegemonia, Território e Economia Política Internacional», 1995).

7. Face ao aumento do interesse pela Geopolítica que está na origem de uma «segunda vaga» de livros e artigos académicos e de referências e análises nos mass media, uma questão que inevitavelmente se coloca é a de saber até que ponto os desenvolvimentos ocorridos nas últimas décadas do século XX surgiram em ruptura ou em continuidade, com a tradição da Geopolítica clássica da primeira metade do século. A resposta a esta questão não é fácil, dada a multiplicidade de abordagens que marcam este campo do conhecimento. Por isso, e sem pretendermos ser exaustivos, vamos passar previamente em revista alguns dos principais desenvolvimentos da disciplina, para depois delinear uma resposta consistente.

Em primeiro lugar, parece-nos bastante evidente que a Geopolítica clássica procurou afirmar-se como uma nova ciência através de um processo que podemos designar como imitatio scientiae[12] (i.e. procurou constituir-se como ciência por cânones positivistas, mais ou menos próximos do modelo das chamadas Ciências Naturais). Este facto pode detectar-se na sua preocupação de captar a realidade geográfico-política tal como ela é (i. e. na sua preocupação de uma objectividade «realista»), na separação das análises geográfico-polítcas e das questões éticas por elas levantadas, e no seu esforço de estabelecer leis e efectuar previsões, entre outros aspectos. Sintomaticamente, este esforço de aproximação ao modelo das Ciências Naturais ressalta, de alguma maneira, da já referida citação de Democratic Ideals and Reality, de Halford Mackinder: «quem controlar a Europa de Leste domina o Heartland; quem controlar o Heartland dominará a Ilha-Mundial; quem controlar a Ilha-Mundial dominará o mundo», que é a mais famosa de toda a Geopolítica, e que, talvez por isso mesmo, foi quase elevada ao estatuto de «lei científica» em muitos dos textos que a referem simplificadamente (ou simplisticamente…).

Este tipo de «construções científicas» é hoje normalmente merecedor de um certo distanciamento, em graus bastante variáveis (menor nas análises realistas ou neo-realistas das Relações Internacionais e bastante mais elevado nas chamadas abordagens pós-positivistas[13]) e também por razões substancialmente diferentes. Por exemplo, para François Thual (1996: 8) a Geopolítica clássica, com a sua característica oposição mar/terra e o seu determinismo geográfico revela uma atitude intelectual e uma forma de conhecimento que pode ser qualificada como espécie de «Geografia metafísica». Já para Gearóid Ó Tuathail (1996b: 5) a Geopolítica clássica deve mercer uma atitude de cepticismo e descrença generalizado, sendo considerada uma «narrativa» no sentido que Jean-François Lyotard deu ao termo (1979), (qualificação que, aliás, serve também para as Ciências Naturais, no pós-modernismo mais radical)[14]:

Geopolitics can be thought of as a regime of power/knowledge which produced international politics as an objective global spatial drama, a ceaselless global struggle between pre-determinated geographical entities, and a vision of territorial states dominating global space […] Its essentialist reading of international politics reveal the hubris of Western scientific myths about timeless essences and determining universal causation. Its naturalization of an idealized version of the European state system, projecting this upon the world, and representing global politics as balance-of-power politics, reveal the operation of an ethnocentric grand narrative wherein history has realized itself as European conceptions alone. In sum, modern geopolitics is a condensation of Western epistemological and ontological hubris, an imagination of the world from an imperial point of view.

Assim, podemos afirmar que a «segunda vaga» da Geopolítica é, em geral, menos ambiciosa nas suas pretensões científicas, abandonando, em graus variáveis, os processos de imitatio scientiae, e mais cuidadosa com a sua fundamentação epistemológica. Estas características podem também encontrar-se em François Thual (1996: 10), quando este em Méthodes de la Géopolitique, começou por justificar a pertinência da Geopolítica por referência à «fenomenologia» de Edmund Husserl, sustentando que, diferentemente dos fenómenos físicos, os fenómenos políticos são caracterizados pela «intencionalidade». E que dessa especificidade resulta a necessidade de «elaboração de um método que permita a interpretação dos factos da política internacional». Esta metodologia, que assenta no conceito de «representação» oriundo da Psicologia Social, foi originalmente proposta por Yves Lacoste no Hérodote e é explicada por este autor nas considerações teóricas efectuados no preâmbulo do Dictionnaire de Géopolitique (1993 [1995]: 29):

[La] Géopolitique, en tant que démarche scientifique, a pour objet l étude des rivalités territoriales de puvoirs et leurs répercussions dans l´opinion, et puisque c´est par l´intermédiaire d´un certain nombre de répresentations que l ón peut comprendre l ínterêt stratégique ou la valeur symbolique de ces territoires qui sont enjeux ou espaces de rivalités ou d’affrontements […].

Deste modo, e uma vez que a principal tarefa da Geopolítica é descobrir essa intencionalidade, esta deve recorrer a uma perspectiva pluridisciplinar, baseada essencialmente nos ensinamentos da História e da Psicologia Social e em menor grau da Psicanálise[15]. Nesta abordagem geopolítica os chamados «conflitos de identidade» surgem como uma das temáticas centrais, cuja análise consiste em traçar as diferentes «representações» que os povos ou colectividades fazem de si próprios e dos outros, sobre o martírio e o sofrimento, ou sobre a sobrevivência heróica, baseada em mitos e contra-mitos, que transcendem interesses económicos e geopolíticos e estão na origem de muitos conflitos violentos mais ou menos insolúveis. Uma das formas mais complexas dos conflitos de identidade é aquela que François Thual designa por «conflito de anterioridade», que incide sobre um território ou parcela de um território, que é considerado inalienável e um imperativo à perpetuação de uma determinada colectividade ou nação – é caso da oposição[16] servo-albanesa no Kosovo; é o caso do diferendo entre Hungria e a Roménia sobre a Transilvânia; e é ainda caso da rivalidade entre arménios e azeris sobre o Alto-Karabakh.

A análise de François Thual sugere que a «segunda vaga» da Geopolítica tem uma temática preferencial nas questões culturais-civilizacionais e de identidade colectiva. De facto, no pós-Guerra Fria, os trabalhos com mais impacto académico e mediático incidiram sobre esta temática. É nomeadamente o caso do já referido trabalho do professor de Harvard, Samuel P. Huntington «O Choque das Civilizações…» (1996); é ainda o caso do também já referido trabalho do investigador da Universidade de Paris II, Alexandre del Valle, «Guerras contra a Europa» (2000).

O aspecto mais interessante destes trabalhos é que estes foram significativamente influenciados pela Geopolítica clássica, nas suas diferentes versões, sendo duas variantes do mesmo raciocínio de tipo realista-geopolítico (e geoestratégico), agora enriquecido com argumentos de tipo cultural-civilizacional. No caso de Samuel P. Huntington é fácil verificar que este faz, implicitamente, a apologia da «potência marítima» na tradição anglo-americana de Mackinder/Spykman e das talassocracias, como «potências do bem», para a defesa do Ocidente (entendido como Europa católica/protestante + EUA/Canadá/Austrália/Nova Zelândia = Ocidente). Nesta construção os EUA são um dos pilares do conceito de «nós», o Ocidente; a Europa ortodoxa, incluíndo a Rússia são o «outro»; e os Turco-muçulmanos são também o «outro». Todas as civilizações não ocidentais são potenciais inimigos, sendo particularmente perigosa uma coligação sino-islamita contra o Ocidente.

Por sua vez, Alexandre del Valle faz uma certa apologia das «potências terrestres» ou epirocracias, na versão francesa, (agora apresentadas como «potências do bem»…), recuperando a ideia da aliança franco-russa do final século XIX (quando a França se sentiu cercada pela Alemanha após a sua unificação de 1871), para a defesa da Europa. Esta é entendida como a Europa Católica/Protestante/Ortodoxa incluindo a Rússia = Grande Europa ou «Europa das Pátrias» da tradição gaulista. Nesta construção os EUA são o «outro» do qual é preciso desconfiança e distanciamento; e os «Turco-muçulmanos» são não só o «outro» como o principal inimigo que quer conquistar a Europa pela jihad («guerra santa»), baseados na crença muçulmana de que Alá lhes prometeu a Europa como Das ul Harb («terra dos crentes»). Mas a «contra-teoria»[17] de Alexandre del Valle é mais do que uma reacção à tese geopolítica-civilizacional defendida por Samuel P. Huntington, em grande parte baseada na Geopolítica clássica de tipo anglo-saxónico. Ela é sobretudo uma rejeicção francesa do pensamento geopolítico norte-americano, na versão apresentada por Zbigniew Brezinski em The Grand Chessboard (1997), no qual foi analisada a complexa teia de interesses geopolíticos dos EUA e a sua rede de alianças geoestratégicas, especialmente na Ásia central pós-soviética. E essa análise não foi particularmente abonatória para os europeus, que aparecem retratados com um estatuto de menoridade político-militar e designados pejorativamente como «vassalos».

Nem todas as correntes que actualmente marcam, ou, pelo menos, influenciam a disciplina, partilham da opinião que a Geopolítica (re)entrou em força no pós-Guerra Fria. É o caso do conhecido estratega militar norte-americano, Edward N. Luttwak, que, num artigo intitulado From Geopolitics to Geoeconomics («Da Geopolítica à Geoeconomia», 1990), publicado na revista norte-americana The National Interest, defendeu que o final da Guerra Fria deu origem à «Geoeconomia» descrita como «uma nova versão da antiga rivalidade entre os Estados», que surgiu em substituição da Geopolítica. Para Luttwak, a Geoeconomia é o principal factor explicativo das relações internacionais do pós-Guerra Fria, entre o mundo capitalista desenvolvido, devido à perda de importância do tradicional poder militar e da diplomacia clássica. A excepção continuam a ser as zonas conflituais da periferia subdesenvolvida, onde a diplomacia e a guerra continuam a ser tão relevantes quanto o foram no passado. (Luttwak, 1988: 160-170).

Para caracterizar a emergente Geoeconomia, Luttwak estabeleceu ainda vários paralelismos, com a power politics, a Geopolítica e a Estratégia militar: «o capital para investimento na indústria proporcionado ou orientado pelo Estado é o equivalente ao poder de fogo; o desenvolvimento de produtos subsidiados pelo Estado é o equivalente às inovações no armamento; e a penetração nos mercados sustentada pelo Estado substitui as bases e guarnições militares em solo estrangeiro, bem como a influência diplomático.» (idem: 171). Por sua vez, o arsenal geoeconómico está também dotado de uma grande diversidade de armas, algumas velhas outras novas. Por exemplo, as tarifas «podem ser simples impostos cobrados sem outro fim em mente que não seja obter rendimentos; da mesma maneira os limites impostos pela quotas e a pura e simples proibição às importações poderão visar apenas a resolução de uma escassez aguda de moeda. Mas, quando o objectivo dessas barreiras comerciais é proteger essa indústria e permitir o seu crescimento passamos uma vez mais para a geoeconomia – o equivalente à defesa das fronteiras na guerra e da política mundial tradicional.» Apesar de os acordos do GATT/OMC proibirem a imposição arbitrária de tarifas, quotas ou limitações às importações é frequente ver Estados recorrerem a barreiras comerciais dissimuladas, o que é o equivalente geoeconómico «da emboscada, essa poderosíssima táctica de guerra». Neste contexto competitivo, é um método muito comum «estabelecer deliberadamente regulamentos de saúde e de segurança, ou exigências de etiquetagem, empacotamento ou reciclagem, a fim de excluir produtos estrangeiros.» (ibidem: 172).

Mas não é só a abordagem realista e neo-mercantilista de Edward Luttwak que contesta a importância da Geopolítica no mundo actual, ou pelo menos no mundo capitalista avançado. Uma outra corrente de tipo pós-modernista/pós-estruturalista, embora por razões substancialmente diferentes, considera também que esta tem vindo a perder a sua importância, desde os anos 80 do século XX. Essa corrente tem a sua origem nas ideias sobre a velocidade do arquitecto e historiador militar francês, Paul Virilio, que é um dos pós-modernistas que mais influência exerce em certos sectores académicos da Geopolítica e Relações Internacionais norte-americanas. Essa influência resulta da difusão da ideia que a «Cronopolítica», um conceito cunhado pelo próprio Virilio, está a substituir a tradicional Geopolítica, pela perda de importância do espaço material resultante da revolução provocada pela microelectrónica e pelas tecnologias de informação. Nesta concepção, a ubiquidade, um privilégio dos deuses, está a transformar-se numa possibilidade humana, pela primazia que o «tempo» adquiriu sobre o «espaço»[18].

A teorização da Cronopolítica foi aplicada às Relações Internacionais pelo professor de Ciência Política da Universidade norte-americana de Massachusetts, em Amherst, James Der Derian, em diversos trabalhos desenvolvidos na última década, entre os quais se destaca Antidiplomacy: Spies, Terror, Speed and War («Anti-Diplomacia: Espiões, Terror, Velocidade e Guerra», 1992). No centro desta abordagem «anti-ciência», que ataca os cânones positivistas-realistas tradicionais, está a «velocidade»[19], a variável fundamental da Cronopolítica. A reflexão sobre a velocidade/aceleração abriu um novo campo de abordagem que Virilio designou por «dromologia».[20] Este campo tem essencialmente por objecto o estudo crítico das consequências da velocidade/aceleração nos diferentes aspectos da vida humana, provocados pelo «progressos» científicos nos campos da microelectrónica e das novas tecnologias de comunicação e informação e que levaram Paul Virilio a afirmar, na esteira de Jean Braudillard, que as distinções entre imagens visuais e mentais estão a esbater-se, e que o «virtual está a destruir o real». (Der Derian, 1998: 7).

A crítica ao chamado «lado negro» do Iluminismo, à racionalidade científica separada das questões éticas pelo positivismo, e também à Geopolítica enquanto saber positivista e discurso de poder com a ambição de «dar conselhos ao princípe», é feita por Paul Virilio e James Der Derian, com base num conjunto de trabalhos que podem ser considerados precursores do actual pós-modernismo/pós-estruturalismo. É o caso da chamada «Escola de Frankfurt» fundada nos anos 20-30 do século XX; e é também o caso de Michel Foucault e das suas arqueologias-genealogias, e, especialmente, dos seus trabalhos sobre o poder disciplinar e as técnicas de controlo derivadas do «panoptismo» (um sistema de vigilância prisional proposto originalmente por Jeremy Bentham, num trabalho sobre a organização das prisões britânicas efectuado no início do século XIX).

Por tudo o que anteriormente foi dito, falar em «renascimento» da Geopolítica, nos anos 70, não deixa de ser equívoco. E é equivoco porque sugere que a Geopolítica esteve «morta», num período algo «nebuloso» para a maioria das análises, grosso modo situado entre os anos 1945-1975, facto que não corresponde exactamente à realidade. Como vimos, o que efectivamente ocorreu após a II Guerra Mundial foi uma condenação ao «ostracismo» da palavra, pela sua conotação com a Alemanha nazi e de uma determinada forma de pensamento geopolítico (a Geopolitik), pelas suas alegadas ligações ao poder nazi. Quanto à Geopolitics anglo-americana, não só não desapareceu como até floresceu nos EUA do pós II Guerra Mundial, num contexto de confrontação ideológica/política/militar com a ex-União Soviética. Neste sentido, é mais exacto afirmar o que o ocorreu nas últimas décadas do século XX não foi propriamente um «renascimento» mas mais um aumento interesse de pela Geopolítica, que não se circunscreveu aos meios académicos e políticos, mas foi também projectado para o grande público pelos mass media.

Todavia, é importante notar que o facto a Geopolítica nunca ter estado propriamente «morta» não significa que não se possa falar numa «segunda vaga», como movimento com algumas características próprias e originais, face à Geopolítica clássica anglo-germânica, da primeira metade do século XX. O que de facto se pode constatar numa análise mais aprofundada é que há, simultaneamente, um misto de continuidades e descontinuidades face ao passado. Se, por um lado, as ideias centrais da Geopolítica clássica, exceptuada a versão «Haushofer/Zeitschrift für Geopolitik», continuam a existir e a influenciar muitos dos trabalhos actuais, por outro lado, também surgiram novas abordagens em ruptura ou descontinuidade com a «Geopolítica clássica» e que rejeitam, em graus variáveis, essa herança.

O caso mais evidente desse esforço de ruptura é o das abordagens pós-modernistas/pós estruturalistas de Paul Virilio e James der Derian e o da chamada «Geopolítica crítica» protagonizada, entre outros, por Gearóid Ó Thuatail, que se demarcam dos trabalhos da «Geopolítica clássica» e dos seus continuadores actuais como, por exemplo, Colin S. Gray, Samuel P. Huntington ou Zibigniew Brezinski, os quais são (des)qualificados como «narrativas», discursos de poder e instrumentos de dominação. Além do mais, esta abordagem recusa a tradicional postura de «dar conselhos ao príncipe», que marca o pensamento ocidental sobre a Política, desde a publicação de «O Príncipe» (1513), de Nicolau Maquiavel, no Renascimento, assumindo, em alternativa, um novo papel de «consciência crítica» e transformadora da realidade social.

Por último, a interrogação que inevitavelmente se coloca é a de saber até que ponto este interesse acrescido pela Geopolítica radica nas virtudes descritivas, explicativas, analíticas ou críticas deste campo do conhecimento, face aos acontecimentos do mundo real, especialmente no pós-Guerra Fria, ou, pelo contrário, estamos apenas perante mais um fenómeno de moda, alimentado artificialmente nos meios académicos, políticos e jornalísticos. Também aqui nos parece que a resposta é marcada pela ambivalência, pela simples razão que todos estes aspectos explicam o interesse acrescido pela Geopolítica. Se, por um lado, o saber geopolítico tem provas dadas na descrição/interpretação/análise dos fenómenos geográfico-políticos com relevância internacional, por outro, a verdade é também que o aumento de interesse pelo Geopolítica, verificado nas últimas décadas do século XX, foi, muitas vezes, feito à custa de um alargamento bastante discutível do seu objecto de estudo (por exemplo, através da sua expansão para os fenómenos geográfico-políticos com mera relevância interna) e acompanhado de um uso tendencialmente «livre» do conceito. Ora, pelo menos de um ponto de vista académico-científico, este fenómeno deve ser encarado com bastante precaução. Isto porque uma utilização proteiforme do conceito «Geopolítica» significa, inevitavelmente, ausência de rigor e utilidade técnico-científica. Mas também porque um alargamento indiscriminado do seu objecto de estudo pode acarretar como consequência a perda de coerência da própria Geopolítica, enquanto disciplina académica. Por isso, não é demais (re)lembrar o já referido comentário de Robert Harkavy: «the term geopolitics has come to be used in such a variety of contexts that it is no longer clear just what it means… It has come to mean almost everything, and therefore, perhaps almost nothing».

 

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NOTAS

[1] Segundo Sven Holdar (1994a: 93-94) a palavra teria sido utilizada pela primeira vez em 1899, num artigo sobre as fronteiras da Suécia publicado no jornal geográfico sueco Ymer. Por sua vez, Michel Korinman (1990: 152) refere que Kjellén utilizou pela primeira vez a palavra numa comunicação intitulada Inledning till Sveriges geografi («Introdução à Geografia da Suécia»), efectuada no âmbito das conferências destinadas ao grande público da Universidade de Gotemburgo, que decorreram no Verão de 1900.

[2] O trabalho de Ratzel está também associado às concepções evolucionistas e biológicas do Estado e da sociedade que progressivamente se difundiram pelo campo das Ciências Sociais, após a publicação por Charles Darwin de On the Origin of Species by means of Natural Selection or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life («A Origem das Espécies por meio da Selecção Natural ou a Preservação das Espécies mais favorecidas na Luta pela Vida», 1859). Com a Politische Geographie de 1897 e Der Lebensraum («O Espaço Vital») de 1901 as concepções evolucionistas e biológicas fizeram também sua aparição na Geografia e, Ratzel, foi acusado de ter o seu trabalho imbuído de uma perversa «filosofia darwinista do espaço». Todavia, não está isenta de controvérsia a qualificação de Ratzel com o epíteto de «darwinista social» porque em diversas partes dos seus trabalhos este se demarcou das teses racistas de Gobineau e de Chamberlain e das próprias teses do darwinismo social europeu, de Spencer. O que se pode constatar é que este recorreu, num certo número de casos concretos, a uma espécie «racismo funcional ligado à ideologia colonialista do século XIX europeu, posição, aliás, frequente na época». (Korinman, 1990: 41).

[3] A criação da Zeitschrift für Geopolitik resultou de um esforço conjunto do editor, Kurt Vowincker, e de uma equipa redactorial de geógrafos, com competências repartida por áreas geógráficas específicas, composta por Karl Haushofer (Ásia), Erich Obst (Europa e África), Otto Maull (Américas) e Hermann Lautensach (mundo na sua globalidade). Nela colaboraram também alguns dos mais importantes geógrafos, politólogos e especialistas de Relações Internacionais da época (não só alemães como austríacos, hungaros, polacos, romenos, sul americanos e até soviéticos…).

[4] Este debate desencadeou-se essencialmente por duas grandes razões: a primeira, de contornos marcadamente académicos e de tipo epistemológico, resultava do facto de Kjellén ter sustentado a criação não só de um neologismo, como também de uma ciência original, só que a sua posição não era propriamente consensual entre a comunidade dos geógrafos alemães (os detractores de Kjellén afirmavam que este não tinha criado nenhuma disciplina nova, pois apenas tinha deslocado a Geografia Política para o espaço da Antropogeografia de Ratzel, e colocado a Geopolítica no lugar da Geografia Política ratzeliana… ); a segunda razão tinha contornos menos académicos e bastante mais políticos, e era consequência directa do já referido ambiente conturbado que se vivia na Alemanha após a derrota na I Guerra Mundial, existindo, dentro da comunidade de geógrafos, diversas vozes que sustentavam que esta tinha tido também grandes responsabilidades nessa derrota, por não ter sabido contribuír para uma formação geopolítica adequada da classe dirigente e da própria população, ao contrário do que acontecera nas rivais Inglaterra e França.

[5] Ironicamente a sua concepção foi influenciada pela ideia da «Pan-Europa», promovida na época pelo conde austríaco Richard Coudenhove-Kalergi, uma personalidade que figura, com um merecido lugar de destaque, nos anais dos movimentos europeístas do século XX, que defendiam a unificação política europeia por via pacífica, nada tendo por isso a ver com os meios de conquista preconizados, ou, pelo menos, admitidos por Haushofer.

[6] Uma questão ainda hoje não totalmente esclarecida é a da influência de Haushofer sobre Hitler. Neste aspecto, Hans Weigert demarcou-se, pelo menos em parte, daqueles que sustentavam existir o dedo de Haushofer em toda a acção política de Hitler e na redacção do Mein Kampf («A Minha Luta»), referindo, em tom irónico, que Haushofer certamente «teve o azar de perder o autocarro para visitar Hitler na prisão de Landsberg» quando este estava a escrever o famoso capítulo XIV do Mein Kampf, o qual contém as principais directrizes da política externa do III Reich (Weigert, 1942: 151). Isto porque o seu conteúdo diverge das principais teses geopolíticas de Haushofer, que sempre foi contrário à «operação Barbarossa», ordenada por Hitler, em 1941, e que levou, à invasão da ex-União Soviética, com resultados catastróficos para os exércitos nazis e para a sobrevivência do regime hitleriano.

[7] Nesse contexto, e na consequência do interesse do público norte-americano por Democratic Ideals and Reality de Mackinder, surgiram duas reedições desse trabalho (respectivamente em Maio e Outubro) e Hamilton Fish Armstrong, o editor na época da Foreign Affairs, solicitou a Mackinder uma revisão da teoria do Heartlland face aos acontecimentos da II Guerra Mundial. Dessa solicitação resultou um famoso artigo intitulado The Round World and the Winning of the Peace, publicado em Julho de 1943, onde Mackinder formulou a tese do Midland Ocean, numa antecipação daquilo que ficou conhecido por política de containment do expansionismo soviético e que esteve na génese da Aliança Atlântica.

[8] Para o efeito, Yves Lacoste recuperou também os trabalhos do géografo-anarquista do século XIX, Elysée Reclus.

[9] Na altura da fundação do Limes, Michel Korinman a ocupou o lugar de director, em parceria com o italiano Luccio Caracciolo, e Yves Lacoste colaborou também no arranque da publicação italiana, como conselheiro especial da direcção da revista.

[10] Para uma visão mais aprofundada sobre os principais trabalhos geopolíticos desenvolvidos nos EUA, entre os anos 50-70, ver Políbio F. Valente de Almeida Do poder do pequeno Estado: enquadramento geopolítico da hierarquia das potências (1988) que é, na nossa opinião, o mais completo trabalho sobre este assunto redigido em língua portuguesa.

[11] O pós-modernismo é uma corrente intelectual bastante ampla e heterogénea, abrangendo diversos movimentos com características próprias, como os pós-estruturalistas, os defensores das teorias críticas, as abordagens feministas, etc., o que dificulta a identificação dos contornos exactos desta corrente intelectual. Todavia, há normalmente alguns pontos de contacto entre estes movimentos, como uma certa descrença na racionalidade e no valor das metodologias quantitativas, uma aversão a métodos formais, a (re)valorização do senso comum e da intuição, o nivelamento dos saberes e a promoção de um discurso de tipo multicultural. Por último, é necessário ter ainda em conta o facto de muitos dos autores normalmente rotulados como «pós-modernistas», rejeitarem esse epíteto, o que aumenta mais a dificuldade da sua identificação…

[12] É importante que o processo de imitatio scientiae não foi exclusivo da Geopolítica clássica. Nos anos 70, o norte-americano Ray S. Cline, provavelmente influenciado pelo impacto que a chamada «revolução behaviorista» teve nas Ciências Sociais durante os anos 60, nos EUA, empreendeu uma célebre tentativa de quantificação do poder estadual, cujos resultados foram publicados em World Power Assessment: a calculus of strategic drift (1975). O objectivo era superar, através de uma fórmula matemática, as clássicas formulações qualitativas de poder, o que deu lugar à chamada «equação de Cline», cuja formulação é Pp=(C+E+M) x (S+W) e em que Pp= poder suposto (perceived power); C= massa crítica da população e território (critical mass); E= capacidade económica (economic capability); M= capacidade militar (military capability); S= objectivos estratégicos (strategic purpose); e W= vontade de executar as estratégias nacionais (will to porsue national strategy). Mas, como assinalou Adriano Moreira (1996: 208) numa apreciação crítica da mesma, esta fórmula implica assumir que «o poder é o produto das capacidades físicas e das capacidades psicológicas, tornando assim muito precária a confiabilidade dos resultados, ou, pelo menos, fornecendo dados para muito curto prazo, e exigindo uma verificação contínua».

[13] As abordagens «pós-positivistas», também qualificadas como reflectivists («reflectivistas»), abrangem múltiplas correntes como os pós-modernistas/pós-estruturalistas, as teorias críticas, as abordagens feministas, os contrutivistas, etc. São essencialmente marcadas por preocupações epistemológicas e ontológias e, de alguma maneira, opõem-se às abordagens racionalistas-positivistas dominantes na disciplina das Relações Internacionais. A designação resulta do impacto que um artigo da autoria de Yosef Lapid teve no âmbito da Teoria das Relações Internacionais. Esse artigo intitulado «The Third Debate: On the Prospects of International Theory in a Post-positivist Era» (1989) foi publicado originalmente na revista norte-americana International Studies Quarterly, nº 33 (3). Sobre o debate pós-positivista em Portugal vêr o interessante artigo de José Manuel Pureza intitulado «O Príncipe e o Pobre: as Relações Internacionais entre a tradição e a reinvenção» publicado no n´52/53 da Revista Crítica de Ciências Sociais, da Universidade de Coimbra.

[14] O pós-modernismo mais radical tem gerado reacções bastante críticas um pouco por toda a comunidade científica. A reacção mais célebre aos excessos do pós-modernismo foi o artigo-paródia dos físicos Alain Sokal e Jean Bricmont intitulado «Transgredir as fronteiras: rumo a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica» (1996), o qual foi construída «em torno de citações de autores eminentes sobre as implicações filosóficas e sociais das ciências da natureza e da matemática», mas que eram «absurdas ou desprovidas de sentido», e que a revista norte-americana Social Text, publicou como sendo… um texto sério! (Sokal e Bricmont, 1999: 19).

[15] O recurso a esta perspectiva pluridisciplinar também não está totalmente isento de dificuldades. Desde logo, estas resultam dos problemas epistemológicos levantados por disciplinas como a Psicanálise, cuja classificação como «Ciência» é controversa (pelo menos esta é a opinião clássica dos epistemólogos do círculo de Viena, nomeadamente de Karl Popper, que lhe recusaram essa qualificação devido à impossibilidade de «falsificação dos enunciados»).

[16] Atente-se, a título de exemplo, nas diferentes representações que sérvios e albaneses fazem sobre o Kosovo. Para os Sérvios, representa o «coração nuclear» da sua história religiosa e política, por referência ao Estado ordoxo sérvio da Idade Média, que tinha aí a sua sede política e religiosa. E como foi no Kosovo, no século XIV, que o Estado sérvio medieval foi derrotado e ocupado pelos exércitos turcos, foi em torno do Kosovo que o nacionalismo sérvio construíu o mito do sofrimento. Para os albaneses, e para do argumento da actual presença numérica maioritária nessa região, a sua historiografia retomou o tema da chegada «recente» dos Eslavos aos Balcãs (instalados na região «apenas» entre os séculos X-XIV), desenvolvendo o contra-mito de que o Kosovo estava povoado de povos Ilírios desde a Antiguidade, dos quais os albaneses são os descendentes directos…

[17] A tese central de Alexandre del Valle, na qual assenta a sua «contra-teoria» foi originalmente desenvolvida em Islamisme et États-Unis: une Alliance contre l´Europe (1997). A ideia principal é a de que os EUA desenvolveram uma estratégia de aliança de facto com os Estados árabes ricos do Médio Oriente (especialmente com Arábia Saudita whabita, particularmente zelosa do seu proselitismo islâmico), para manter a liderança mundial e o acesso aos recursos energéticos do Médio-Oriente, em detrimento da Europa que foi abandonada ao «islamismo militante» violento enraizado no mundo islâmico pobre. Ainda segundo del Valle, esta estratégia geopolítica pode detectar-se pela observação de um cinturão de turbulência terrorista, desde a Rússia (Chechénia) até à Europa (Kosovo). E é o resultado de uma (re)orientação geopolítica e geoestratégica dos EUA, que durante a Guerra Fria mobilizaram diversos Estados islâmicos, na periferia da ex-URSS, para um cerco estratégico ao «império do mal», criando um «cinturão verde». No pós-Guerra Fria, essa estratégia voltou-se contra a Europa e é mesmo uma ameaça à existência da civilização europeia.

[18] «In the realm of territorial development, time now counts more than space. But it is no longer a matter of some chronological local time, as it once was, but of universal world time, opposed not only to the local space of region´s organization of land, but to the world space of planet on the way to becoming homogeneous. From the urbanization of the real space of national geography to the urbanization of the real time of international telecommunications, the world space of geopolitics is gradually yielding its strategic primacy to the world time of chronostrategic proximity without any delay and without any antipodes». (Virilio, 1995 [1998]: 183).

[19] A importação e utilização de conceitos da física para a teorização da velocidade, estão no centro da polémica sobre a obra de Paul Virilio. Esta utilização de conceitos e teorias da física foi qualificada por Sokal e Bricmont (dois académicos da área Física), como «uma mistura de confusões monumentais e fantasias delirantes», sendo as analogias científicas utilizadas por Virilio «o mais arbitrário que possa imaginar-se, quando este autor não se afunda pura e simplesmente numa embriaguez verbal». (1999: 165-170).

[20] Um termo cunhado por Virilio a partir da palavra grega dromos que significa corrida ou acto de correr.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, “Da Geopolítica Clássica à Geopolítica Pós-Moderna: Entre a Ruptura e a Continuidade” artigo originalmente publicado em Política Internacional 26, Outono-Inverno (2002): 161-186.

© Imagem: José Pedro Teixeira Fernandes, logo “Geopolítica”, 2015

O Genocídio Arménio, um século depois

Armenians marched by Turkish soldiers,1915

Entre as maiores tragédias do século XX está o destino dos arménios na fase final do Império Otomano, durante a I Guerra Mundial. Um século depois, cabe reavaliar uma ocorrência que prenunciou o que de pior acabaria por ocorrer na II Guerra Mundial.

1. Um olhar retrospectivo sobre os acontecimentos leva a colocar duas questões fundamentais: (i) a deportação em massa da população arménia, iniciada em 1915, pode ser justificada como uma necessidade militar ligada às circunstâncias do Império Otomano na I Guerra Mundial? (ii) Houve, ou não, um plano deliberado de expulsar (e aniquilar) a generalidade da população arménia, o que na linguagem actual do Direito Internacional Humanitário se chama genocídio? Antes da resposta às questões anteriores é necessário um breve enquadramento histórico-político da questão arménia. No século XIX e inícios do século XX, esta era vista como um dos assuntos mais delicados da questão do Oriente, designação usada na diplomacia europeia para os problemas levantados pela desagregação do Império Otomano.Após períodos mais ou menos alargados de independência durante a longa Idade Média, os arménios (hai/haïk) foram submetidos ao poder do Império Otomano no século XVI. À semelhança de outros povos que durante largos períodos históricos não tiveram o seu próprio Estado, como os gregos e judeus, a religião foi determinante na preservação da identidade social-nacional num império islâmico. Tradicionalmente, seguem a Igreja Arménia gregoriana, uma das mais antigas formas de Cristianismo. No interior do Império Otomano constituíam um millet, ou seja, uma comunidade étnico-religiosa chefiada pelo seu patriarca, nomeado pelo sultão. Dispunham de uma certo grau de autonomia nos assuntos religiosos, civis e administrativos, bem como na regulação dos conflitos intra-comunitários. Tal como os gregos e judeus, eram dhimmi, qualificação dada pela sharia islâmica aos seguidores de outras religiões monoteístas. Estavam sujeitos às regras da sharia pelo que tinham de pagar um imposto de tolerância da vida e prática religiosa (jizya). A cidadania de segunda classe expressava-se de várias formas. Por exemplo, através da proibição do uso de armas, da não admissão de testemunho judicial contra muçulmanos, ou da impossibilidade de construir novas igrejas. No entanto, as relações na sociedade otomana eram complexas. Coexistiam situações onde certos membros de um millet eram privilegiados pelos sultões, por conveniência política e administrativa – controlo das comunidades religiosas através destes, comércio e atividade financeira, contactos diplomáticos com o exterior, etc. –, enquanto a maioria da população do millet vivia numa situação de opressão e discriminação. Para além disso, períodos de maior ou menor tolerância variavam ao sabor da personalidade dos sultões e das circunstâncias político-militares do Império.

2. Com origem nos últimos anos do século XIX, uma série de acontecimentos acabou por levar ao desaparecimento quase total da população arménia. O contexto foi o de uma progressiva reversão da tradicional hierarquia muçulmano-dhimmi. A reversão iniciou-se com as Tanzimat no século XIX, as reformas modernizadoras do Império Otomano que levaram a uma gradual substituição da sharia por legislação à europeia. Entre outras modificações, estabeleceram a igualdade perante a lei dos dhimmi, algo mal recebido por muitos muçulmanos. Viram aí uma perda dos seus tradicionais privilégios concedidos pela sharia. Acresce a isso a hostilidade social gerada pelas actividades comerciais e industriais. Tornando-se estas mais importantes com os avanços do capitalismo, eram frequentemente exercidas por arménios, gregos e judeus. O factor demográfico teve ainda a sua influência. As autoridades otomanas instalaram substanciais populações muçulmanas que emigraram dos Balcãs e do Cáucaso, devido às perdas territoriais do Império, em zonas tradicionalmente habitadas por arménios, na Anatólia oriental e Cilícia. O objectivo terá sido a criação de novas realidades demográficas com população maioritariamente muçulmana, contrabalançando o peso dos cristãos arménios, mas também de gregos e judeus. O culminar da hostilidade ocorreu durante a I Guerra Mundial. Na noite de 24 para 25 Abril de 1915 iniciou-se a perseguição aos notáveis arménios em Constantinopla/Istambul, normalmente considerado o início do processo de erradicação da Anatólia. Pouco tempo antes, na ofensiva otomana de Dezembro de 1914 e Janeiro de 1915, efectuada no leste da Anatólia e no Cáucaso contra a Rússia, resultou numa pesada derrota em Sarikamis. Dos 90 mil homens do terceiro exército otomano terão sobrevivido cerca de 15 mil, tendo os restantes morrido em combate, por doença, ou devido a condições climatéricas extremas.

3. A liderança militarista dos Jovens Turcos – Enver, que comandou directamente o início da ofensiva militar; Talât, o Ministro do Interior e chefe da gendarmerie, e o general Halil Kut –, culpabilizaram os arménios pela derrota militar. Acusam-nos de deserções para o exército russo e actos de guerrilha por detrás das linhas otomanas. Em resposta, o governo do grão-vizir Sait Halim, sob proposta de Talât, aprovou a deportação dos arménios. Na Lei Provisória de Deportação de 27/05/1915 lia-se o seguinte: “Artigo I. Em tempo de guerra, os comandantes do exército, de corpos do exército e de divisão, ou seus substitutos, tal como os comandantes de postos militares independentes que se vejam confrontados da parte da população com um ataque ou resistência armada, ou encontrem sob qualquer forma uma oposição às ordens do governo ou aos actos e medidas relativos à defesa do país e à salvaguarda da ordem pública, têm autorização de as reprimir imediatamente e vigorosamente através da força armada e de suprimir radicalmente o ataque e a resistência. Artigo II. Os comandantes do exército, de corpos do exército e de divisão podem, se as necessidades militares o exigirem, deslocar e instalar noutras localidades, separadamente ou conjuntamente, a população das cidades e vilas que eles suspeitem culpadas de traição ou de espionagem” (Yves Ternon, Les Arméniens. Histoire d’un génocide, 2ª ed., Éditions du Seuil, 1996, p. 249). Este documento legal suscita duas observações. A primeira refere-se ao seu teor. Não há uma referência explícita às populações arménias o que lhe dá uma aparência formal de medida que não visava especificamente esse grupo étnico-religioso (nacional), mas era justificada apenas por fins militares. A segunda é que, de facto, foi apenas uma cobertura a posteriori para uma realidade já em curso. Múltiplos testemunhos locais e relatos diplomáticos comprovam que a deportação dos arménios estava já a ser posta em prática antes da promulgação da Lei Provisória de Deportação.

4. Feito este enquadramento histórico-político dos acontecimentos, é possível agora responder às interrogações iniciais. Quanto à primeira questão, constata-se uma desproporção entre a medida adoptada – a deportação generalizada das populações arménias –, e o problema militar no terreno. Mesmo admitindo como fundamentadas as preocupações militares, as deportações apenas poderiam ter uma justificação aceitável se fossem limitadas às zonas de guerra, o que não foi o caso. Estas verificaram-se na generalidade do território otomano, incluindo as zonas fora de guerra. A perseguição e massacre dos notáveis arménios de Constantinopla/Istambul, em Abril de 1915, é bem exemplificativa. Sobre a segunda questão, a da real intenção dessa deportação, a resposta aponta para uma tentativa de erradicação da população arménia, feita a coberto das circunstâncias de guerra. Os acontecimentos envolveram Enver, Talât e outros, não só enquanto membros do governo otomano, mas também enquanto dirigentes do Comité para a União e o Progresso (CUP) – o partido dos “Jovens Turcos”. Enver e Talât dispunham das estruturas organizativas próprias do partido e de elementos de confiança no terreno. Essas “estruturas sombra” eram formadas por oficiais voluntários e outros membros do exército, uma espécie de tropas de choque do CUP. Desde a revolução de 1908 que levou os “Jovens Turcos” ao poder, faziam o “trabalho sujo” no terreno, livrando-se de adversários políticos e procurando suprimir movimentos separatistas. Conhecida informalmente como a Teskilât-i Mahsusa (Organização Especial), foi formalizada em 1914 e colocada sob o comando directo de Enver. Embora os registos da Teskilât-i Mahsusa tenham sido destruídos e os arquivos do CUP se tenham perdido, existe um conjunto importante de documentos e testemunhos. Nestes incluem-se os arquivos diplomáticos e outros documentos da Alemanha e Áustria-Hungria, aliados do Império Otomano durante a I Guerra Mundial. Os factos apontam para que um círculo restrito dos Jovens Turcos, “sob a direcção de Talât, pretendeu ‘resolver’ a questão do Oriente pelo extermínio dos arménios, usando a deportação como capa para essa política”. Na sua execução no terreno “um determinado número de chefes provinciais do partido deu assistência a este extermínio, sendo organizado através do Teskilât-i Mahsusa, sob a direcção do seu director político e membro comité do central do CUP, Bahaeddin Sakir” (Erik J. Zürcher, Turkey. A Modern History, I. B. Tauris, 2.ª ed. 1997, p. 121).

5. Face à perda e/ou destruição dos documentos do CUP e da Organização Especial, naturalmente que persistem dúvidas sobre os contornos exactos dos acontecimentos. Entre outros aspectos, provavelmente nem será possível determinar, acima de qualquer controvérsia, o número de vítimas da deportação e massacres. É um facto controverso o número de arménios que habitava o Império Otomano antes da deportação, o que condiciona as estimativas das vítimas efectuadas. Também não é possível destrinçar com rigor as mortes que se devem a maus tratos, assassínios, execuções e massacres, daquelas que resultaram de escassez de alimentos e falta de assistência médica. Daí a oscilação dos cálculos – em qualquer caso estimativas –, entre algumas centenas de milhares até um valor superior a 1 milhão ou 1,5 milhões de vítimas. Tais dúvidas, legítimas numa discussão histórica e política séria, não são, no entanto, suficientes para minimizar a gravidade humanitária da deportação, nem para reduzir as perseguições e massacres a uma “normal” ocorrência de guerra. Não alteram a substância da questão. O artigo 2º da Convenção para a Prevenção do Crime de Genocídio de 1948 das Nações Unidas qualifica o genocídio como “os actos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso como tal”. Em concreto, esses actos são (i) a morte de membros do grupo; (ii) o atentado grave contra a integridade física ou mental de membros do grupo; (iii) a submissão intencional de membros do grupo a condições de existência que deverão levar à sua destruição física total ou parcial”. As incertezas existentes não dão argumentos sólidos, nem históricos, nem políticos, para refutar que a deportação dos arménios se assemelhou às situações contempladas na Convenção sobre o Genocídio. Um século depois, cabe à actual Turquia enquanto Estado sucessor do Império Otomano, quebrar o “muro de silêncio” e abrir caminho a uma reconciliação com este trágico passado.

© José Pedro Teixeira Fernandes

domínio público Imagem: foto do domínio público (Wikimedia Commons), mostrando civis arménios em marcha levados por soldados turcos para a prisão de Mezireh, Kharpert,  Império Otomano, Abril de 1915