A Geopolítica da Turquia: um desafio às sociedades abertas da União Europeia

Assinatura do acordo de associação Turquia-CEE em Ancara, 25:05:1963

 

A utopia da Europa em construção (?) é a de que a Turquia, como outrora os ex-inimigos de Roma, se torne no seu melhor aliado. No caso presente, e perante a real ou fantasmada ameaça do islão fundamentalista, o país de Atatürk teria vocação para a conter nos limites do aceitável e proveitoso, segundo a óptica mundial e, antes de mais, da Europa. A História – se nos ensina alguma coisa – ensina-nos que o Islão não se dissolve […] A nossa impotência de ocidentais, e, sobretudo, de europeus, é o nosso último luxo, mas custarnos-á caro. Desarmados por dentro, não podemos esperar que a maior potência do Islão moderado nos ajude caridosamente a encontrar a fé em nós mesmos que há muito perdemos.

Eduardo LOURENÇO[1]

 

1. No Conselho Europeu realizado na Holanda, em 16 e 17 de Dezembro de 2004, os Chefes de Estado e de Governo dos 25 Estados-membros da União Europeia (UE) decidiram avançar com a data de 3 de Outubro de 2005, para o início formal das negociações com a República da Turquia, com vista à sua eventual adesão num prazo de 10 a 15 anos. Face a esta importante decisão dos dirigentes europeus, neste artigo propomo-nos analisar (i) os principais traços da realidade geopolítica da Turquia; (ii) antecipar as (im)previsíveis consequências políticas, estratégicas, económicas e identitárias resultantes da sua adesão.

Comecemos pela Geografia. É necessário notar que a Turquia é um Estado com uma dimensão geográfica muito grande, quando aferida por padrões europeus. O seu território com 769, 604 km2, é superior ao conjunto dos 10 novos Estados-membros que entraram para a União Europeia em 1 de Maio de 2004, os quais totalizam «apenas» 736,482 km2 e representa cerca de 1,5 vezes a dimensão do maior país da actual UE, que é a França. Por sua vez, a soma total das suas fronteiras terrrestres ascende a 2,648 km, abrangendo 8 países tão diversos como a Arménia, o Azerbaijão – no enclave do Nakhichevan, sem ligação com o restante território –, a Bulgária, a Geórgia, a Grécia, o Irão, o Iraque e a Síria. Geograficamente, a Turquia percentence à Europa e à Ásia, ao Cáucaso e ao Médio Oriente, ao mar Negro e ao Mediterrâneo, ao mar Egeu e ao mar de Mármara.

Esta grande diversidade geográfica, associada ao passado do multisecular Império Otomano, que perdurou até à sua dissolução no pós I Guerra Mundial, tem significativas implicações económicas, políticas, estratégicas e culturais. Em termos étnicos e culturais determina a existência de continuidades étnico-culturais das populações, para além das actuais fronteiras políticas da República fundada em 1923, e reflecte-se na estabilidade/instabilidade dessas mesmas fronteiras. Em termos geoestratégicos, influência as alianças para contrabalançar os inimigos externos, num país profundamente marcado pela «fobia de Sèvres»[2]

 

Quadro I – Forças Armadas, fronteiras e população dos países limítrofes da Turquia

Países

Forças Armadas

Totais *
Exército  Marinha  Força Aérea  Fronteira c/Turquia (Km) População
Arménia 44,610 38,900 0 3,160 268 3,326.448
Azerbaijão 72,100 62,000 2,200 7,900 9 7,830.764
Bulgária 68,450 31,050 4,370 17,780 240 7,621.337
Geórgia 17,500 8,620 1,830 1,250 252 4,934.413
Grécia 177,600 114,000 19,000 33,000 206 10,645.343
Iraque** _ _ _ _ 352 24,683.313
Síria 319,000 215,000 4,000 40,000 822 17,585.540
Total s/ Irão 699,260 469,570 31,400 103,090 2,149 76,627.158
Irão 520,000 325,000 18,000 52,000 499 68,278.826
Turquia 514,800 402,000 52,750 60,100 2,648*** 68, 670.469

 

Fonte: IISS (2002), The Military Balance (2002-2003), CIA (2002), The World Factbook e CSIS (2003), Military Balance

*O valor total das Forças Armadas não é coincidente com a soma dos valores parciais dos três ramos, pois inclui os corpos especiais que não se enquadram nos mesmos

**Dada a dissolução das Forças Armadas do Iraque após a queda do regime de Saddam Hussein, não existem, ainda, dados exactos sobre o que serão as futuras Foças Armadas deste país

***Total das fronteiras terrestres da Turquia

 

Uma síntese das principais disputas geopolíticas e pontos de conflito da Turquia com os Estados vizinhos pode ser apresentada da seguinte maneira:

Arménia

  • A Turquia não reconhece os massacres da população arménia[3] – cerca de 1 milhão de vítimas – ocorridos na fase final do Império Otomano (1915-1917), como genocídio, em contradição com o reconhecimento da Assembleia Geral das Nações Unidas, do Parlamento Europeu, de 6 Estados da UE: França, Bélgica, Grécia, Itália, Suécia e Eslováquia e de diversos outros Estados a nível mundial;
  • Ambições irredentistas, não oficiais, sobre os antigos territórios históricos da Arménia, situados na actual Turquia, sendo as mais simbólicas as que recaiem sobre o monte Ararat (a montanha da Arca de Noé, segundo a Bíblia) e Ani, a antiga capital do reino medieval da «Grande Arménia»;
  • Apoio turco ao Azerbaijão no conflito do Nagorno-Karabach.

Bulgária

  • O principal ponto de discórdia, aparentemente sanado, é o da minoria islâmica da Bulgária, os pomaks, herdada do Império Otomano (12% da população). Após a tensão de 1989, que levou à emigração de cerca de 300.000 pomaks para a Turquia, a queda do regime comunista trouxe uma melhoria das relações entre os dois países, permitindo o regresso da maioria dos que tinham fugido a uma política de bulgarização forçada.

Chipre

  • A Turquia ocupa militarmente a parte Norte da ilha onde mantém cerca de 36.000 efectivos que garantem a existência de facto da República Turca do Norte de Chipre, a qual só é reconhecida de jure, a nível internacional, pela própria Turquia.

Geórgia

  • Após a independência da ex-URSS não foram reiteradas (pelo menos até agora) as reivindicações territoriais sobre as regiões vizinhas da Turquia, cedidas pelo Tratado de Kars (1921), efectuado entre a Rússia bolchevique e os nacionalistas turcos, provavelmente devido a existência dentro da própria Geórgia de significativas minorias muçulmanas (cerca de 11% da população do país), localizadas essencialmente na república autónoma da Abkhazia e da região autónoma da Ossétia do Sul.

Grécia

  • Litígio sobre as águas territoriais marítimas e os corredores aéreos no mar Egeu;
  • Litígio sobre os direitos da minoria muçulmana turca na Grécia (Trácia oriental);
  • Litígio sobre os direitos do Patriarcado da Igreja Ortodoxa grega de Constantinopla/Istambul;

Irão

  • Não existem litígios territoriais fronteiriços. Todavia, há uma importante disputa político-estratégica em curso sobre a influência no Médio Oriente e nas ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central, que coloca normalmente turcos e iranianos em campos opostos nos conflitos da região (por exemplo, no conflito do Nagorno-Karabach a Turquia apoia o Azerbaijão, enquanto o Irão apoia a Arménia).

Iraque

  • Ambições irredentistas da Turquia sobre o Norte do Iraque (região de Mossul e Kirkuk), que foi a principal reivindicação territorial não conseguida pela República da Turquia em 1923, após a extinção do Império Otomano;
  • O Iraque, pelos menos até à deposição de Saddam Hussein em 2003, contestava a diminuição unilateral dos caudais dos rios Tigre e Eufrates, devido à construção da barragem de Atatürk e aos planos de irrigação das províncias do território turco junto à sua fronteira, que levam a seca e águas poluídas ao seu território.

Síria

  • A Síria reclama a província turca do Hatay (onde se encontra a cidade de Antioquia), não reconhecendo a soberania da Turquia sobre esse território, anexado em 1938, na sequência de um referendo alegadamente fraudulento;
  • À semelhança do Iraque, a Síria contesta a diminuição unilateral dos caudais dos rios Tigre e Eufrates e os planos de irrigação das províncias do território turco junto à sua fronteira, que levam a seca e águas poluídas ao seu território;
  • A Turquia acusa a Síria de apoio ao PKK/Kongragel na rebelião curda contra o Estado turco.

 

2. A propósito da formação das Comunidades nos anos 50 do século XX, Paul Henri-Spaak sagazmente terá afirmado que o grande federador da Europa Ocidental não foi nem Jean Monnet, nem Robert Schuman, mas Joseph Estaline, o líder soviético vencedor da II Guerra Mundial, pelo medo que a sua política expansionista gerou do lado ocidental da «cortina de ferro». A mesma lógica paradoxal permite-nos afirmar que a «paternidade» da relação estratégica privilegiada da Turquia com o Ocidente foi obra, naturalmente involuntária, de Joseph Estaline. É à sua política externa expansionista e ao medo que esta gerou no Cáucaso e no Médio Oriente, que se deve a reversão das alianças da Turquia, empurrando-a para a adesão à Aliança Atlântica, em 1952. Importa relembrar que na altura da «guerra da independência» contra a Grécia e as potências aliadas da I Guerra Mundial (1919-1922), o primeiro grande apoio externo ao movimento nacionalista de Mustafa Kemal – não só ao nível político como de fornecimento de material militar –, veio da própria Rússia bolchevique, onde, em Outubro de 1917, a revolução comunista triunfara.

Neste contexto, a posterior aproximação ao Ocidente político-militar liderado pelos EUA foi o resultado duma visão estratégica dos líderes turcos do pós II Guerra Mundial, Ismet Inönü e Adnan Menderes, ditada por um imperativo de segurança nacional face a uma ameaça externa poderosa – a URSS de Estaline reivindicava os territórios «cedidos» à Turquia, no Leste da Anatólia, pelo Tratado de Brest-Litovsk, em 1917 – e não de uma espontânea solidariedade com o Ocidente, como sugere o discurso oficial turco. Foi também o interesse nacional da Turquia que levou esta a ser um dos primeiros Estados a reconhecer Israel, em 1948, e, posteriormente, a desenvolver uma cooperação político-militar com este Estado. Basta olhar para um mapa do Médio-Oriente e percebe-se logo que esta aliança permite efectuar um contra-cerco estratégico eficaz à Síria e ao Iraque, se necessário. Para além disso, pode proporcionar um aliado valioso, em caso de conflito militar com algum desses países, ou com o Irão, o principal rival da Turquia da região, pelo seu potencial de poder e de influência.

 

Quadro II – Despesa militar e Forças Armadas dos países da UE* membros da NATO

Países Despesa(% do PIB) F. ArmadasTotais ** Exército  Marinha  F. Aérea 
Alemanha 1.5 296,000 203,200 25,500 67,300
Bélgica 1.3 39,260 26,400 2,400 8,600
Dinamarca 1.5 22,700 12,800 4,000 4,500
Espanha 1.2 177,950 118,800 26,950 22,750
França 2.5 260,400 137,000 45,600 64,000
Grécia 4.4 177,600 114,000 19,000 33,000
Holanda 1.6 49,580 23,150 12,130 8,850
Hungria 1.8 33,400 23,600 270 7,700
Itália 1.9 216,800 128,000 38,000 50,800
Luxemburgo 0.8 0,900 0,900 0 0
Polónia 2.0 163,000 104,050 14,300 36,450
Reino Unido 2.4 210,450 114,800 42,350 53,300
República Checa 2.1 49,450 36,370 0 11.300
Média/total dos países da UE 1.9 1,669.591 1,042.171 230,500 368,550
EUA 3.3 1.414,000 485,000 385,000 369,700
Turquia 5.0 514,800 402,000 52,750 60,100
Portugal*** 2,3 43,600 25,400 10,800 7,400

 

Fonte: NATO (2002), Financial and economic data relating to NATO defence e IISS (2002), The Military Balance (2002-2003)

*Incluíndo os novos membros da UE (Polónia, Hungria e Rep. Checa) e sem Portugal

**O valor total das Forças Armadas não é coincidente com a soma dos valores parciais dos três ramos, pois inclui os corpos especiais (excluíndo as forças paramilitares)

***Nos dados enviados para a NATO alguns países incluem também as despesas com as forças paramilitares. É esse o caso de Portugal onde os dados contêm a despesa que abrange a Guarda Nacional Republicana (sem esta o valor seria na ordem de 1,3% a 1,4% do PIB)

 

A obsessão de segurança da Turquia que, diga-se de passagem, não é de todo injustificada dada a complexidade político-estratégica da região, leva a que esta disponha do segundo maior exército da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN/NATO) e tenha o valor de despesa militar em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) mais elevado (ver quadro II). Isto contrasta duma maneira bastante flagrante, não só com os valores substancialmente mais baixos em efectivos militares e despesa militar dos Estados UE, como a percepção dominante das suas populações de que esta não é uma despesa prioritária na island of peace europeia.

3. Vamos agora à Economia. Nesta área, a relativa debilidade do país e a profunda crise económico-financeira que este atravessou, apesar das melhorias ocorridas ao longo dos dois últimos último anos, são algo bastante evidente, especialmente quando a performance económica é aferida comparativamente com os valores registados nos Estados-membros UE. A este propósito importa notar que no passado de Portugal anterior à adesão à UE, mesmo no pior período de crise económica que se verificou na transição dos anos 70 para os anos 80, nunca se atingiram no nosso país taxas de inflação acima dos 30%. Todavia, no caso da Turquia, verificamos que esses valores têm oscilado nos quatro últimos anos, entre os 54,9 % e os 25,4 % (ver quadro III), o que é substancialmente mais elevado. Para além disso, em 2001, o PIB decresceu 7,5%, pelo que o crescimento económico de 7,8% de 2002, significou, apenas, um crescimento real de 0,3% face à situação pré-existente em 2000. Assim, só o crescimento de 5,8% em 2003 surge como relevante. Quanto às finanças públicas, se o padrão de comparação for o dos critérios de convergência nominal, estabelecidos no âmbito dos compromissos da União Económica e Monetária (UEM), os quais são, para a dívida pública, um valor até 60% do PIB e, para o défice orçamental, um valor até 3% do PIB, verificamos também que a divergência é bastante significativa, com a Turquia a registar valores de 8,8% do PIB para o défice orçamental e de 94,3% para a dívida pública, em 2003.

 

Quadro III – Indicadores macroeconómicos da Turquia

Indicador  2000  2001  2002  2003
PIB (em 1000 Mls Euros) 216.7 161.8 191.7 212.3
Variação do PIB (em % face ao ano anterior) 7.4 -7.5 7.8 5.8
Inflação (em% face ao ano anterior) 54.9 54.4 45.0 25.3
Déficit orçamental (em % do PIB) 6.0 28.0 10.0 8.8
Dívida pública (em % do PIB) 58.0 105.0 95.0 94.3
Déficit da balança comercial (em Mls Euros) 29.262 11.172 15.239 12.247
Exportações para a UE 15 (em % do total) 52.2 51.4 51.5 55.5
Importações da UE 15 (em % do total) 48.8 44.2 45.5 50.2
PIB/per capita (em % da UE 15) 25 22 23 23
Taxa de desemprego (em % da pop. activa) 6.6 8.5 10.4 10.7
População activa na agricultura (em % do total) 34.5 35.4 33.2 33.9
População activa na indústria (em % do total) 24.6 23.6 23.8 23.0
População activa nos serviços (em % do total) 40.9 41.0 43.0 43.1

 

Fonte: European Commission (2003), Regular Report on Turkey´s progress towards accession para os dados de 2000 a 2002 e Commission des Communautés Européennes (2004), Questions soulevées par la perspective d´ adhésion de la Turquie à l´Union Européenne COM (2004) 656 FINAL.

 

Um outra questão que merece reflexão é a da importância do esforço da ajuda económica à Turquia, pela via dos Fundos Estruturais e do Fundo de Coesão, de modo a garantir-lhe um tratamento similar ao que puderam beneficiar os países que entraram anteriormente. Esse foi o caso da Irlanda (1973), da Grécia (1981), de Portugal (1986) e da Espanha (1986), os grandes beneficiários, até agora, do Fundo de Coesão criado para ajudar à convergência real das suas economias. Esta é uma questão de particular interesse para Portugal, por razões óbvias, pois, como é sabido, os recursos não são ilimitados, nem mesmo numa zona próspera como é a UE. O problema surge, desde logo, pela dimensão populacional da Turquia que, com cerca de 70 milhões de habitantes, tem uma população não só superior à dos 4 países que foram beneficiários iniciais do Fundo de Coesão, os quais totalizam cerca de 63,5 milhões de habitantes, como até muito próxima da totalidade dos 10 novos Estados-membros, que aderiram à UE em 2004, os quais têm, em conjunto, cerca de 75 milhões de habitantes. Mas não é só a dimensão populacional da Turquia que levanta problemas. A questão é também a da enorme disparidade existente ao nível do PIB/per capita, que é o principal indicador de referencia para o acesso aos apoios financeiros/estruturais da UE.

 

Quadro IV – PIB/per capita dos novos membros e dos países candidatos

Novos membros e países candidatos PIB/per capita*(PPC em Euros) % da média europeia (UE 15)
Chipre 19,400 74
Eslovénia 15,600 70
República Checa 13,200 59
Malta 12,600 59
Hungria 11,500 58
Eslováquia 10,800 48
Polónia 8,900 41
Estónia 8,600 40
Lituânia 7,500 39
Letónia 6,700 33
Bulgária 6,300 25
Roménia 5,200 24
Média dos novos membros e países candidatos 7,800 46
Média europeia (UE15) 22,500 100
Turquia 5,900 23
Portugal 16 059 69

 

Fonte: Eurobarometer (2002) para o PIB/per capita e Eurostat (2003), Key indicators on Member States and Candidate Countries, para a percentagem face à média europeia

 

Como se pode verificar, o conjunto dos 10 novos membros coloca já um problema bastante significativo: a sua média conjunta do PIB/per capita não ultrapassa 46% da média europeia (UE 15). Todavia, a Turquia, com um valor do PIB/per capita que é cerca de 1/3 do português e apenas de 23 % da média europeia (UE 15), ou de 27,1% (UE 25), coloca um problema bem maior. É fácil perceber que a atribuição dum nível de ajuda financeira similar vai implicar que o volume das verbas atribuídas à Turquia, só por si, ultrapasse a totalidade dos fundos atribuídos aos 4 países da coesão, o que poderá representar um aumento das despesas do orçamento da UE na ordem dos 20%[4]. A questão é saber se os principais contribuintes líquidos do orçamento europeu, nomeadamente a Alemanha, que individualmente assegura cerca de 1/3 do financiamento, estarão dispostos a um tal esforço financeiro de ajuda. E vale a pena lembrar que tudo isto ocorre numa altura em que são bem conhecidos os esforços do governo alemão de Gerard Schröder para reduzir a sua contribuição orçamental…

4. Qualquer análise geopolítica da Turquia ficaria incompleta sem uma referência à sua identidade nacional. Este é um aspecto particularmente importante se tivermos em conta as implicações culturais que decorrem de um processo de integração ambicioso como é o da UE. Desde logo, porque a existência dum mercado interno implica, por definição, a livre circulação de pessoas. Isto significa que, mesmo só considerarando a questão a partir do prisma do homo oeconomicus, há uma dificuldade que é levantada por um país bastante populoso, para os padrões europeus, e em que a riqueza média de cada habitante é muito baixa, rondando apenas 1/4 da média europeia (UE 15). Face a esta realidade são previsíveis fluxos migratórios significativos, a partir do momento em que as barreiras à livre circulação de pessoas desapareçam. Por isso, a dúvida é saber se as economias europeias mais atractivas pelo seu elevado nível de vida e prosperidade económica, terão capacidade para absorver esses potenciais fluxos migratórios. Note-se que é o próprio Instituto de Estatística do Estado (DPT) da República da Turquia, quem calcula que esses fluxos possam atinjir um valor na ordem dos 2,7 milhões de pessoas, na ausência de restrições à livre circulação de pessoas[5].

 

Quadro V – Respostas da população da Turquia à questão: «Quem és tu?»

 Grupos sub-culturais  Respostas*
Camponês eterno «Nós somos aldeões, vivendo aqui pacificamente no centro do mundo, desde a criação!»
Conservador das cidades província «Graças a Alá, nos somos verdadeiros muçulmanos, defendendo a nossa fé contra os infiéis!»
Nómada tribal «Saídos das Estepes Turanianas, nos somos pioneiros de uma nobre tradição. Nós não vamos estabelecer como os camponeses. Temos de continuar a manter-nos assim.»
Comunidade Empresarial «Nós somos verdadeiros parentes da Civilização Ocidental. Nos somos (urbanos) os primeiros e   genuínos ocidentais!»
Guardiões do Estado (Republicanos patrimoniais) «Nos sómos os guardiões da República Turca, que nos foi confiada pelo grande Atatürk.»

 

Fonte: Bozkurt Guvenç (1996), «Quest for Cultural Identity in Turkey. National Unity of Historical diversities and continuities» in Interface of Cultural Identity Development

*«Tipos ideiais» de respostas modelo construídos a partir dum «trabalho de terreno» realizado por Bozkurt Guvenç.

 

Mas, mais complexos do que os problemas levantados pelo homo oeconomicus são os problemas levantados homo socialis, o que nos leva à difícil questão de saber até que ponto esses potenciais emigrantes podem ser integráveis culturalmente nas sociedades europeias. Nesta questão, são úteis os trabalhos do antropólogo turco Bozkurt Guvenç[6] que classifica a população do seu país em quatro «tipos-ideais» de identidades, no sentido weberiano da palavra (ver quadro V). Como se pode verificar pela análise dos mesmos, apenas um – o representado pela «comunidade empresarial» – está culturalmente orientado para o Ocidente. Quanto aos outros três, ou são de cunho eminentemente nacionalista, como é o caso dos «republicanos patrimoniais», ou são eminentemente rurais-conservadores, o que, no caso da Turquia, atendendo às sua matriz cultural-religiosa, significa culturalmente islâmicos.

Claro que importaria saber qual o peso relativo de cada um destes «tipos-ideais» de identidade na sociedade turca, questão para a qual não temos dados suficientes para dar uma resposta totalmente precisa. Ainda assim, vale a pena lembrar duas coisas: a primeira é que não serão, muito provavelmente, os elementos da «comunidade empresarial» a emigrar para a UE, até porque estes pertencem, em média, aos estratos sociais mais ricos e melhor posicionados socialmente. Nem serão também, com grande probabilidade, os «republicanos patrimoniais» porque estes correspondem, grosso modo, aos diferentes sectores da administração pública e às Forças Armadas, sendo, por isso, relativamente privilegiados. Deste modo, é nos grupos sub-culturais «camponês eterno», «conservador das cidades de província» e «nómada tribal» que se encontra a esmagadora maioria dos actuais e futuros emigrantes para a UE. Ora, convém lembrar que estes são, certamente, os mais difíceis de integrar culturalmente, não só pelo seu baixo nível médio de instrução, como pelas já apontadas razões do islão ser um elemento matricial da sua cultura, profundamente enraízado e determinante na sua identidade.

A segunda coisa que importa também lembrar é que, nas imagens europeias sobre a Turquia, e à excepção daquelas que podem ser formadas nos países da UE que são tradicionais receptáculos das suas correntes migratórias – Alemanha (2,300.000), França (230.000), Áustria (135.000) e Holanda (128.000)[7] – a partir do contacto directo com a diáspora turca, prevalece a perspectiva transmitida pela diplomacia turca e pelos elementos da «comunidade empresarial». Naturalmente que se avaliarmos a sociedade turca a partir desta amostra concluímos, sem grande relutância, que esta é «europeia». Só que este é um raciocínio simplista, que toma uma parte (diminuta) pelo todo, e não traduz a sua complexidade cultural, étnica e religiosa, nem representa minimamente a(s) realidade(s) das diversas «Turquias».

Outros factores que frequentemente induzem imagens distorcidas na Europa sobre a sua realidade político-sociológica, estão relacionados com a falta de clareza e de precisão da linguagem utilizada para categorizar a sua complexa realidade. Nos media é recorrente a classificação da Turquia como um «país secular». É também muito frequente a referência à Turquia como um «país maioritariamente muçulmano». Importa aqui lembrar que a palavra «secular» nada nos diz sobre a realidade sociológica e as convicções religiosas da população. Esta refere-se ao Estado e às suas relações com a religião. Se o Estado é secular isto significa apenas que há uma separação formal, ao nível do Estado, e, sublinhamos, apenas a esse nível, entre a esfera da política e a esfera da religião. Nada nos autoriza a inferir que a população não possa ser profundamente religiosa – e é esse o caso da República da Turquia. Sendo a realidade sociológica do país a existência de uma população que é mais de 99% islâmica, no sentido religioso e/ou cultural da palavra. Assim, a consequência do uso da expressão «país maioritariamente muçulmano» é fácil de compreender: esta sugere ao receptor deste discurso, ainda que implicitamente, a existência de minorias religiosas não muçulmanas significativas. Ora, isto não tem qualquer correspondência com a realidade religiosa e sociológica da Turquia, pois, no seu conjunto os cristãos ortodoxos gregos, os cristãos arménios, os judeus e outras minorias religiosas não muçulmanas não atingem, sequer, o valor residual de 1%.

Existe de facto na Turquia uma diversidade religiosa importante, mas dentro da religião muçulmana, o que é completamente diferente do que nos é sugerido pela vulgata do «país maioritariamente muçulmano». O principal rosto dessa diversidade são os alevis, que são muçulmanos xiitas, e representam, conforme as estimativas, entre 20% a 25% da população total, o que constitui uma minoria religiosa muito significativa (entre 14 a 17 milhões de pessoas) e com impacto na condução política do país: são, tradicionalmente, apoiantes das reformas e da secularização do Estado empreendida por Atatürk, e, actualmente, dos partidos da esquerda política, devido à marginalização a que historicamente foram relegados, e ainda hoje são, pelo islão sunita dominante. Face à sua importância, não deixa de ser curioso verificar o desconhecimento quase total que existe sobre esta realidade na UE, a qual é necessariamente relevante para a compreensão do funcionamento interno da sociedade turca.

 

Quadro VI – A microrepartição étnica e religiosa da população da Turquia

 Sub-grupos religiosos    Sub-grupos étnico-linguísticos 

Muçulmanos (> 99%)

·       Sunitas;

·       Alevis;

·       Xiitas (não Alevis)

·       Bektaxis;

·       Mawlavis;

·       Nakxibendis;

·       Tahtajis,

·       Abkhases;·       Albaneses;·       Árabes;·       Arménios;·       Azeris;·       Bósnios,·       Bulgaros,·       Circassianos;·       Curdos;·       Georgianos;

·       Gregos;

·       Lazes;

·       Persas

Não Muçulmanos (<1%)

·       Cristãos ortodoxos gregos;

·       Cristãos Arménios;

·       Judeus

 

Fonte: Quadro elaborado pelo autor a partir de dados recolhidos em Bozkurt Guvenç (1996), «Quest for Cultural Identity in Turkey. National Unity of Historical diversities and continuities» in Interface of Cultural Identity Development

 

Se a macro divisão religiosa da sociedade turca assenta na já referida divisão que ocorre dentro da religião muçulmana, entre sunitas e alevis, representado estes últimos uma forma de xiismo, esta, quando focada ao pormenor revela, ainda, inúmeros sub-grupos religiosos muçulmanos, como os bektaxis, os mawlavis, os nakxibendis, ou os tahtajis, os quais contribuem ainda mais para mostrar a sua heterogeneidade e a diversidade das práticas religiosas. Também a nível étnico e linguístico se esconde, sob a aparente homogeneidade, uma macro divisão étnica, entre turcos e curdos, os quais representam, consoante as estimativas, entre 12% a 20% da população total. Se esta divisão é bastante conhecida devido ao problema curdo e à luta militar do Estado turco contra o PKK/Kongragel, já os numerosos sub-grupos étnico-linguísticos que a nível micro poderão ser observados (ver quadro VI), como os abkhazes, os azeris, os circassianos e os lazes, entre outros, são apenas estranhos desconhecidos para os europeus. Note-se que os próprios curdos não são uma comunidade homogénea, nem ao nível religioso – embora a sua grande maioria seja sunita, existem, por exemplo, curdos alevis (xiitas) – nem a nível linguístico, onde existe, também, uma diversidade assinalável, sendo os dois dialectos mais representativos o «curmanji», que é falado na Turquia e no Norte do Iraque e o «sorani» que é falado no Iraque e no Irão.

5. É um dado politicamente significativo e que deveria ser objecto de uma reflexão séria e aprofundada, o facto de nos dois países que têm as maiores comunidades de emigantes a turcos na Europa – a Alemanha e a França – a população, em clara divergência com os seus representantes políticos, estar maioritariamente contra a adesão da Turquia à UE: 55% contra, no caso da Alemanha e 67 % contra, no caso da França[8]. O caso alemão é particularmente interessante, não só por acolher a maior comunidade turca em toda a Europa, como pelas posições políticas diametralmente opostas dos dois grandes partidos de poder: os sociais democratas (SPD) apoiam a adesão da Turquia, enquanto que os democratas-cristãos (CDU) estão contra a mesma, contrapondo uma parceria privilegiada. Um aspecto interessante desta questão está associado aos deutsche türkischer herkunft, os «alemães de origem turca» que, em finais de 2000, atingiam já um valor próximo das 500.000 pessoas. Importa referir que o crescente e significativo aumento dos deutsche türkischer herkunft está relacionado com a alteraração da lei da concessão da nacionalidade: o tradicional princípio do jus sanguinis que dominava essa concessão na Alemanha, passou a ser combinado com o princípio do jus soli. Embora esta mudança tenha sido justificada por valores multiculturais, as suas vantagens político-eleitorais para o partido de Schröder, que promoveu esta alteração, são bastante evidentes: o SPD procurou capitalizar a seu favor os votos de umas centenas de milhar de emigrantes turcos, oferecendo-lhes a cidadania alemã. Uma vantagem não despicienda, como se pode verificar pelo resultado das eleições legislativas de 2002, onde, a inicialmente improvável reeleição de Schröder, acabou por se concretizar numa eleição bastante disputada.

A questão dos emigrantes islâmicos na Alemanha, dos quais cerca de 73% são de origem turca, e dos seus direitos culturais-religiosos, está longe de ser consensual. À semelhança da França, também o assunto do uso da cabeça coberta pelas mulheres, em locais públicos, tem desencadeado acesa polémica. Em Setembro de 2003, o assunto foi objecto de uma decisão do Tribunal Constitucional federal alemão o qual considerou que, embora não existissem bases na legislação federal para efectuar a proibição do seu uso na escola, os Estados federados (länder) poderiam legislar nesse sentido. Desde então, cinco länder já declararam intenção de o fazer, entre os quais o Baden-Württemberg, no qual surgiu este incidente, e a Baviera, o mais rico e o mais populoso Estado da Alemanha, tradicionalmente governado pela CDU.

Também na Holanda, a questão da dificuldade de integração cultural dos emigrantes oriundos de sociedades islâmicas e o carácter potencialmente fragmentador do multiculturalismo enquanto ideologia identitária, têm sido objecto de acesas discussões nos meios intelectuais e politicos. Isto, num país que, vale a pena lembrar, até há pouco tempo atrás era visto como o arquétipo do ideal multicultural e um modelo de tolerância e convivência pacífica entre pessoas originárias de culturas bastante diferenciadas e das mais diversas partes do mundo. Nas críticas ao modelo multicultural ganhou notoriedade o antigo responsável da política europeia do Instituto de Pesquisa do Partido Trabalhista holandês, Paul Scheffer, que actualmente é professor de Sociologia Urbana da Universidade de Amesterdão e cronista do jornal NRC Handelsblad. Nesse mesmo jornal, Paul Scheffer publicou há cerca de cinco anos atrás um polémico artigo intitulado Het Multiculturele Drama[9] (O Drama Multicultural), no qual sustentou o fracasso do modelo multicultural, tendo tido um enorme eco na sociedade holandesa. Mais recentemente, o assassinato a 2 de Novembro de 2004, cometido a sangue-frio na aparentemente pacífica e multiculturalista Amesterdão, do realizador Theo van Gogh, quando este trabalha num filme fortemente crítico do islão, centrado na figura do líder populista Pim Fortuim, também ele assassinado em 2003, lançou a Holanda num clima de turbulência interna sem precedentes na história do país do pós-II Guerra Mundial. A este propósito, vale a pena reflectir nas palavras de Paul Scheffer que, num texto produzido um ano antes destes acontecimentos, sustentava que uma sociedade aberta precisava de ter limites/fronteiras definidos. Veja-se como este explica, e de certa maneira antecipa, a actual onda de turbulência e conflitualidade cultural/religiosa que afecta a sociedade holandesa:

As rápidas mudanças demográficas em muitas sociedades da Europa Ocidental fomentaram um sentimento de alienação e insegurança. Em muitos países, o número substancial dos novos emigrantes combinado com a sua integração limitada, fez aumentar a desigualdade social e a segregação cultural. Se uma recepção activa e integração de refugiados e trabalhadores migrantes e suas famílias não for bem sucedida, rapidamente ultrapassaremos a margem critica do que é socialmente e culturalmente aceitável. Neste sentido, pode-se dizer que uma sociedade aberta precisa de limites/fronteiras […] A percepção da falta de responsabilidade das elites produziu um ímpeto populista na Europa e para além dela. O slogan mal reflectido da aldeia global e de um mundo sem fronteiras provocou uma reacção populista que está enraizada no sentimento de uma cidade cercada que pede o encerramento das suas fronteiras[10].

6. No final da II Guerra Mundial e tendo como pano de fundo os totalitarismos ideológicos que procuravam aproveitar-se da liberdade das democracias para as destruir, o filósofo britânico de origem austríaca, Karl Popper[11], levantou originalmente a questão dos limites das sociedades abertas. No início do século XXI, o eminente politólogo italiano Giovanni Sartori[12] voltou a colocar similar questão tendo como agora como pano de fundo não os clássicos totalitarismos ideológicos do século XX – fascismo, nazismo e comunismo – mas a ideologia multiculturalista, tal como esta é teorizada pelas correntes mais radicais da esquerda liberal norte-americana[13]. Esta ideologia, que seduz na Europa pela sua novidade e pela aparente continuidade dada aos valores do pluralismo democrático, promove as diferenças étnicas e culturais frequentemente até à exaustão, destruindo lentamente a noção de uma cidadania aberta e igualitária, o principal alicerce do Estado-Nação moderno. Para Giovanni Sartori, o risco que daqui resulta é o da progressiva «balcanização» das sociedades da Europa e do Ocidente, que podem facilmente vir a ultrapassar o limiar crítico sua coesão interna, correndo o risco de implosão.

Face a todas as condicionantes geopolíticas da Turquia, e estas são muitas como tivemos oportunidade de mostrar, a grande questão que se coloca na esteira das reflexões de Popper e Sartori sobre os limites das sociedade abertas, é a de saber se a sua integração não estará para além das capacidades de integração comportáveis pela UE. Só o tempo e a evolução dos acontecimentos poderá dar uma resposta definitiva a este questão. Para já, os mais pessimistas como é caso do antigo Presidente da República francesa, Valéry Giscard d´ Estaing, sustentam que a adesão da Turquia pode levar a União Europeia à sua destruição. Por sua vez, os mais optimistas, como parece ser o caso do actual Primeiro-Ministro britânico, Tony Blair, rogozijam-se com a futura adesão da Turquia, afirmando que esta é a melhor prova de que não há «conflito de civilizações» entre o Ocidente e o Islão. Optimismos e pessimismos à parte, uma coisa é certa: a decisão de abrir negociações de adesão com a República da Turquia, tomada pelo Conselho Europeu da Holanda, vai ficar na História da Europa. Resta saber é se as futuras gerações de europeus a irão recordar pelas melhores ou pelas piores razões.

 

NOTAS

[1] Eduardo Lourenço «A Turquia na Europa» in Público (27 Outubro 2004), pag. 9.

[2] A «fobia de Sèvres» refere-se ao medo enraizado na memória colectiva turca e que está associado ao trauma provocado pelo Tratado de Sèvres, celebrado no final da I Guerra Mundial (1919), o qual, embora nunca ratificado, marcou, simbolicamente, o colapso final do Império Otomano e sua partilha, bem como a ocupação do solo da Anatólia pelas potências europeias vencedoras da Grande Guerra, entre 1919 e 1922.

[3] Ver José Pedro Teixeira Fernandes «O que aconteceu aos arménios?» in História, nº 68, Julho/Agosto (2004) pp. 28-38.

[4] Garip Turunç, La Turquie aux marches de l´Union européenne, Paris, l´Harmattan, 1999, pag. 121.

[5] Ver http://www.turkishdailynews.com/ edição on-line (26 Dezembro 2004).

[6] Bozkurt Güvenç «Quest for Cultural Identity in Turkey. National Unity of Historical Diversities and Continuities» in Baidyanath Saraswati [ed.], Interface of Cultural Identity Development, Bali Nagar-New Delhi: IGNCA/D.K. Printworld, 1996; e Bozkurt Güvenç «Secular Trends and Turkish Identity», in Perceptions, Journal of International Affairs, vol. II: (4), December-February, 1997 http://www.mfa.gov.tr/grupa/percept/

[7] Ver Commission des Communautés Européennes (2004), Questions soulevées par la perspective d´ adhésion de la Turquie à l´Union Européenne COM (2004) 656 FINAL, pag. 20.

[8] Dados de uma sondagem feita em vários países da UE avançados pelo jornal Le Figaro (14 Dezembro 2004).

[9] Paul Scheffer «Het Multiculturele Drama» in NRC Handelsblad (29 Janeiro 2000).

[10] Paul Scheffer, An Open Society Needs Borders, pp 2-3 versão electrónica disponível em http://europa.eu.int/comm/research/socialsciences/pdf/

[11] Karl R. Popper, A Sociedade Aberta e os seus Inimigos (trad. port. da 5ª edição, 1966, de The Open Society and its Enemies, obra originalmente publicada em1945, 2 vol.), Lisboa, Editorial Fragmentos, 1993.

[12] Giovanni Sartori, Pluralisme, Multiculturalisme et Étrangers (trad. fr. de Pluralismo, Multiculturalismo e Estranei, 2000), Paris, Éditions des Syrtes, 2000, pag. 13.

[13] Sobre o multiculturalismo enquanto ideologia identitária ver o livro de Charles Taylor et. al., Multiculturalismo (trad. port. de Multiculturalism, 1988), Lisboa, Edições Piaget, 1994.

 

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, “A Geopolítica da Turquia. Um desafio às sociedades abertas da União Europeia” artigo originalmente publicado na revista R:I Relações Internacionais, nº 5, março, 2005, pp. 47-60. Última revisão 28/06/2014

© Imagem: foto da assinatura do acordo de associação Turquia-CEE em Ancara, 25/05/1963 (EC Audiovisual Service – Video, Ref: P-010460/00-1)

A Geopolítica clássica revisitada

O Heartland, segundo Mackinder
Map of the Heartland in “The Geographical Pivot of History”, Halford J. Mackinder, 1904

Não existe algo como uma ciência geral da geopolítica, que possa ser subscrita por todas as organizações estaduais. Há tantas geopolíticas quantos os sistemas estaduais em luta sob condições geográficas, as quais, no caso do poder marítimo e do poder terrestre são fundamentalmente diferentes. Há uma “Geopolitik”, uma “Géopolitique” […] Cada nação tem a geopolítica que pretende […] Assim sendo, temos de olhar para a Geopolítica alemã como produto de um povo envolvido numa luta pelo domínio mundial (Hans W. Weigert, 1942: 22-23).

1. A Geopolítica da primeira metade do século XX tem múltiplas histórias relevantes, simultaneamente paralelas e concorrenciais – a portuguesa, a espanhola, a francesa, a italiana, a russa, a japonesa etc. –, daí a pertinência em falar-se preferencialmente no plural, em geopolíticas, em vez de geopolítica no singular, como um campo do conhecimento unitário. Neste contexto, de pluralidade de abordagens, é necessário traçar com clareza o objecto do nosso artigo, o qual é bastante mais restrito, sendo apenas centrado naquelas que podem ser consideradas as duas versões mais importantes da(s) geopolítica(s) europeia(s) – a germânica e a britânica – e nos traços essenciais que as fundamentam e individualizam.

Assim, nesta análise, propomo-nos passar em revista os traços fundamentais desta(s) geopolítica(s) da primeira metade do século XX, que designamos por «geopolítica clássica», tendo essencialmente em conta os trabalhos de referência dos seus dois maiores expoentes e rivais – o alemão Karl Haushofer e o inglês Halford John Mackinder. O principal objectivo é o de procurar, na abundante literatura teórica que entretanto foi publicada sobre o tema, novas perspectivas sobre a ascensão e queda de uma «ciência», a qual, para o bem e para o mal, deixou a sua marca indelével numa época bastante conturbada da história europeia e mundial.

2. Antes de entrarmos propriamente na análise específica das características da Geopolitik (i. e. da geopolítica alemã) há um primeiro aspecto relevante a focar, que é o da origem da própria palavra. É consensual, no âmbito dos estudos da geopolítica, que o neologismo foi originalmente cunhado, no crepúsculo do século XX, pelo sueco Rudolf Johan Kjellén, professor das Universidades de Gotemburgo e Uppsala, mas, há divergências quanto ao momento exacto em que este foi utilizado pela primeira vez. Segundo Sven Holdar, num artigo intitulado The Ideal State and the Power of Geography: the Life-Work of Rudolf Kjellén, originalmente publicado na revista norte-americana Political Geography, em Maio de 1992 (citado por Ó Tuathail, 1996: 44 e nota 49; e por Heffernan, 2000: 27), o termo teria sido utilizado, pela primeira vez, em 1899, num trabalho sobre as fronteiras da Suécia. Por sua vez, Michel Korinman (membro do comité redactorial da revista francesa de geografia e geopolítica, Hérodote, e da revista italiana de geopolítica Limes), refere que Kjellén utilizou, pela primeita vez a palavra numa comunicação intitulada Inledning till Sveriges geografi (Introdução à geografia da Suécia), efectuada no âmbito das Conferências destinadas ao grande público da Universidade de Gotemburgo, que decorreram no Verão de 1900 (Korinman, 1990: 152).

Se quanto à data da primeira utilização da palavra há algumas incertezas, já nos parece haver mais certezas na afirmação de que na gestação deste neologismo se podem detectar, facilmente, as influências exercidas pela formação ambivalente do seu autor – Kjellén era diplomada em Ciência Política por Uppsala, mas foi também professor de Geografia na Universidade de Gotemburgo. Mas, para além das credenciais académicas é importante notar, ainda, que Kjellén foi, igualmente, um político activo e influente da Suécia no início do século XX, membro do Parlamento sueco, senador, e um defensor de ideais nacionalistas de tipo conservador-autoritário, alternativos ao modelo de democracia liberal representado pela França e pelo Reino Unido. À célebre trilogia revolucionária francesa de 1789, liberdade/igualdade/fraternidade contrapôs, juntamente com o germânico Werner Sombart (conhecido pelas suas teses sobre a origem do capitalismo, como produto privilegiado de uma ética judaica), uma nova trilogia – dever/ordem/justiça.

O neologismo foi também um produto directo do contexto histórico-político vivido por Kjellén, na transição do século XIX para o século XX, onde a Suécia estava profundamente dividida pelo debate em torno da dissolução da união de Estados Súecia-Noruega, que datava de 1814 (uma compensação territorial adquirida pela Suécia, no final das guerras napoleónicas, devido à perda da Finlândia para a Rússia czarista, em 1808), e que acabou por se verificar em 1905. O professor de Uppsala foi um forte opositor da independência da Noruega, tendo, para o efeito, redigindo diversos manuscritos (entre os quais o já referido Inledning till Sveriges geografi) e efectuado virulentas intervenções políticas contra essa dissolução. Note-se que apesar da postura de neutralidade adoptada pela Suécia, desde o ano de 1814, o tema do império perdido e a nostalgia da grandeza do passado estiveram sempre presentes na sociedade sueca e na agenda dos partidos políticos até à I Guerra Mundial, facto que é compreensível se tivermos em conta que, historicamente, até à ascensão da Rússia e da Prússia ao estatuto de grandes potências europeias durante o século XVIII, a Suécia era a principal potência militar no Norte da Europa e da região do Báltico (Lacoste [ed.] 1993 [1995]: 1437).

A receptividade ao discurso imperialista/conservador/autoritário e ao neologismo de Kjellén foi bastante significativa, não só na Suécia, como entre o público de língua alemã (Alemanha e Áustria). Por isso, as ideias de Kjellén e a palavra Geopolitik rapidamente se tornaram populares não só na Suécia como na Alemanha (quer nos meios académicos, quer mesmo entre o público em geral), tendo o neologismo sido introduzido, tal como os trabalhos de Kjellén, pelo geógrafo austríaco Robert Sieger, nos primeiros anos do século XX (Korinman, 1990: 349, nota 79). Esta rápida germanização da Geopolitik deveu-se também ao facto do sueco Kjellén ter uma profunda simpatia e admiração pela Alemanha imperial (era casado com uma alemã), e constituir, juntamente com o britânico Houston Stewart Chamberlain (que se naturalizou alemão em plena I Guerra Mundial…), e o francês Joseph-Arthur, conde de Gobineau (autor do Essai sur l´ Inegalité des Races Humaines, publicado entre 1853-1855, onde proclamava a supremacia da raça branca em geral e dos arianos em particular…), um famosíssimo trio não alemão super germanófilo (Weigert, 1942: 275).

A explicação do significado do neologismo e do objecto deste novo saber foi feita por Kjellén na sua obra mais importante, Staten som Lifsform (O Estado como forma de vida, 1916) redigida originalmente em sueco, mas rapidamente traduzida para alemão (Der Staat als Lebensform, com a 1ª edição em 1917), e também publicada na Alemanha (edição de 1924), por aquele que seria o futuro editor da Zeitschrift für Geopolitik (Revista de Geopolítica) – Kurt Vowinkel. Nesta obra, a Geopolítica foi apresentada como “a ciência do Estado enquanto organismo geográfico tal como este se manifesta no espaço” sendo o Estado entendido como país, como território, ou de uma maneira mais significativa como império. Esta nova “ciência” tinha por objecto constante o Estado unificado e pretendia contribuir para o estudo da sua natureza profunda, enquanto que a Geografia Política “observava o planeta como habitat das comunidades humanas em geral”. (Korinman, 1990: 152).

Assim, para Kjellén, a Geopolítica não era um neologismo inócuo de agradável ressonância erudita, como afirmavam os seus críticos e detractores, nem, certamente, mais uma palavra “cara” (five dollar term) com um glamour sinistro como a qualificou a revista norte-americana Life, durante a II Guerra Mundial (Hans Weigert citado por Ó Tuathail, 1996: 112 e nota 4). Tratava-se, antes, de um neologismo que designava uma verdadeira ciência autónoma, com um objecto novo, diferente da Politische Geographie (Geografia Política, 1897), criada pelo mais importante geógrafo germânico da segunda metade do século XIX – Friedrich Ratzel – o detentor da cátedra de Geografia (1886) na prestigiada Universidade de Leipzig e um dos mais influentes geógrafos da Europa novecentista.

Não é provavelmente exagero afirmar que Ratzel revolucionou a geografia do seu tempo, influenciando Kjellén e outros geógrafos importantes fora do espaço cultural germânico, como o francês Paul Vidal de la Blanche. A sua Antropo-Geographie (Antropogeografia, 1882), juntamente com a já referida Politische Geographie, encontram-se entre as principais obras clássicas da Geografia novecentista. Mas, o trabalho de Ratzel está também mais ou menos associado às concepções evolucionistas e biológicas do Estado e da sociedade que progressivamente se difundiram pelo campo das Ciências Sociais, após a publicação por Charles Darwin de On the Origin of Species by means of Natural Selection or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life (A Origem das Espécies por meio da Selecção Natural ou a Preservação das Espécies mais favorecidas na Luta pela Vida, 1859).

Com a Politische Geographie de 1897 e Der Lebensraum (O Espaço Vital) de 1901 as concepções evolucionistas e biológicas fizeram também sua aparição na Geografia e, Ratzel, foi acusado de ter o seu trabalho imbuído de uma perversa “filosofia darwinista do espaço”. A complexidade da obra de Ratzel, aumentada pelo número volumoso de páginas dos seus livros e pela dificuldade inerente à compreensão linguagem utilizada (quer pelo seu carácter eminentemente técnico, quer pela ambiguidade da própria redacção) contribuiram, provavelmente, para alicerçar a convicção de que este partilhava das principais teses do darwinismo social europeu, na linha, por exemplo, de Herbert Spencer.

Todavia, não é isenta de controvérsia a qualificação de Ratzel com o epíteto de “darwinista social” porque em diversas partes dos seus trabalhos este se demarcou das teses racistas de Gobineau e de Chamberlain e das próprias teses do darwinismo social europeu, de Spencer. O que se pode constatar é que este recorreu, num certo número de casos concretos, a uma espécie “racismo funcional ligado à ideologia colonialista do século XIX europeu, posição, aliás, frequente na época.” (Korinman, 1990: 41). Quanto ao organicismo ratzeliano, é também um facto que a metáfora do “Estado-organismo” atravessa toda a sua Politische Geographie e que, tomada no seu sentido literal a ideia do organismo político remete, inevitavelmente, para as teses do darwinismo social europeu. Com efeito, uma vez admitida a concepção segundo a qual os Estados vivem e morrem como os indivíduos do sistema animal e vegetal, a ideia de uma struggle for life (luta pela vida), facilmente se impõe a nível político. No entanto, e ainda segundo Michel Korinman, o pensamento de Ratzel é mais ambíguo e complexo do que esta leitura sugere: o que provavelmente este pretendeu fazer com o recurso à metáfora do “Estado-organismo” foi, através de um processo de imitatio scientiae, dotar a Geografia Política de um cariz verdadeiramente científico que lhe permitisse formular leis similares às da Ciências da Natureza. (idem: 42).

O contributo precursor de Ratzel e Kjellén para a formação de um saber geopolítico, insere-se numa longa e importante tradição alemã de estudos geográficos, iniciada na transicção do século XVIII para o século XIX por Alexander von Humboldt e por Carl Ritter, que são considerados, mais ou menos unanimemente, como os fundadores da moderna Geografia europeia. Nessa tradição, um significativo papel foi também desempenhado pela Gesellschaft für Erdkunde (Sociedade de Geografia), de Berlim (1828) – a segunda mais antiga da Europa, a seguir à Sociedade de Geografia de Paris (1821), mas, indiscutivelmente, a primeira em termos de importância, prestígio e volume dos trabalhos desenvolvidos durante o século XIX.

Para além da referida tradição de estudos geográficos desenvolveu-se na Alemanha novecentista, uma importante corrente de estudos histórico-políticos estreitamente associada ao movimento nacionalista alemão que impulsionou a unificação de 1871, sob a liderança da Prússia e do “chanceler de ferro” – Otto von Bismarck. Dentro desse movimento destacaram-se os trabalhos dos historiadores Leopold von Ranke e Heinrich von Treitschke, que estão estreitamente ligados à difusão de dois neologismos no vocabulário político novecentista: a Realpolitik (política realista) e a Machtpolitik (política de potência) (Aron, 1962 [1984]: 58).

A crescente difusão dos referidos neologismos, em língua alemã, por toda a Europa, ao longo da segunda metade do século XIX, levou a que a palavra Realpolitik suplantasse em popularidade a tradicional expressão francesa Raison d´État (Razão de Estado), apesar do seu significado ser essencialmente equivalente. Por idênticas razões, este deveria também ter sido o percurso da palavra Geopolitik, destinada a ocupar um lugar similar no léxico político europeu (mais à frente veremos porque isso não aconteceu). É importante notar que esta substituição da Raison d´État pela Realpolitik não deixou de estar revestida de um importante significado simbólico: traduziu, em termos linguísticos, a superação da França pela Alemanha na supremacia sobre a Europa continental a partir da década de 60 do século XIX (Kissinger, 1994: 87).

Com ligação mais ou menos directa (Ratzel e Ritter) ou indirecta (Humboldt) à prestigiada tradição novecentista alemã de estudos geográficos e à referida tradição histórica-nacionalista da Realpolitik (Ranke) e da Machtpolitik (Treitschke), surgiu na Alemanha segunda década do século XX, aquilo que ficou conhecido como a “Escola alemã da Geopolítica” ou “Escola de Munique”. A sua principal publicação divulgadora foi a Zeitschrift für Geopolitik, fundada em 1924 e destinada preferencialmente a geógrafos profissionais, mas visando também a divulgação dos seus conteúdos junto de não especialistas, diplomatas, homens políticos, jornalistas e industriais. A criação da Zeitschrift für Geopolitik resultou de um esforço conjunto do editor, Kurt Vowinckel, e de uma equipa redactorial de geógrafos, com competências repartida por áreas geógráficas específicas, composta por Karl Haushofer (Ásia), Erich Obst (Europa e África), Otto Maull (Américas) e Hermann Lautensach (mundo na sua globalidade). Nela colaboraram também alguns dos mais importantes geógrafos, politólogos e especialistas de Relações Internacionais da época (não só alemães como austríacos, hungaros, polacos, romenos, sul americanos e até soviéticos…).

A personalidade central da Zeitschrift für Geopolitik foi, indiscutivelmente, o major-general/professor doutor Karl Haushofer, cuja vida e obra foi já objecto de numerosos trabalhos de investigação (embora na sua quase totalidade em língua alemã), tendo o trabalho de pesquisa mais exaustivo e completo sido efectuado no final dos anos 70, pelo historiador alemão Hans-Adolf Jacobsen em Karl Haushofer Leben und Werk I-II, 1979 (Korinman, 1990: 153 e nota 84; Steuckers, 1992: 7).

Em Haushofer reuniam-se as características do militar e do académico: para além dos conhecimentos de estratégia militar inerentes à sua sua formação de alta patente e ao exercício de docência na academia militar, era detentor de significativas credenciais académicas. Em 1913, na Universidade de Munique, sob a orientação do professor August von Drygalski, fez um doutoramento subordinado ao tema Der deutsche Anteil an geographischen Erschlißung Japans und desubjapanischen Erdraums und deren Förderung durch den Einfluß vom Krieg Wehrpolitik (A parte dos alemães na exploração geográfica do Japão e do seu espaço; influência da guerra e da política militar sobre este empreendimento). Entretanto, os seus trabalhos académicos foram interrompidos pelo desencadear da I Guerra Mundial (1914), para a qual foi mobilizado, tendo combatido integrado nas fileiras do exército alemão sobretudo nas batalhas da frente ocidental, ocorridas nas regiões francesas da Picardia, Alsácia e Lorena.

Com o armistício (Novembro de 1918), e o fim do conflito, regressou à vida civil e reinscreveu-se na universidade, onde apresentou um novo trabalho de tese subordinado ao tema: Grundrichtungen in der Geographischen Entwicklung des Japanischen Kaiserreiches, 1854-1919 (Linhas Directrizes da Evolução Geográfica do Império Japonês, 1854-1919) tendo sido, ainda no decurso desse mesmo ano, nomeado professor do Instituto Geográfico da Universidade de Munique. Os seus escritos tornaram-se rapidamente populares na Alemanha e tiveram mesmo um certo reconhecimento internacional, inclusive fora do mundo germânico, como comprova o facto de ter sido admitido como membro da American Geographical Society (1930). Note-se, ainda, que para o seu sucesso contribuiu, também, a sua experiência no exercício de cargos militares e o vasto conhecimento prático das imensas regiões da Ásia e do Pacífico, especialmento do Japão, onde desempenhou funções como adido militar (1908-1910).

Para a compreensão dos trabalhos de Haushofer e da Zeitschrift für Geopolitik é importante notar que estes se desenvolveram num período político, económico e social extremente conturbado da história da Alemanha da primeira metade do século XX, em que era grande a difusão entre a população de um sentimento de decadência, que estimulava a necessidade de promover o ressurgimento do Ocidente (liderado pela Alemanha), ideia amplamente sugerida por obras de intelectuais famosos como Oswald Spengler em Der Untergang des Abendlandes (A Decadência do Ocidente I-II, 1918-1922). A isto temos de juntar, ainda, a humilhação sofrida pela derrota militar na I Guerra Mundial e a incapacidade do regime democrático instituído pela República de Weimar (1918-1933) – que sucedeu à renúncia do Kaiser Wilhelm II e ao fim da Alemanha imperial do II Reich (1871-1918) – em resolver os problemas sociais e territoriais. E temos de adicionar também a subversão do regime democrático de Weimar e a sua deposição pelo partido nazi de Adolf Hitler, com a fundação do III Reich (1933-1945), estreitamente associada ao desencadear dos trágicos acontecimentos da II Guerra Mundial.

É também importante notar que os trabalhos de Haushofer surgiram no contexto de um grande debate que, nos anos 1924-1925, estalou entre a comunidade de geógrafos alemães e que opôs os defensores da Geografia Política clássica, na linha de Ratzel, aos defensores de uma nova Geopolítica. Este debate desencadeou-se essencialmente por duas grandes razões: a primeira, de contornos marcadamente académicos e de tipo epistemológico, resultava do facto de Kjellén ter sustentado a criação não só de um neologismo, como também de uma ciência original, só que a sua posição não era propriamente consensual entre a comunidade dos geógrafos alemães (os detractores de Kjellén afirmavam que este não tinha criado nenhuma disciplina nova, pois apenas tinha deslocado a Geografia Política para o espaço da Antropogeografia de Ratzel, e colocado a Geopolítica no lugar da Geografia Política ratzeliana… ); a segunda razão tinha contornos menos académicos e bastante mais políticos, e era consequência directa do já referido ambiente conturbado que se vivia na Alemanha após a derrota na I Guerra Mundial, existindo, dentro da comunidade de geógrafos, diversas vozes que sustentavam que esta tinha tido também grandes responsabilidades nessa derrota, por não ter sabido contribuír para uma formação geopolítica adequada da classe dirigente e da própria população, ao contrário do que acontecera nas rivais Grã-Bretanha e França.

Karl Haushofer foi um dos principais protagonistas desse debate. Num artigo que ficou famoso nos anais desta polémica, precisamente intitulado Politische Erdkunde und Geopolitik (Geografia Política e Geopolítica, 1925), começou por sustentar a necessidade de difundir o conhecimento geopolítico, como saber estratégico, entre a elite dirigente alemã (políticos, diplomatas e militares) e a população em geral. E, para isso, era necessário romper com a tradição geográfica anterior pois a disciplina, a Geografia, tinha-se constituído de uma maneira errada, sobre o dualismo Geografia Física/Geografia Humana, sendo o trabalho de Ratzel, embora indiscutívelmente importante, já ultrapassado. Então, traçou uma distinção entre a Geografia Política, que estuda a distribuição do poder estatal à superfície dos continentes e as condições (solo, configuração, clima e recursos) nas quais este se exerce, e a Geopolítica que tem por objecto a actividade política num espaço natural (Korinman, 1990: 155).

Se esta distinção se apresentava ainda fluída, posteriormente, outro elemento da equipa redatorial da Zeitschrift für Geopolitik, Hermann Lautensach, num artigo intitulado a Geopolitik und Schule (“A Geopolítica na Escola”, 1928), traçou os seus contornos de uma maneira mais evidente: enquanto a Geografia Política tem por objecto as formas do ser estaduais e adopta uma perspectiva “estática”, a Geopolítica interessa-se pelos processos políticos do passado e do presente, e está imbuída de uma perspectiva “dinâmica” (idem: 155).

Para além desta tomada de posição no debate que opôs geógrafos a geopolíticos podem-se encontrar, no âmbito dos vastíssimos trabalhos de Haushofer na Zeitschrift für Geopolitik (uma listagem dos principais artigos publicados por Haushofer pode encontrar-se em Steuckers, 1992 5-6), várias ideias e teses geopolíticas importantes, algumas das quais vamos analisar mais de perto, pela sua relevância, quer para a compreensão do seu pensamento, quer pelas suas implicações políticas na Alemanha do período entre as duas guerras mundiais.

A primeira foi formulada em Grenzen in iher Geographischen und Politischen Bedeutung (As Fronteiras e o seu Significado Geográfico e Político, 1927), onde exortou os seus compatriotas a aprofundarem o conhecimento sobre as fronteiras nacionais, defendendo que estas são factos biogeográficos, e que por isso não se podem compreender, nem justificar, apenas por critérios jurídicos. Assim, as fronteiras biologicamente justas são as que são pensadas, concebidas e traçadas segundo uma perspectiva muldisciplinar (histórica, geográfica, biológica, etc.) e não estritamente jurídica. Em defesa desta concepção biogeográfica das fronteiras, argumentou ainda que certos povos, especialmente os que não dispunham de reservas coloniais (i. e. territoriais), poderiam ser constrangidos, a ter de efectuar uma drástica limitação de nascimentos, para manterem a sua população em valores comportáveis com a dimensão do território. E denunciou o egoísmo das nações colonialistas, que condenavam à regressão ou até mesmo ao desaparecimento, as nações europeias que não tinham deixado a sua área de fixação original (Steuckers, 1992: 2).

Num segundo importante trabalho, intitulado Geopolitik der Pan-Ideen (Geopolítica das Ideias Continentalistas, 1931), foi desenvolvido aquilo que ficou conhecido como tese das “Pan-regiões”, sendo, ironicamente, a sua concepção influenciada pela ideia da “Pan-Europa”, promovida na época pelo conde austríaco Richard Coudenhove-Kalergi (curiosamente também com grandes ligações ao Japão, pelo facto de ter nascido em Tóquio, onde o seu pai foi diplomata no tempo do império Áustro-Hungaro, e de a sua mãe ser de origem nipónica), uma personalidade que figura, com um merecido lugar de destaque, nos anais dos movimentos europeístas que defendiam a unificação política europeia, por via pacífica, no período entre as duas guerras mundiais.

Entre outras propostas inovadoras, foi Coudenhove-Kalergi quem primeiro formulou a ideia da gestão comum do carvão e do aço franco-alemão, como método de reconciliação, no ano de 1923, ideia que no pós-II Guerra Mundial foi retomada por Jean Monnet (a quem normalmente é a atribuída a sua autoria) e pelos fundadores das Comunidades Europeias. Todavia, é fundamental notar que não era exctamente essa a ideia das “Pan-regiões” nem de unidade europeia que Haushofer propounha. O recurso a uma hegemonia eventualmente violenta da potência dominante (a Alemanha), era admitido, se necessário, para o controlo da região que lhe estava adstrita, o que nada tinha a ver com pan-europeísmo pacífico e de adesão voluntária dos Estados defendido por Coudenhove-Kalergi.

Nesta tese geopolítica foram identificadas quatro grandes regiões mundiais: a “Euro-África” (abrangendo toda a Europa, o Médio-Oriente e todo o continente africano); a “Pan-Rússia” (abrangendo a generalidade da ex-União Soviética, o sub-continente indiano e o leste do Irão); a “Área de Co-prosperidade da grande Ásia” (abrangendo toda a área bordejante da Índa e sudeste asiático, o Japão, as Filipinas, a Indonésia, a Austrália e generalidade das ilhas do Pacífico); e a “Pan-América” (onde se inseria todo o território desde o Alaska à Patagónia e algumas ilhas próximas do Atlântico e do Pacífico).

Estreitamente ligada com a tese das “Pan-regiões” encontra-se a ideia dos Estados-directores” (i. e. de um directório de potências), que consistia na liderança de cada uma dessas áreas por um Estado forte, dinâmico, com grande população e recursos, dotado de altos padrões económicos e industriais, bem como de uma posição geográfica que lhe permitisse exercer um efectivo domínio sobre os restantes. Os Estados melhor posicionados para exercer essa liderança seriam, segundo Haushofer, a Alemanha (Euro-África), a Rússia (Pan-Rússia), o Japão (Área de Co-prosperidade da grande Ásia) e os EUA (Pan-América).

A Geopolitik der Pan-Ideen e outros trabalhos de Haushofer tiveram significativas repercussões no exterior, especialmente no Japão imperial dos anos 30 e 40 (que, juntamente com a Itália de Mussolini, constituíu um elo fundamental das chamadas potências do “Eixo”). Nesse país, o conceito de geopolítica de Kjellén tinha já sido introduzido, em 1925, pela mão do geógrafo Chikao Fujisawa, numa recensão crítica do já referido trabalho de Kjellén, Staten som Lifsform, publicada num jornal nipónico de Direito Internacional e Diplomacia, onde Fujisawa apontava as potencialidades abertas pelo mesmo, para um estudo das questões geográficas e políticas ligadas ao Estado fora da perspectiva formal e abstracta tradicional (Takeuchi, 2000: 72). Estando o caminho intelectual já aberto pela receptividade de Fujisawa e outros geógrafos ao neologismo de Kjellén, a rápida aceitação e popularidade dos trabalhos Haushofer no Japão, deveu-se, também, ao seu profundo conhecimento do carácter do povo japonês e das suas instituições políticas, militares e sociais, relatado elogiosamente em Dai Nihon. Betrachtungen über Gross-Japans Wehrkraft Gross-Japans Weherkraft, Weltstellung und Zukunft (O Grande Japão. Obervações sobre a defesa a posição mundial e o futuro do Japão, 1913).

Todavia, é importante notar que a geopolítica japonesa não foi meramente um produto importado da Alemanha, sendo os seguidores de Haushofer apenas umas das suas correntes importantes. Antes da sua influência chegar ao Japão, já existia a influente escola geográfica da Universidade Imperial de Kyoto, dirigida por Saneshige Komaki, onde se desenvolveu uma escola de geopolítica com características próprias: a Escola de Kyoto; e existia também uma importante organização de estudos geográficos, económicos e políticos: a Associação Japonesa de Geopolítica, liderada por Nihon Chiseigaku Kyokai (ibidem: 75).

3. Se é associado à história da geopolítica alemã que encontramos a origem conceito e os mais significativos esforços de teorização (e justificação) de uma disciplina nova é, por sua vez, no âmbito da Geopolitics (i. e. da geopolítica britânica) que encontramos o que habitualmente é considerado principal texto fundador da disciplina: The Geographical Pivot of History, tema da conferência proferida pelo Honourable Sir Halford John Mackinder, em Londres, na Sociedade Real de Geografia, a 21 de Janeiro de 1904. O seu autor foi um notável geógrafo e académico na sua época, professor de Geografia em Oxford (1987-1905) – o primeiro desde que no século XVI Richard Hakluyt ensinara Geografia nessa universidade –, director do Colégio Universitário de Reading (1892-1903), director da London School of Economics and Political Sciences (1903-1908) e um explorador famoso do continente africano, sendo o primeiro europeu a escalar o monte Quénia até ao seu cume (1899).

O principal objectivo de Mackinder, como geógrafo e professor, foi reabilitar a imagem da Geografia aos olhos do mundo académico, na esteira dos prestigiados trabalhos de Carl Ritter e Friedrich Ratzel na Alemanha. E, tal como Ritter, que ensinava na universidade e na Escola de Guerra, Mackinder deu também cursos aos oficiais do Estado-maior britânico (a partir de 1906). Mas, para além dos seus objectivos estritamente académicos como geógrafo-professor, desenvolveu uma carreira política activa e esteve ligado aos círculos dirigentes britânicos. A sua participação política iniciou-se nas fileiras dos chamados “liberais imperialistas”, mas após a decisão do secretário do governo britânico para as colónias, Joseph Chamberlain, em 15 de Maio de 1903, de renunciar oficialmente a uma política de livre comércio em detrimento de uma política comercial tarifária proteccionista do comércio no interior do império (pretendendo fechá-lo à crescente concorrência alemã e norte-americana), deu-se uma cisão nas fileiras dos “liberais imperialistas”: de um lado ficaram os partidários do livre comércio sem restrições ao exterior; do outro os que, invocando razões estratégicas e geopolíticas defendiam a política tarifária proteccionista de Joseph Chamberlain. Mackinder juntou-se a estes últimos e, posteriormente, acabou por associar-se aos conservadores tendo ocupado o cargo de deputado na Câmara dos Comuns (1910-1922); desenvolveu, ainda, missões diplomáticas no Sul da Rússia (1919-1920), para onde foi nomeado pelo Foreign Office, dirigido na época por Lord Curzon, como Alto Comissário britânico, tendo, após o seu regresso, trabalhado activamente na fundação de uma aliança anti-bolchevique.

Não deixa de ser curioso verificar também a existência significativas similitudes entre Halford Mackinder e o seu mais célebre contemporâneo – Winston Churchill –, quer nos percursos pessoais, quer nas ideias (a principal divergência de ideias que se pode detectar entre estas duas personalidades é sobre a questão do livre comércio no interior do Império Britânico: enquanto Mackinder foi um acérrimo defensor do proteccionismo comercial, Churchill cerrou fileiras em torno de um política de livre comércio). Ambos nasceram durante o longo reinado da Rainha Vitória (1837-1901), o período áureo do império no século XIX (Mackinder em 1861; Churchill em 1874); ambos podem ser descritos através das palavras que Fançois Bédarida (1999: 369), magistralmente utilizou para caracterizar o percurso de Churchill: “não se pode compreender a [sua] vida nem a [sua] obra sem perceber até que ponto ele permaneceu um vitoriano imerso – outros dirão – perdido na modernidade do século XX”; ambos foram ardentes defensores do Império Britânico e empreenderam viagens exploratórias e/ou combateram ao serviço do império (subida ao monte Quénia, de Mackinder, em 1899; combate na guerra dos Boers, na África do Sul, de Churchill, em 1899-1900, etc.); ambos transitaram do Partido Liberal para o Partido Conservador (Mackinder em 1910; Churchill em 1924); ambos mostravam uma desconfiança endémica face à Russia (especialmente após a revolução bolchevique de 1917), como principal inimigo do Império Britânico, do Estado de direito, da liberdade e da democracia; ambos acabaram por projectar o seu nome na história, sobretudo devido aos acontecimentos da II Guerra Mundial.

Se The Geographical Pivot of History, de Mackinder, é generalizadamente considerado o texto fundador do discurso geopolítico moderno, não deixa também de ser curioso notar, no mesmo, a ausência total da palavra Geopolítica. Essa ausência pode-se também constatar em todos os outros trabalhos importantes do geógrafo britânico. Tudo indica que essa ausência foi deliberada, e que não se deve propriamente a um desconhecimento dos trabalhos de Kjellén e dos seus seguidores alemães, mas a uma premeditada atitude patriótica (compreensível se atendermos às suas posições políticas anteriormente expostas), de rejeicção do neologismo devido à sua conotação germânica.

Voltando à análise do texto fundador de Mackinder, verifica-se que este passou em revista, de uma maneira sintética e abrangente, a história universal, através de uma grelha de leitura geográfica, sustentando que foi nas imensas planícies asiáticas que ocorreram os acontecimentos decisivos da história universal, e que esta zona do mundo tem teve, milenarmente, uma influência decisiva no rumo dos acontecimentos mundiais. Face a esta constatação histórico-geográfica propôs um conceito analítico original – a área pivot (1904) – cuja designação (e contornos), foram posteriormente alterados para Heartland (1919), como resultado da sua reflexão sobre os acontecimentos[1] da I Guerra Mundial (Blouet, 1987: 167), e, provavelmente também, da influência exercida pelo seu contemporâneo, o geógrafo da Universidade de Londres, James Fairgrieve, em trabalhos como Geography & World Power (1915).

A este propósito, não deixa de ser curioso notar que, ao contrário do que acontece com a Geopolitik de Karl Haushofer (normalmente abundamente ligada a outros contributos, às vezes até sem grande fundamentação…), a geopolítica britânica da primeira metade do século XX é, normalmente, apresentada como tendo em Mackinder a sua figura central e mais ou menos única, e as suas ideias são também apresentadas como revestindo uma quase total originalidade, face à ausência de conexões estabelecidas com trabalhos precursores, ou de geógrafos seus contemporâneos. Mas esta imagem naturalmente que não resiste a uma análise mais profunda dos trabalhos de Mackinder. The Geographical Pivot of History (1904) foi, em grande parte, uma reacção britânica à influência (que Mackinder julgava perniciosa para o poder britânico), dos trabalhos do almirante norte-americano Alfred Thayer Mahan sobre a apologia do poder marítimo, o mais famoso dos quais intitulado The Influence of Sea Power upon History, 1660-1783 (1890). O grande impacto dos trabalhos de Mahan sobre os seus contemporâneos pode-se facilmente constatar-se na rival Alemanha onde, por exemplo, o Kaiser Wilhelm II determinou que os livros Mahan fossem leitura obrigatória pelos oficiais da sua marinha imperial.

Por sua vez, o compatriota de Mackinder, James Fairgrieve, no já referido Geography & World Power (1915), analisou as conexões entre os factores geográficos e o poder estadual ao longo da história, numa linha de pensamento semelhante à que Mackinder desenvolveu inicialmente no escrito de 1904 e, posteriormente, num outro importante trabalho publicado no imediato pós I Guerra Mundial, intitulado Democratic Ideals and Reality (1919). Quer dizer, Makinder foi simultaneamente influenciador e influenciado por Fairgrieve. Isso é visível no seu trabalho de 1919, onde o Heartland surge como uma vasta região que corresponde, na sua essência, às imensas planícies do continente asiático, que geograficamente têm o seu início na Europa Leste e que pela sua imensidão e protecções naturais (gelos árticos no norte e cadeias montanhosas no sul) são praticamente inacessíveis às talassocracias (i. e. ao poder marítimo).

Em Democratic Ideals and Reality, Mackinder começou por lembrar que o pensamento dos “grandes organizadores” que mais influenciaram o destino político da Europa do século XIX (Napoleão I e Bismarck), foi sempre de tipo essencialmente estratégico. E que esta forma de pensamento se contrapõe, naturalmente, ao pensamento dos democratas puros (Mackinder estava, provavelmente, a pensar no “idealismo” do presidente norte-americano Woodrow Wilson…), que tendem a raciocinar quase esclusivamente em termos de grandes princípios éticos (e jurídicos). Por isso, Mackinder fez notar que, apesar da importância dos ideais democráticos, não se podia subestimar o impacto que o pensamento estratégico dos grandes organizadores tinha na política internacional. E isto podia facilmente verificar-se pela análise da história europeia: para responder à França e ao agressivo militarismo napoleónico após a derrota de Jena (1806), a Alemanha (ou melhor a multiplicidade de entidades políticas autónomas que partilhavam o espaço germânico), sob o galvanizador impulso intelectual de Johan Gottlieb Fichte, através dos empolgantes Reden an die Deutsche Nation (Discursos à Nação alemã), proferidos na Universidade de Berlim (1807-1808) lançou, sob a liderança da Prússia, as bases do serviço militar obrigatório, da educação universal obrigatória, e estabeleceu, ainda, uma forte ligação entre a instituição universitária e a academia militar, onde se formava grande parte da elite dirigente alemã. Foi a superioridade daquilo que parafraseando o estratega militar britânco Liddell Hart se pode qualificar como a “grande estratégia” nacional alemã (i. e., uma estratégia que não se restringiu aos aspectos militares, antes foi formulada em termos globais, ou seja militares, económicos, culturais, etc), baseada na Kultur que, na segunda metade do século XIX permitiu à Alemanha de Otto von Bismarck superar a França de Napoleão III, ascendendo a potência dominante da Europa continental.

Assim, Mackinder recorrendo a uma metáfora cheia de simbolismo e originalidade, lembrou aos dirigentes dos Estados vencedores da I Guerra Mundial que, conforme um general romano instruíra um escravo para segredar-lhe ao ouvido que era mortal (de modo a que nos momentos de triunfo militar não perdesse a noção da realidade), também estes deveriam ter alguém a lembrar-lhes repetidamente: who rules East Europe commands the Heartland; who rules the Heartland commands the World-Island; who rules the World-island commands the World[2] (quem controlar a Europa de Leste domina o Heartland; quem controlar o Heartland dominará a Ilha-Mundial; quem controlar a Ilha-Mundial dominará o mundo) (Mackinder, 1919 [1942]: 150].

De facto, Mackinder, com a publicação da obra Democratic Ideals and Reality, pretendeu intervir nesse debate, chamando à atenção dos principais dirigentes políticos da aliança militar vencedora – Lloyd George (Reino Unido), Woodrow Wilson (EUA) e Georges Clemenceau (França) – para a necessidade premente de organizar a Europa de Leste, mantendo-a fora do controlo duma única potência terrestre, por força das específicas características penínsulares da Europa Ocidental. Assim, aquilo que designou como um cordão de buffer-states (Estados-tampão), deveria separar a Alemanha da Rússia, evitando que uma só potência dominasse o Heartland (Mackinder, 1919 [1942]: 158). Assinalável é o facto deste trabalho do geográfo britânico ser não só um marco importante do pensamento realista-político, em defesa da tradicional balance of powers (balança dos poderes), como constituir uma interessante antecipação de muitos dos argumentos usados nos virulentos ataques a que foi sujeito o idealismo consubstanciado na Sociedade das Nações (instituída precisamente em 1919), ao longo da segunda metade dos anos 30, nomeadamente pelo seu compatriota – o historiador Edward H. Carr – em The Twenty Years Crisis (1939).

4. Não é possível compreender as imagens profundamente negativas e diabolizadas (criadas sobretudo no mundo anglo-saxónico e especialmente nos EUA), em torno da Geopolitik e de Karl Haushofer, se não se tiver em conta o enorme impacto (e apreensão) gerado junto do público norte-americano, pelos sucessos da wermacht (o exército da Alemanha nazi) na II Guerra Mundial, durante a sua blitzkrieg (guerra relâmpago) que levou à conquista de quase toda a Europa, nos anos 1939-1941; nem é possível compreender também essas imagens, senão tivermos em consideração o envolvimento directo dos EUA nesse conflito, a partir do ataque do Japão à base naval de Pearl Harbour, nas ilhas do Hawai, no Oceano Pacífico, a 8 de Dezembro de 1941.

É possível constatar-se que os media norte-americanos mostravam já bastante intereresse e curiosidade, quer pela Geopolitik, quer pela personalidade de Haushofer, mesmo antes da entrada dos EUA na II Guerra Mundial. Diversos artigos com título sugestivos apareceram um pouco por toda a imprensa, sendo os mais célebres (e sensacionalistas) da autoria do jornalista Frederick Sondern. Hitler´s Scientists (Os Cientistas de Hitler) e em The Thousand Scientists behind Hitler (Mil Cientistas por detrás de Hitler) figuram nos anais dos principais relatos mediáticos sobre a “nova ciência alemã” (Ó Tuathail, 1996: 111-121). Estes artigos foram publicados no ano de 1941, respectivamente, na Reader´s Digest e na Collier´s (duas publicações de massa), tendo um enorme impacto no público norte-americano. Em The Thousand Scientists behind Hitler, era descrita a existência de um “mítico” Instituto de Geopolítica, em Munique, (algo que de facto se verificou nunca ter existido e cuja invenção, tem, provavelmente, origem na deturpação do papel de outra instituição, a Deutschen Akademie (Academia Alemã), que Haushofer efectivamente presidiu entre 1934 e 1937…), chefiado por Haushofer, e sugerido que Hitler tinha uma espécie de “pacto satânico com forças obscuras, uma das quais seria uma nova ciência de conduzir a política e a guerra. Essa nova arma, a geopolítica, saída dos laboratórios de Munique, seria servida por um grupo de cientistas enfeudados à política agressiva alemã.” (Frederick Sondern citado por Valente de Almeida, 1988 [1990]: 138).

Já depois da entrada dos EUA na guerra, a revista Life de 21 de Dezembro de 1942, anunciava como título do artigo principal, da autoria de J. Thorndike: Geopolitics: The lurid career of a scientific system which a Briton invented, the Germans used and the Americans need to study (Geopolítica: O atraente percurso de um um sistema científico que um Britânico inventou, os Alemães usam e os Americanos precisam de estudar) (Ó Tuathail, 1996: 111). Neste contexto, é possível verificar-se que o ano de 1942 foi particularmente importante, tendo sido, durante o mesmo, publicados diversos trabalhos influentes, agora sobre a forma de livro, todos, curiosamente da autoria de emigrantes europeus da Mittel Europa (Europa Central), que se radicaram nos EUA, e consubstanciando um conjunto de estudos, os quais, parafraseando Ó Tuathail (1996: 121), se podem qualificar como do tipo middle-brow policy narrative (i. e. como trabalhos interessantes, mas sem muita profundidade e grande rigor académico). Entre esses trabalhos destacam-se os da autoria de Hans Weigert intitulado Generals and Geographers: The Twilight of Geopolitics (Generais e Geógrafos: O Crepúsculo da Geopolítica) e o de Robert Strausz-Hupé, Geopolitics: The struggle for Space and Power (Geopolítica: A luta pelo Espaço e pelo Poder), que vamos analisar sinteticamente e apenas nos seus traços essenciais.

Para Hans Weigert (1942: 28-29), a essência pensamento cultural e político germânico do início do século XX, e as raízes da Geopolitik, podiam encontrar-se já na leitura do best-seller de Oswald Spengler, Der Untergang des Abendlandes I-II (1918-22), obra que os norte-americanos trataram com superficialidade[3] e cuja recepção nos meio cutural e político dos EUA foi feita com manifesta falta de espírito crítico. Quanto à influência de Haushofer sobre Adolf Hitler, Weigert demarcou-se, pelo menos em parte, daqueles que, especulativamente, pretendiam ver o dedo de Haushofer em toda a acção política de Hitler e na redacção do Mein Kampf (A Minha Luta). A este propósito referiu, em tom irónico, que Haushofer certamente “teve o azar de perder o autocarro para visitar Hitler na prisão de Landsberg” quando este estava a escrever o famoso capítulo XIV do Mein Kampf, o qual contém as principais directrizes da política externa do III Reich (Weigert, 1942: 151). Isto porque o seu conteúdo diverge das principais teses geopolíticas de Haushofer, que sempre foi contrário à “operação Barbarossa”, ordenada por Hitler, em 1941, e que levou, à invasão da ex-União Soviética, com resultados catastróficos para os exércitos nazis e para a sobrevivência do regime hitleriano.

Paralelamente ao processo de especulação (e de “satanização”) que se desenvolvia nos media norte-americanos e, em menor grau, na já referida literatura do tipo middle-brow, a Geopolitik foi simultaneamente objecto de um processo de descredibilização, agora a um nível mais profundo e especificamente académico-científico. Nesse processo, destacou-se o mais célebre e influente geógrafo norte-americano da primeira metade do século XX – Isaiah Bowman – director da American Geographical Society (1915-1935), conselheiro-chefe para as questões territoriais do presidente Woodrow Wilson, na Conferência de paz de Versalhes (1919), membro fundador e presidente (1931-1934) do Council on Foreign Relations que esteve na origem da fundação da revista norte-americana, Foreign Affairs, em 1922, (criada com o objectivo de combater as tendências isolacionistas dos EUA e forjar uma nova consciência geográfica nos EUA, despertando o público e os dirigentes norte-americanos para o seu papel nos assuntos internacionais), presidente da Universidade Johns Hopkins (1935-1948) e conselheiro do departamento de Estado para as questões territoriais durante a II Guerra Mundial. Bowman começou por ser conhecido do grande público, pela organização de expedições patrocinadas pela American Geographical Society e posterior publicação dos seus relatos, sendo a mais importante aos Andes situados a Sul do Perú, em 1915 (uma semelhança notória com o percurso de Mackinder). Mas, foi sobretudo o trabalho intitulado The New World: Problems in Political Geography (O Novo Mundo: Problemas de Geografia Política, 1921), onde descreveu e analisou os impérios, os Estados e as colónias do mundo, na sequência dos arranjos territoriais saídos da I Guerra Mundial, que lhe deu maior notoriedade: o departamento de Estado distribuiu 400 cópias pelas suas representações consulares em todo o mundo e, durante a II Guerra Mundial, foram distribuídas 200 cópias pelas livrarias de campo do exército norte-americano (Ó Tuathail, 1996: 151-152). Por sua vez, com os desenvolvimentos da II Guerra Mundial e a crescente atenção prestada pelos media à Geopolítica aumentou a notoriedade de Bowman. No discurso público norte-americano era referido correntemente como “o nosso” geopolítico; e, simultaneamente, gerou-se nos media uma tendência espontânea de o qualificar como o “Haushofer americano” o que, por razões patrióticas e académicas compreensíveis, irritou o célebre geógrafo. E, por reacção a esta “ligação perigosa”, Isaiah Bowman publicou um influente artigo na Geograghical Revue, em Outubro de 1942, intitulado Geography versus Geopolitics, onde afirmava que “a Geopolítica representa uma visão distorcida das relações históricas, políticas e geográficas do mundo e das suas partes… os seus argumentos tal como são desenvolvidos na Alemanha servem apenas para sustentar o caso da agressão alemã” (Isaiah Bowman citado por Ó Tuathail, 1996: 154).

Este esforço de demarcação de Isaiah Bowman face à “ciência Geopolítica” (i.e. à Geopolitik) foi secundado em publicações sobre Política Internacional dirigidas a públicos selectivos, como a Foreign Affairs, através da contraposição de teses geopolíticas “boas”, onde se evitava o uso da palavra proscrita. Ainda no ano de 1942, e na consequência do interesse do público norte-americano por Democratic Ideals and Reality de Mackinder, surgiram duas reedições desse trabalho (respectivamente em Maio e Outubro) e Hamilton Fish Armstrong, o editor na época da Foreign Affairs, solicitou a Mackinder uma revisão da teoria do Heartlland face aos acontecimentos da II Guerra Mundial. Dessa solicitação resultou um famoso artigo intitulado The Round World and the Winning of the Peace, publicado em Julho de 1943, onde Mackinder formulou a tese do Midland Ocean, numa antecipação daquilo que ficou conhecido por política de containment do expansionismo soviético, na época de Harry Truman, e que esteve na génese da Aliança Atlântica.

Mas, nesse mesmo ano de 1942, surgiram também dois importantes trabalho da autoria de um norte-americano de origem holandesa, Nicholas John Spykman, ex-jornalista (1913-1920) e professor de Relações Internacionais na Universidade de Yale desde 1928, (onde foi também director do Instituto de Relações Internacionais. O primeiro, intitulado The America´s Strategy in World Politics. The United States and the Balance of Power (1942), para além de ter recebido comentários elogiosos de Isaiah Bowman, foi qualificado pelo seu editor, a Harcourt, Brace and Company, como “a primeira análise geopolítica abrangente da posição dos Estados Unidos no mundo” feita pela “maior autoridade norte-americana em geopolítica” (apresentação de Spykman na capa da edição de 1942). Quanto ao segundo, The Geography of the Peace (1944), redigido em 1943 mas publicado postumamente, marcou decisivamente a política externa do pós-II Guerra Mundial com o conceito de Rimland (uma zona entre os poderes marítimo e terrestre, que abrangia parte da Europa Ocidental, o Médio Oriente, a Turquia, o Irão, a Índia, o Paquistão, a China, a Coreia, o Japão, o Sudoeste Asiático e a costa do pacífico da Rússia) uma área geoestratégica determinante para a segurança dos EUA no mundo (e que influênciou toda a sua política de alianças militares).

É neste contexto politicamente tumultuoso e de separação de águas entre uma geopolítica “boa” e uma geopolítica “má” que tem de ser entendida a conhecida (mas frequentemernte mal interpretada) afirmação do professor da Universidade de Chicago, Hans J. Morgenthau (um dos principais impulsionadores do estudo académico autónomo das Relações Internacionais nos EUA) de que “a geopolítica é uma pseudociência” (1948 [1997]: 178). O que Morgenthau (tal como Bowman) quis de facto qualificar como uma pseudociência não foi, como pode parecer à primeira vista, a Geopolítica (i.e., o saber geopolítico em geral), mas, apenas, uma determinada visão geopolítica particular, a da Geopolitik (i.e., a geopolítica alemã-nazi). Certamente que nem Bowman, nem Morgenthau, pretendiam incluir nas suas críticas os trabalhos geopolíticos do britânico Mackinder (que sempre evitou usar a palavra Geopolítica…) nem os do seu compatriota Spkykman que, aliás, se inserem perfeitamente na sua visão realista e anglo-saxónica das Relações Internacionais. Mas, o esforço empreendido pelos meios académico-científicos norte-americanos de “separação de águas”, entre uma “Geopolítica boa” (não designada por Geopolítica…) e uma “Geopolítica “má” não foi em vão: o uso palavra Geopolítica foi praticamente banido do vocabulário da Política Internacional durante três décadas (até aos anos 70 do século XX). A principal ironia deste processo é que, paralelamente, o pensamento geopolítico floresceu nos EUA do pós II Guerra Mundial mais do que em qualquer outro Estado do mundo…

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NOTAS

[1] “The inclusion of East Europe in the Heartland concept was of importance. Mackinder, after an examination of the events leading up to World War I, had come to the opinion that the struggle for command of the Heartland would be between Germany and Russia […] The Heartland concept was not a statement of the Pivot idea; it was a prediction made in the light of practical politics and the First World War, and it proved to be remarkably accurate […] The 1919 statement brought in a tradition that saw Central Europe as the fulcrum from which the lever of power could be exercised» (Blouet, 1987: 167).

[2] “Who rules Bohemia rules Europe was how Bismarck had expressed the theme. The Masaryk [Thomas G. ], articles on Pan-Germanism in The New Europe had made Mackinder fully aware of this line of thought in German consciuosness […] In Democratic Ideals and Reality Mackinder encapsulated this theme in his widely quoted jingle” (Blouet, 1987: 167).

[3] A começar pelo título que, na opinião de Weigert, foi mal traduzido pelo editor norte-americano, para The Decline of The West, i. e. “A Decadência do Ocidente”, quando deveria ter sido traduzido para The Downfall of the West, i. e. “A Queda do Ocidente”.

© José Pedro Teixeira Fernandes, “A Geopolítica Clássica Revisitada”, artigo  publicado  in Nação & Defesa 105, Verão (2003): 222-244. Não são publicados aqui os mapas da versão original do artigo. Última revisão 14/10/2015

domínio público Imagem: mapa do Heartland (domínio público / Wikipedia),  segundo Halford J.  Mackinder, publicado originalmente no artigo “The Geographical Pivot of History” (The Geographical Journal, vol. 23, 1904, p. 435)

O Islamismo-jihadista como ideologia política totalitária

bandeira do Estado Islâmico

Mas, dentro da estrutura organizacional do movimento, enquanto ele permanece inteiro, os membros fanatizados são inatingíveis pela experiência e pelo argumento; a identificação com o movimento e o conformismo total parece ter destruído a própria capacidade de sentir, mesmo que seja algo tão extremo como a tortura ou medo da morte.

Hannah ARENDT

 

1. Para a mentalidade secular do europeu e ocidental do século XXI, as ideologias políticas não usam uma linguagem religiosa, nem se legitimam com um fundamento divino. Desde a revolução francesa de 1789, onde surgiram os modernos conceitos de esquerda e direita e também de terror, que a modernidade política, europeia e ocidental, foi construída pela separação e emancipação da política face à religião. Aparentemente, essa evolução é um dado adquirido da modernidade contemporânea e válida em termos universais. Na realidade, o mundo globalizado de hoje mostra-nos que não é assim. As hipóteses que coloquei no meu livro “Islamismo e Multiculturalismo. As Ideologias Após o Fim da História” (Almedina, 2006), parecem hoje estar a confirmar-se em vários aspetos. Permito-me recordá-las aqui. Uma hipótese consistia em supor que a “reconfiguração ideológica não está apenas a ocorrer no plano interno das sociedades europeias e ocidentais.” Uma outra admitia que o Islamismo, “enquanto fenómeno ideológico, continua a ter um significativo potencial de expansão a nível internacional – não só dentro dos países islâmicos como fora destes, incluindo nas sociedades europeias e ocidentais” (pp. 10-11). Assim, proponho-me mostrar que, apesar da fraseologia religiosa, estamos perante uma ideologia, que é política e não se confunde com o Islão entendido como religião. Esta ideologia tem é origem num ambiente cultural islâmico. A sua compreensão é determinante para percebermos casos como o do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (“Islamic State in Iraq and the Levant” na transliteração de árabe para inglês). Vou ainda tentar mostrar quais são as características principais do Islamismo, destrinçando-a do Islão como religião e evidenciando o seu carácter totalitário. A evidenciação desta última característica será feita por referência ao trabalho clássico de Hannah Arendt “As Origens do Totalitarismo” (trad. port, 5ª ed. 2014, D. Quixote), originalmente publicado em 1951. Na altura, o contexto era o dos totalitarismos de origem europeia/ocidental, nazi e estalinista, bem mais familiares ao público europeu e ocidental.

2. Quais são, então, as características que nos permitem falar do Islamismo como uma ideologia política? (Abordarei, mais à frente, a especificidade do Islamismo-jihadista). Vou aqui recorrer à distinção que tracei anteriormente, no meu já referido livro de 2006, “Islamismo e Multiculturalismo. As Ideologias Após o Fim da História” (pp. 46-47). Uma primeira característica é a “recusa – feita, simultaneamente, por convicção e estratégia –, de separação entre o Islão como religião, do Islão como política e ideologia”. Daqui resultam, pelos menos, duas consequências nefastas. Uma para as sociedades configuradas por valores europeus e ocidentais, que é a “deslocação da ideologia do Islamismo para o terreno da religião, quando o terreno apropriado seria o da política e o das regras jurídico-constitucionais aplicáveis ao jogo político”. A outra é para os próprios muçulmanos, sobretudos os que rejeitam essa apropriação e/ou estão empenhados em modernizar a sua crença religiosa. “Assim vêem os seus intuitos reformadores bloqueados e descredibilizados”. Uma segunda característica é que os atores não são os partidos ou movimentos políticos, tal como os conhecemos no Ocidente. Para um ocidental, tudo seria mais fácil de compreender, e rotular, se a ideologia Islamista se corporizasse em “camisas negras” fascistas, grupos paramilitares de “camisas castanhas” nazis, ou outros equivalentes e usasse uma linguagem secular. Não é o caso. Frequentemente, são “grupos e movimentos, formais ou informais, hierarquizados ou descentralizados, aparentemente apenas com missões e objectivos religiosos”, mas, que, na prática, “prosseguem objectivos políticos (normalmente não assumidos explicitamente).” Em contexto europeu e ocidental, estes reclamam “ser tratados ao abrigo da liberdade religiosa e do respeito devido à religião. Desta forma, estamos perante aquilo que pode ser designado como ‘teopartidos’”. A terceira característica está em conexão com a segunda e resulta da sua forma de fazer política, “em rota de colisão com ideia secular de ‘política’ do mundo ocidental”. A forma de fazer política dos islamistas “pode ser designada como uma ‘teopolítica’ – ou seja, ‘política de Deus’, a partir da palavra grega teo –, devido à intrincada e deliberada mistura entre o religioso e o político”. No seu livro “Islam and Islamism”/Islão e Islamismo (Yale University, 2012), Bassam Tibi, académico de origem síria especializado em assuntos do Médio Oriente, chama a este fenómeno “the religionazed politics of Islamism”, ou seja, uma “sacralização da política” intencionalmente feita pelo Islamismo. A quarta caraterística é que “o seu horizonte ideal, em termos de Estado, é o Estado islâmico regido pela Sharia, o que, na linguagem política europeia e ocidental é qualificado como um Estado de tipo teocrático. Por extensão de ideias, o seu sistema de governo será “uma ‘teocracia’. Em termos de ideologias modernas, e numa linguagem secular, estamos perante uma concepção de Estado próxima das ideologias políticas totalitárias. De tudo isto pode inferir-se uma quinta característica, que é o uso – ou melhor, a apropriação –, de “forma explícita e deliberada, dos textos religiosos do Islão”, usando-os como ‘manifesto político’” e ‘constituição’. O Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL), corporiza bem esta característica, da qual um exemplo típico anterior se encontra na Carta do HAMAS/Movimento de Resistência Islâmica da Palestina.

3. Impõe-se clarificar melhor a característica totalitária desta ideologia não ocidental. O trabalho clássico de Hannah Arendt é bastante útil para este efeito. Quando fazemos a sua leitura, não a pensar nos totalitarismos nazi e estalinista, aos quais se refere originalmente o livro, mas no Islamismo atual, encontramos diferenças históricas e de contexto cultural, que não podem ser menosprezadas. Todavia, verificamos também existirem surpreendentes paralelismos. Por exemplo, quanto à subversão das regras democráticas, Hannah Arendt escreveu que “os movimentos totalitários usam e abusam das liberdades democráticas com o objectivo de as suprimir” (p. 414). Em várias partes do mundo árabe islâmico, Tunísia, Egito, etc. vimos como os movimentos islamistas aproveitaram a Primavera Árabe de 2011 para subvertê-la a seu favor, jogando o jogo eleitoral. Quanto ao fanatismo ideológico, esta frase soa também a familiar nos islamistas de hoje: “O Idealismo, tolo ou heróico, nasce da decisão e da convicção individuais, mas forja-se na experiência. […] Mas, dentro da estrutura organizacional do movimento, enquanto ele permanece inteiro, os membros fanatizados são inatingíveis pela experiência e pelo argumento; a identificação com o movimento e o conformismo total parece ter destruído a própria capacidade de sentir, mesmo que seja algo tão extremo como a tortura ou medo da morte” (p. 409). Não é difícil extrapolar tais características para o Islamismo-jihadista e o seu recrutamento e uso de jovens fanatizados ideologicamente, para a jihad na Síria, Iraque, etc. Tal está a ser feito, em número crescentemente significativo, em país europeus e ocidentais. Sinais dos tempos, há uma ou duas gerações atrás, provavelmente esses mesmo jovens sentir-se-iam ideologicamente atraídos por grupúsculos de extrema-esquerda, como o Baader-Meinhof na Alemanha e as Brigadas Vermelhas em Itália, ou outros equivalentes de extrema-direita neo-nazi. Outra curiosa similitude com o Islamismo, especialmente nas suas versões mais extremas, é uma característica apontada por Hannah Arendt, segundo a qual os movimentos totalitários se distinguem de outros “pela exigência de lealdade total, irrestrita, incondicional e inalterável de cada membro individual […] desprovidos de outros laços sociais – de família, amizade e camaradagem –, só adquirem o sentido de terem lugar neste mundo quando participam num movimento” (p. 428). Esta última frase trás à mente, no contexto da atual Europa, os jovens desenraizados, frequentemente de segunda e terceira geração de emigrantes, muçulmanos, ou convertidos, que são recrutados para uma “causa”. Esta dá-lhes a sensação de participarem numa “missão” global, a qual, paradoxalmente, apesar do risco óbvio de morte, parece dar sentido à sua vida. Tal como no contexto em que Hannah Arendt escreveu, a propaganda – hoje feita em grande parte pela Internet e redes socais –, é uma peça fundamental do totalitarismo na radicalização ideológica. “Por existirem num mundo que não é totalitário, os movimentos totalitários são forçados a recorrer ao que commumente chamamos propaganda.” (p. 453). No caso atual dos islamistas-jihadistas da Al-Qaeda, EIIL e outros, o terror parece ser uma peça importante da sua difusão propagandística.

4. Falta agora explicitar o que distingue o Islamismo do Islamismo-jihadista (ou só jihadismo). A diferença é mais evidente quando as comparações são feitas com as versões radicais do movimento, que se encontram no extremo do espectro político islamista. Uma análise desta ideologia política mostra que, todavia, apesar de existirem diferenças de maior ou menor relevo, não parece haver divergências ideológicas de fundo entre o Islamismo e o Islamismo-jihadista, nomeadamente quanto à ideia última de instalar o “Estado-Sharia”. A principal e mais óbvia diferença está nos meios utilizados. Ou seja, é mais uma diferença de estratégia do que de ideologia. A este propósito, Bassam Tibi fala, no seu já citado livro, em “islamistas-institucionalistas” (que admitem usar o jogo eleitoral das democracias para atingir os seus objetivos, tencionando alterar as regras quando atingirem o poder) e “islamistas-jihadistas” (que recorrem directamente à violência para objetivos em grande parte similares). Enquanto movimentos islamistas como a Irmandade Muçulmana e outros, hoje tendem a não recorrer a meios violentos e não usam o terror, os movimentos mais radicais – é o caso da Al-Qaeda ou do EIIL –, usam a violência e o terror para atingir os seus fins. Essa violência e terror é usada a coberto de uma pretensa “obrigação de jihad” (um conceito islâmico complexo com vários significados). Tais movimentos transformaram esse conceito, teorizado pelos teólogos-juristas do Islão clássico, de uma guerra com regras, que pode ser desencadeada em certas circunstâncias, numa forma de violência mais ou menos indiscriminada, contra não muçulmanos e muçulmanos “desviantes” da sua interpretação do Islão. Daí o neologismo “jihadista” hoje vulgarizado. É fácil ver que o EIIL cabe nesta categoria. Nos últimos meses, surgiu como protagonista maior da guerra sectária na Síria (fazendo alastrar o conflito ao Iraque). Impôs-se, também, como força dominante no terreno entre a miríade de grupos que tentam derrubar, pela sublevação armada, o governo de Bashar al-Assad. A sua ação, caraterizada pela violência e terror contra as minorias não muçulmanas, cristãos e yazidis, bem como contra os muçulmanos xiitas, vistos como “seita herética”, é extrema. Ultrapassa, até, o que já conhecíamos da Al-Qaeda. O bárbaro assassinato, por decapitação, dos jornalistas norte-americanos, James Foley e Steven Sotloff, e, mais recentemente, do britânico David Haines, funcionário de uma ONG humanitária francesa, dissipou quaisquer dúvidas que pudessem existir quanto às suas estratégias para impor o “Estado-Sharia”.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, versão expandida do artigo originalmente na edição impressa do Público, 27 de setembro de 2014, p. 52. Última revisão 1/02/2015

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