A Geopolítica do Lítio e a Bolívia

Com um custo de extracção elevado, dificuldades no transporte para os mercados internacionais ligadas à falta de acesso directo ao mar e uma forte concorrência dos países vizinhos e da Austrália — esta última o primeiro produtor mundial — o lítio da Bolívia não é o El Dorado que dispor de uma das maiores reservas mundiais sugere.

1. Uma das ironias do mundo é que os países desenvolvidos estão, quase todos, no hemisfério Norte, mas os recursos naturais estão, em grande parte, no hemisfério Sul. Num mundo ideal essa heterogeneidade seria benéfica, pois permitiria redistribuir riqueza por toda a humanidade. Os países mais desenvolvidos a Norte pagariam um justo preço pelos recursos naturais que necessitam para o seu bem-estar. E os países do Sul teriam uma fonte de riqueza que permitiria o seu desenvolvimento económico e social. Mas o mundo é mais complexo e bem mais injusto. Raramente as coisas funcionam assim. A experiência histórica e económica tem mostrado que os recursos naturais do hemisfério Sul não se traduzem, normalmente, em ganhos significativos para as suas populações, seja por culpa dos países capitalistas mais desenvolvidos do Norte — tema abundantemente tratado pelos modelos centro-periferia —, seja por culpa de quem os governa e o faz desastrosamente em nome de utopias, tema que os modelos centro-periferia evadem por razões ideológicas. 

2. Não é só nos países do Sul que os recursos naturais geram a ilusão de riqueza. No século XX, o tungsténio — ou volfrâmio — criou em Portugal a ideia de uma riqueza fácil e rápida, especialmente no período da II Guerra Mundial, onde era visto como um mineral ‘estratégico’ para os beligerantes. Hoje, as minas de extracção do volfrâmio são sobretudo um assunto para curiosos e historiadores. (Ver João Paulo Avelãs Nunes, Minas, mineiros e guerras: as ‘corridas ao volfrâmio’). Agora é o lítio que ocupa esse papel. Tradicionalmente o lítio tem diversos usos, por exemplo na indústria de vidro e cerâmica, mas, nos últimos tempos, são as baterias de lítio que estão a impulsionar a sua procura, especialmente na indústria automóvel, com a expansão dos veículos eléctricos. O gradual abandono dos combustíveis mais fósseis está no centro de uma transição tecnológica que se pressupõe melhor para a preservação ambiental. Assim, na geopolítica da energia do século XXI, o lítio parece destinado a um lugar similar ao que o petróleo teve na geopolítica do século XX.  Aos golpes de Estado e guerras pelo controlo do petróleo irão suceder-se os golpes de estado do lítio?

3. Para os apoiantes internos e externos de Evo Morales a resposta é inequivocamente afirmativa. Na Bolívia, Evo Morales está a ser o primeiro ‘mártir’ da geopolítica do lítio. A 10 de Novembro de 2019 foi obrigado a renunciar ao cargo presidencial, após pressão dos militares e protestos orquestrados pela oposição na rua. A explicação da mudança de poder na Bolívia estará, assim, nos interesses capitalistas internacionais no lítio, sobretudo dos EUA. Como sustenta Agustina Sanchéz, do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais, “cerca de 85% das reservas mundiais de lítio estão no chamado ‘triângulo do lítio’ composto pela Argentina, Bolívia e Chile. Essas reservas estão em condições operacionais únicas e, por esse motivo, permitem custos de processamento e produção muito mais baixos do que os combustíveis fósseis. […] A Bolívia conseguiu consolidar-se como um actor fundamental no mercado mundial de lítio. Estava preparada para dar o grande salto e estabelecer-se como líder da mudança na matriz energética e no padrão tecnológico da região da América Latina e das Caraíbas. No entanto, o golpe interrompeu o processo. […] Soubemos que num Parlamento sem quórum e apenas com deputados da oposição a Evo Morales, Jeanine Añez se (auto) proclamou presidente da Bolívia, apesar de não ter condições constitucionais para fazê-lo.” (Ver Agustina Sanchéz “Detrás del Golpe: la industrialización del litio en Bolivia” in CLACSO). A reforçar esta ideia parece estar ainda o facto de Evo Morales ter cancelado, poucos dias antes de ter sido afastado do poder, devido aos protestos da população local, um contrato de parceria com a germânica ACI Systems (ACISA) para desenvolver um projecto industrial de lítio. Esse investimento estaria revestido de grande importância para as multinacionais do sector automóvel. (Ver “Bolivia scraps joint lithium project with German company” in DW, 4/11/2019). Nesta óptica, a indústria automóvel (alemã) estaria por trás dos interesses obscuros que levaram ao afastamento de Evo Morales.

4. Evo Morales, o primeiro Presidente indígena oriundo da tribo dos aymara, chegou ao poder na Bolívia em 2005. A sua eleição trouxe uma grande esperança aos mais desfavorecidos. Mas a sua permanência no poder mostrou não estar imune à corrupção que atravessa os diferentes estratos da sociedade boliviana. (Ver “Fondo Indígena, un millonario caso de corrupción que envuelve a la base social del MAS” in Correo del Sur, 17/12/2015). Para além disso, a Constituição limitava o exercício do cargo de Presidente da República a dois mandatos consecutivos, ou seja, a dez anos no poder. (Ver artigo 267º da Constituição da Bolívia de 2009). Mas essas são minudências jurídicas que não atrapalharam Evo Morales. Tal como Vladimir Putin na Rússia e Recep Tayyip Erdoğan na Turquia, as constituições mudam-se para servir grandes desígnios nacionais. Apesar de perder um referendo em 2016 para alterar o texto constitucional, achou que existe um “direito humano” à perpetuação no poder. (Ver “Bolivia dice ‘No’ enreferendo a otra reelección de Evo Morales” in BBC Mundo 26/2/2016). Essa é talvez uma das poucas coisas em que a esquerda e a direita da Bolívia — e talvez da generalidade da América Latina — estão de acordo. Isso, claro, desde que seja um dos seus a perpetuar-se no poder. (Ver “Evo Morales desafia referendo e disputará quarto mandato na Bolívia” in Agência Brasil 19/12/2016 ). Mas a democracia também não é uma paixão da direita da Bolívia, que acusa Evo Morales de fraude eleitoral. O seu afastamento tem tonalidades de golpe de Estado e deixa em aberto um regresso ao passado. (Ver “Evo Morales: ¿hubo un golpe de Estado en Bolivia?” in  BBC Mundo 13/11/2019).

5. Em termos externos, a Bolívia tem motivos históricos para desconfiar que outros queiram controlar os seus recursos naturais. E não é apenas devido a hegemonia do seu poderoso vizinho do Norte, os EUA, e às suas habituais maquinações geopolíticas. No século XIX, a Guerra do Pacífico (1879-1884) opôs o Chile à Bolívia e ao Peru. Não por acaso ficou conhecida como “guerra do salitre” (o salitre é uma mistura de nitrato de potássio e de nitrato de sódio usado para fertilizantes agrícolas, eventualmente ainda para fazer explosivos como pólvora, dinamite, etc.). A posse da riqueza mineral esteve no centro desse conflito traumático. Na época, a Bolívia lançou um imposto adicional sobre a Companhia de Salitres e Ferrocarril de Antofagasta, do Chile, não respeitando o tratado de 1874 entre ambos os países. O Chile protestou e quis submeter o caso à arbitragem internacional. Face à posição do governo da Bolívia em considerar o caso interno e sujeito apenas à jurisdição dos seus tribunais, ao diferendo económico-político sucedeu um conflito militar, do qual o Chile saiu vencedor. O Peru e a Bolívia perderem territórios ricos em recursos naturais. No caso da Bolívia, ficou sem Antofagasta e sem saída para o mar. O assunto ainda hoje é litigioso entre os dois Estados. A Constituição da Bolívia declara, no seu artigo 267º, um “direito inalienável e imprescritível sobre o território que lhe dá acesso ao Oceano Pacífico e seu espaço marítimo. (Ver Constituição da Bolívia de 2009).

6. Não há dúvida que a Bolívia tem um lugar proeminente no mapa mundial do lítio. Pelos dados conhecidos — as estimativas, como é usual, podem variar — as principais reservas mundiais estão distribuídas da seguinte maneira: Argentina com 14,8 milhões de toneladas; Bolívia com nove milhões de toneladas; Chile com 8,5 milhões de toneladas; Austrália com 7,7 milhões de toneladas; China com 4,5 milhões de toneladas; Canadá com dois milhões de toneladas; e México com 1,7 milhões de toneladas. Na União Europeia a República Checa está no topo com 1,3 milhão de toneladas, seguida da Espanha com 400.000 toneladas, da Alemanha com 180.000 toneladas e de Portugal com 130.000 toneladas. (Ver U.S. Geological Survey, Mineral Commodity Summaries, February 2019). Quer dizer, embora o lítio seja um mineral que existe um pouco por todo o mundo está fundamentalmente concentrado em duas grandes áreas: a zona dos Andes na América Latina (Argentina, Bolívia e Chile); e na Ásia-Pacífico (Austrália e China). Este recurso ‘estratégico’ faz ainda lembrar que, a América do Sul, teve, neste início de século XXI, um período onde beneficiou do aumento dos preços das commodities — petróleo e gás natural sobretudo. Na Bolívia, tal como na Venezuela, o governo de Evo Morales — neste último caso sobretudo com o gás natural —, financiou programas sociais abrangentes. Mas parte do progresso social e económico conseguido foi, entretanto, revertido pela quebra dos preços nos mercados mundiais dos últimos anos. Ao mesmo tempo, as expectativas sociais são agora mais elevadas. O lítio é a salvação desse modelo produtivista assente na exploração e exportação de recursos naturais? Muito provavelmente não.

7. Há, desde logo, uma grande diferença “entre ter recursos minerais no solo e transformá-los em reservas minerais economicamente viáveis. ‘Recursos’ refere-se a minerais no solo; ‘Reservas’ são recursos que podem ser extraídos ou extraídos a um custo razoável. Isso significa que apenas uma fracção dos recursos de um país pode ser considerada reserva economicamente viável, sem falar em competitividade comercial.”  (Ver Keith Johnson e Robert Palmer, “Bolivia’s Lithium Isn’t The New Oil” 13/11/2019, in Foreign Policy). Assim, ter um recurso natural em abundância não se traduz, automaticamente, num sucesso produtivo de um país e menos ainda numa fonte de bem-estar para a generalidade da população, mesmo que seja essa a intenção assumida do seu governo. Para a Bolívia o problema resulta, desde logo, do Chile e Argentina — onde se prolonga a mesma formação geológica dos Andes — possuírem não só importantes reservas de lítio, como de qualidade mais elevada e de mais barata extracção. Com um custo de extracção elevado, dificuldades no transporte para os mercados internacionais ligadas à falta de acesso directo ao mar e uma forte concorrência dos países vizinhos e da Austrália — esta última o primeiro produtor mundial — o lítio da Bolívia não é o El Dorado que dispor de uma das maiores reservas mundiais sugere. A Venezuela já aprendeu essa crua lição com o petróleo.

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Público, 25/11/2019

Imagem: deserto de sal de Uyuni, na Bolívia (Wikimedia Commons)

Chinese economic diplomacy regarding Portugal: promoting business or concealing geopolitical ambitions?

Abstract

The main purpose of this paper is to explore the objectives and possible consequences of the Chinese investments in Portugal in the last decade. Are they business as usual in a globalized economy, or something else inside a broad political strategy? Trying to answer this question, the approach will be made both through the lens economic diplomacy and the geopolitical analysis. The research will be developed throughout several points: firstly, the Chinese model of socialist market economy within a global environment configured by liberal ideas; secondly, the main characteristics of China’s economic diplomacy model, one where the economic and the political are closely intertwined; thirdly, a focus on the economic attractiveness that China exerts upon Portugal, having the investment in the Portuguese energy sector as a case in point; and finally, some conclusions about the possible consequences for Portugal economic and strategic dependence on China in a world where the USA–China rivalry is growing.

Keywords

China Portugal Economic diplomacy Globalization Foreign direct investment Geopolitics 

Cite this article as:

Fernandes, José Pedro Teixeira, International Politics, nº 5818–36 (2021). https://doi.org/10.1057/s41311-020-00218-8

O comércio internacional como competição pela supremacia mundial

A actual competição sino-americana pode ser vista sob o prisma da teoria dos jogos, sendo, nessa óptica, um apaixonante jogo estratégico de soma zero. Mas no mundo real os riscos são sérios.

1. No mundo actual, a rivalidade entre os EUA e a China lembra-nos, de forma crítica, o papel que o comércio internacional tem na competição entre grandes potências. Teoricamente, num mundo sem fronteiras e sem comunidades políticas organizadas em Estados soberanos — ou seja, não dividido segundo o que usualmente se chamam as economias nacionais —, seria indiferente, ou pouco relevante, o local onde os bens são produzidos ou consumidos. Nesse mundo, onde os indivíduos seriam totalmente cosmopolitas, em termos de economia política apenas interessaria a análise da produção mundial, ou global, do mercado global, dos consumidores dispersos um pouco por todo o planeta e da taxa de emprego (e de desemprego) global. O resto seriam resquícios das velhas lógicas económicas nacionais do passado, ou especificidades, locais ou regionais. 

2. A metáfora da “aldeia global” (Marshall McLuhan) é poderosa. Capta múltiplas facetas do mundo actual onde as distâncias se encurtaram extraordinariamente. Todavia, quando aplicada à economia e ao comércio internacional, fornece-nos, na melhor das hipóteses, uma visão parcial do mundo do século XXI. Mesmo na União Europeia, onde a integração económica e política é a mais avançada do mundo — e se criou uma espécie de “aldeia global” à escala europeia —, é ilusório pensar-se que a produção nacional, o emprego nacional, ou o crescimento do produto nacional bruto (PNB) e das exportações e importações perderam importância num grande mercado único com uma moeda comum (e que aquilo que conta é fundamentalmente o todo europeu). A crise da Zona Euro e as suas sequelas sobre os Estados-membros mostraram isso de forma cruel. Nenhum governo — sobretudo se tiver de responder democraticamente perante o eleitorado — se consegue esquivar à questão do bem-estar económico da comunidade política que governa. Nenhum governo sobrevive invocando o bem-estar cosmopolita da “aldeia global”, ou do conjunto da União Europeia, se os efeitos benéficos não forem sentidos pelos seus próprios cidadãos-eleitores.

3. O comércio internacional tem uma inevitável dimensão de competição estratégica entre comunidades políticas estaduais (as economias nacionais). Numa visão económica pura — possível na investigação teórica, mas desfasada da realidade pela dificuldade extrema de traduzir a complexidade do mundo real em modelos testáveis —, o comércio internacional desliga-se do político, do poder e dos objectivos dos intervenientes que nele participam, sobretudo quando estes não são nem económicos, nem supostamente racionais. Mas, no mundo real, todos esses aspectos se interligam estando o racional e o emotivo — ou até o irracional — sempre presentes e a condicionar os resultados finais. No mundo, é possível observar períodos onde o comércio internacional, visto como uma competição estratégica entre unidades políticas soberanas, se esbateu (mas nunca desapareceu), de outros períodos onde essa lógica (re)surgiu em força. Nos primórdios da actual globalização, a ideia de uma teoria estratégica do comércio internacional tinha vários proponentes de maior ou menor envergadura. Paul Krugman foi um proponente maior, apesar de, posteriormente, se ter distanciado de tal visão sobre o comércio internacional (ver “Strategic Trade Policy and the new International Economics”/“A Teoria Estratégica do Comércio Internacional e a nova Economia Internacional”, MIT Press, 1986).  Mas como na época fez notar um outro importante economista, Avinash Dixit, da Universidade de Princeton — num texto inserido nessa mesma publicação de Paul Krugman —, as investigações teóricas e empíricas da teoria estratégica agradavam aos defensores do protecionismo e (neo)mercantilismo. Estes procuravam apropriar-se dos seus resultados para dar um novo ímpeto aos argumentos (neo)mercantilistas e influenciar a política comercial. Hoje, é a discussão sobre as vantagens em dominar a inteligência artificial, ou a tecnologia 5G nas redes de comunicações móveis, o que faz lembrar a teoria estratégica do comércio internacional de Paul Krugman e as discussões dos anos 1980.

4. Para além da Economia, e dos desenvolvimentos da teoria estratégica do comércio internacional anteriormente referidos, uma outra análise surgiu ligada à chamada Geoeconomia. Esta nova área do conhecimento, ainda que contestada na sua solidez teórica e rigor conceptual, tem dois proponentes maiores: nos EUA Edward Luttwak (ver “From Geopolitics to Geo-Economics: Logic of Conflict, Grammar of Commerce/“Da Geopolítica à Geoeconomia…” in The National Interest, n.º 20, 1990, pp. 17-23); e, em França, Pascal Lorot (ver “De la géopolitique à la géoéconomie: La géoéconomie, nouvelle grammaire des rivalités internationales” in Géoéconomie/Revue française de Géoéconomie, 1997, pp. 110-122). A Geoeconomia procura interligar a Economia Internacional com uma abordagem espacial/geográfica, centrando-se na competição entre entidades políticas (Estados), ou grandes áreas de integração económica (União Europeia, Mercosul, ASEAN –​ Associação de Nações do Sudeste Asiático, etc.). Assume que nessa competição há objectivos de dominar segmentos do mercado mundial ligados à produção ou comercialização de certos produtos e de adquirir e controlar tecnologias de ponta, fundamentais para uma economia avançada e o poder militar. Procura identificar as medidas usadas — implementadas de forma aberta ou dissimulada —, com o intuito de dar vantagem à economia nacional ou de um espaço económico integrado, protegendo empresas e sectores vistos como estratégicos.

5. A tensão entre o livre comércio global e os objectivos dos Estados, ou dos espaços económicos integrados, é de natureza estrutural na economia política internacional. Como já notado, só num mundo ideal, totalmente cosmopolita, tais tensões não existiriam. Há uma década, a já aqui referida crise internacional desencadeada pela falência do banco Lehman Brothers nos EUA originou ondas de choque, financeiras, económicas e sociais. Crises dessa dimensão geram profundos efeitos sociais negativos, prolongados no tempo. Fazem reemergir os argumentos a favor do proteccionismo ou de um (neo)mercantilismo. Nesse contexto, as pressões sociais e de certos sectores económicos tendem também a aumentar, reclamando uma intervenção governamental protectora e/ou dirigista da economia. Mas fora de um contexto de crise financeira e económica grave, o que é um dado novo no pós-II Guerra Mundial é as duas maiores potências económico-comerciais — os EUA e a China —, ambas verem o comércio como uma competição estratégica crucial, a qual é instrumental na sua luta pela supremacia mundial. Uma lógica desse tipo só nos anos 1920 e 1930 e foi de má memória para o mundo.

6. Nem EUA, nem China, olham para o comércio internacional como uma troca de bens e serviços onde todos podem ganhar e aumentar o seu bem-estar, sem ser à custa do outro. Isso coloca um problema sério ao sistema comercial multilateral, tal como está instituído actualmente sob as regras da Organização Mundial do Comércio. O actual sistema comercial reflecte o pensamento económico clássico de Adam Smith e David Ricardo, bem como dos continuadores modernos, de Paul Samuelson a Jagdish Bhagwati.  Para alguns, a actual competição sino-americana no comércio internacional pode ser vista sob o prisma da teoria dos jogos, sendo, nessa óptica, um apaixonante jogo estratégico de soma zero. É uma forma de competição do tipo “tudo ou nada”, onde o que um ganha o outro perde. Mas no mundo real os riscos são sérios. Para além de os EUA e a China poderem perder ambos bem-estar económico, se a competição espicaçar, ainda mais, as rivalidades político-militares já existentes, as consequências serão nefastas para o mundo na sua globalidade. Assim, vamos esperar que os próximos tempos tragam uma trégua na guerra comercial em curso (ver “A mini-truce between America and China has investors feeling hopeful” in The Economist, 12/10/2019), que a aproximação de eleições presidenciais nos EUA poderá facilitar. Todavia, é ilusório pensar no seu fim: a competição e rivalidade sino-americana desenham-se, cada vez mais, como uma componente estrutural do mundo do século XXI. 

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado sob o título ‘EUA vs China: o comércio internacional como competição pela supremacia mundial’ no Público, 9/11/2019

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