A vingança da Rússia

Mapa satírico da Europa, 1899

1. Não há qualquer dúvida que estamos a assistir a uma vingança da Rússia. Há uma vontade de reverter aquilo que para muitos russos foram sucessivas humilhações vindas do Ocidente, aproveitando-se da sua vulnerabilidade após o final da Guerra-Fria. Não é um acaso surgir nesta altura. Estamos num mundo muito diferente daquele que marcou a última década do século XX, onde a hiperpotência norte-americana, na expressão do Ministro dos Negócios Estrangeiros francês da época, Hubert Védrine, não tinha rival à altura. Hoje a Rússia, tal como a China, percepciona os EUA numa trajectória de declínio de poder. Vê assim oportunidades para reconfigurar o mundo exterior à sua própria maneira, especialmente na área geopolítica envolvente que considera crítica para a sua segurança

2. Na crise da Ucrânia, a questão do alargamento da NATO tem estado no centro das discussões. É, todavia, necessário ir além desse aspecto para contextualizar o problema.  A crise da Ucrânia insere-se no ressurgir, em força, de uma contestação com múltiplas origens aos princípios que o Ocidente vê como bons para si e para a generalidade do mundo: democracia liberal, Estado de direito, direitos humanos, direitos das minorias, economia de mercado e globalização económica, comercial e tecnológica impregnada de valores ocidentais. É necessário, todavia, ter um aspecto bem claro. Embora a linguagem ocidental seja normativa e imbuída de valores, há um dimensão geopolítica e de poder que lhe está subjacente. Para o Ocidente, estes princípios, que são seus, têm uma vantagem (muito grande) de poder: aumentam automaticamente a sua influência geopolítica no mundo e trazem-lhe ganhos materiais. Podemos não (querer) ver isso, mas outros vêem. 

3. Vale a pena lembrar novamente aqui, pela sua lucidez analítica, o discurso de Hubert Védrine, proferido a 3 de Novembro de 1999, onde este falava na hiperpotência norte-americana. Nesse discurso, interrogava-se sobre como o Ocidente se via a na altura, respondendo assim: “Primeiro como um vencedor. Vencedor da história — daí a tentação de proclamar seu fim — vencedor da União Soviética depois de ter vencido o nazismo e o fascismo, segundo uma visão linear em duas etapas 1945, 1989-91. Depois, como expressão do universal. A da economia globalizada pelas tecnologias, a dos homens unificados pela simultaneidade das imagens, a dos valores acima de tudo, partindo dos valores básicos, democracia e economia de mercado, e desmembrando-os em liberdades individuais, liberdades económicas, Estado de direito, eleições livres, meios de comunicação livres, juízes independentes, perfeito respeito pelos direitos humanos, etc… Tal programa deveria ser unânime. E, no entanto, as contestações são muitas”.  Nessa sua reflexão, Hubert Védrine tinha como pano de fundo as guerras da Jugoslávia, em particular a intervenção da NATO no Kosovo. Mas quando vemos agora a Rússia reconhecer a independência das repúblicas separatistas pró-russas de Donetsk e Lugansk, impondo a sua vontade pela força e enterrando os acordos de Minsk de 2015,  fica a sensação de o passado reemergir como um fantasma. 

4. Na época em Hubert Védrine escreveu, apesar das polémicas, prevaleceu no Ocidente a defesa dos direitos humanos e dos direitos das minorias. A intervenção (ou ingerência) humanitária, que envolveu operações militares de maior ou menor envergadura, foi vista como justificada mesmo contra a soberania do Estado. Rever as fronteiras saídas da II Guerra Mundial foi considerado aceitável em nome desse princípio. As teses da segurança humana de valor superior ao do Estado, davam-lhe uma aura de inovadora legitimidade. Todavia, abriu-se um precedente de que hoje estamos a ver as sequelas difusas: esses princípios não estavam, nem estão, inscritos na Carta das Nações Unidas. A intervenção da NATO Kosovo em 1999 no Kosovo foi feita sem resolução prévia do Conselho de Segurança, nem enquadramento na legalidade internacional resultante do dispositivo Carta das Nações Unidas. Assim, o que decidiu a questão não foram os princípios e valores em si mesmos — por muito que sejam enaltecidos e louváveis —, mas o poder militar do Ocidente. Essa forma de actuar criou múltiplos ressentimentos, desde logo na Rússia. 

5.  A questão complica-se,  ainda mais, pelo facto de a Rússia ser um Estado-império (tal como a China e os EUA, estes últimos uma república imperial na qualificação de Raymond Aron) que já teve várias versões nos últimos séculos: Rússia dos czares, União Soviética e agora Federação Russa. Em todas elas sempre houve um dilema fundamental que os ocidentais subestimam: os momentos de revolução e de ruptura política são, em simultâneo, momentos de desagregação do Estado. É suficiente recordar o que aconteceu após a revolução bolchevique de Outubro de 1917 e paz de Brest-Litovsk (tratado assinado na actual Bielorrússia) de inícios de 1918, que levou à saída da I Guerra Mundial; e também o que aconteceu a seguir ao final da Guerra-Fria em 1989 e à dissolução da União Soviética em 1991: quando fraqueja o poder central, o Estado russo começa a desagregar-se, com múltiplos territórios a fugirem, como a Ucrânia tentou fazer nessa altura. Note-se que este dilema não existe em geral no Ocidente. A França passou pela revolução de 1789 — que trouxe uma profunda transformação política — sem nunca estar em causa a desagregação do Estado francês.  Neste sentido a Rússia é necessariamente um Estado excepcional e diferente do Ocidente. A democracia liberal — tal como, por exemplo, a União Europeia a entende — implicaria aceitar a possibilidade de desagregação do Estado russo em componentes políticas mais pequenas, dada a sua diversidade de Estado-império com múltiplos povos e minorias.  Nenhum político terá futuro na Rússia a defender tais ideias.

6. Vladimir Putin é hoje uma espécie de Némesis do Ocidente. Alimenta, por conveniência política e estratégica, todos os estereótipos negativos que estão enraizados na população russa sobre o Ocidente liberal (desde o seu materialismo até à decadência dos valores pós-modernos, passando pelo aproveitamento brutal das fraquezas russas). Promete uma Rússia forte que não abdica dos seus direitos históricos e de grande potência. Para um Estado-império orgulhoso do seu passado, habituado a ter que lidar com muitos inimigos nas suas vastíssimas fronteiras, este discurso — que choca no Ocidente habituado à retórica normativa e dos valores e não à linguagem crua da geopolítica —, tem um caráter de (quase) naturalidade. A Rússia é demasiado orgulhosa para querer ser uma cópia das democracias ocidentais liberais, modelo que muitos russos acham ser utilizado contra si para a desagregar. Desconfia profundamente das boas razões universalistas dos ocidentais associadas à democracia liberal direitos humanos, vendo-os uma forma dissimulada de Ocidente expandir os seus interesses geopolíticos e materiais. Há, por isso, um conflito profundo de valores e  uma enormíssima desconfiança instalada.

7. A Ucrânia, pela sua importância história, económica e geopolítica para Rússia, tornou-se num perigoso terreno de confrontação com o Ocidente. Hoje a Rússia sente-se suficientemente forte para colocar em causa (em parte) o realinhamento do final da Guerra-Fria. Na sua óptica, faz apenas o mesmo que os EUA / NATO fizeram na antiga Jugoslávia e noutras partes do mundo (e por isso tem o direito de o fazer): tenta legitimar a sua intervenção invocando a protecção das minorias russas agredidas nos territórios de Donbass e a necessidade de uma operação humanitária. Trata-se quase de mimetizar — dirão os mais críticos de forma absurda e caricatural — os argumentos de anteriores intervenções do Ocidente / NATO.  O resultado, é que qualquer concessão por pequena que seja, parece inaceitável e uma humilhação. Do lado ocidental, reemergiu o espectro de se fazerem acordos com Vladimir Putin que tragam “paz para o nosso tempo”, como fez o Primeiro-Ministro britânico em 1938, Neville Chamberlain, com Adolf Hitler e a Alemanha nazi  (e que não evitou a guerra). A ironia de tudo isto é que do lado russo os nazis são os nacionalistas ucranianos. A Rússia aponta-lhes o dedo e denigre-os por terem colaborado com a Alemanha durante a II Guerra Mundial. Acabar com este círculo vicioso que pode mesmo levar a uma guerra é a maior tarefa da diplomacia para os próximo tempos.

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Público, 22/02/2022

© Imagem: Wikimedia Commons / Realpolitik

Política Internacional e Geopolítica — a reconfiguração do mundo do século XXI (2021-2022)

Political World Map – Wikimedia Commons

Duração: 1 ano lectivo

Horário: 2h / semana 

Início: Outubro de 2021

O objectivo do curso é passar em revista e analisar alguns dos problemas políticos fundamentais do mundo contemporâneo, procurando perceber as suas potenciais implicações. Ao mesmo tempo, são também abordadas as principais linhas de conflito geopolítico a nível mundial sob diferentes perspectivas analíticas. Os tópicos a seguir apresentados são indicativos das linhas programáticas a desenvolver durante as sessões da unidade cultural ao longo do ano lectivo.

Parte I – Política Internacional

  1. Globalização e desglobalização
  2. Nações Unidas e governação global
  3. União Europeia e Europa no mundo
  4. Demografia e migrações
  5. Economia política internacional
  6. Casos de actualidade política internacional

Parte II – Geopolítica 

  1. A geopolítica da competição pela hegemonia global
  2. A geopolítica das esferas de influência regionais
  3. A geopolítica dos conflitos territoriais
  4. A geopolítica dos recursos naturais
  5. A geopolítica dos conflitos identitários 
  6. Casos de estudo de conflitos geopolíticos

The Irish Question: from partition to reunification?

Map of Ireland

The outcomes of the referendum which led to Brexit are not yet exhausted as the UK exits from the EU. A century after the Ireland’s War of Independence, it is not impossible that the reunification of the island will ensue, although it is still divided by politics and religion.

1. Even after nearly five years, we cannot yet to make out clearly all of the implications of the referendum held in 2016 which led to the exit of the UK from the EU. We know the terms under which the two sides will relate in future, since they were agreed last December in The Commercial and Cooperation Agreement, but the reach of Brexit in its multiple facets will become apparent only with time. In Britain’s internal politics, Northern Ireland (and equally Scotland) is one of the points at which the chain of events could have strong repercussions. Today’s Irish question presents a curious parallel with that of a century ago, when Ireland emerged from the British Empire. The Dublin Easter Rising of 1916 preceded the Irish War of Independence, which broke out in 1919, during the administration of David Lloyd George, and continued until the end of 1921.

2. 1920 and 1921 were crucial years in the partition of Ireland. Northern Ireland remained in the United Kingdom with 13 500 km2 of territory and 1.8m inhabitants, mostly Unionists and Protestant. The area was also called Ulster, one of the four historic provinces of Ireland. The independent Republic of Ireland covers 70 000km2 and has 5m inhabitants, 80% of whom are Catholic. The Irish question should be understood in the context of the religious and political struggles in the British Isles, of modern nationalism and of a British Constitutional model with diverse territorial and national components (England, Wales, Scotland and Northern Ireland). In 1920, the British Parliament approved the Government of Ireland Act, which set up two governments on the island, with delegated but limited powers. The one in Dublin with authority over the South was rejected by the nationalists and their principal armed group, the Irish Republican Army (IRA); the other in Belfast had authority over the six counties of the North (Londonderry / Derry, Tyrone, Fermanagh, Armagh, Antrim, Down) and was implemented by the mainly Unionist population.

3. The Anglo-Irish Treaty of 6 December, 1921, negotiated by the Lloyd George administration, formed the basis of the Irish Free State, which had a constitutional status similar to that of Canada and the other territories of the Commonwealth. The Treaty came into force on 6 December, 1922, and it had the effect of dividing the Irish nationalists and this division led to the Civil War (1922 – 1923). Michael Collins, the first President of the Provisional Government of the Irish Free State was soon assassinated. After WW2, the Fine Gael government of John A. Costello passed the Republic of Ireland Act, which came into force the following year and Ireland broke away from the Commonwealth. Later, for thirty years, Northern Ireland was the scene of nationalist and sectarian violence, which was brought to an end only with the Belfast Accord (the Good Friday Agreement) in 1998.

4. It will be a profound historical irony if the Brexit referendum, with its slogan of Take Back Control and its aim for the British Parliament to reassume sovereignty over the UK from the European Union, leads to the loss of British sovereignty over Northern Ireland. The idea of a united and independent Ireland did not die in 1921, and it has always been the aspiration of Irish nationalists in Ulster and in the Republic. Mary Lou McDonald, the current leader of Sinn Féin (the party with the highest popular vote in the Republic) expects that the island of Ireland will be united by the end of this decade. Only time will show whether hers is a realistic vision, but the intention to exploit the opportunity presented by Brexit is clear. In its future relations with the EU, Northern Ireland will be the British exception, as it aligns with the customs union of the united Europe and not with that of the United Kingdom. And so we shall see if Boris Johnson will be remembered in history as the man who reclaimed sovereignty over the United Kingdom, or the politician who lost Northern Ireland (and/or Scotland).

© José Pedro Teixeira Fernandes, tradução para língua inglesa do artigo originalmente publicado na revista JN História nº 30 (2021)

© Imagem: Wikimedia Commons / Realpolitik