O Futuro Incerto dos Acordos de Livre Comércio: o caso da Parceria Transatlântica (TTIP)

 

 

«Introdução

A ideia de uma Parceria Transatlântica para o Comércio e o Investimento (Transatlantic Trade and Investment Partnership — TTIP), entre a União Europeia e os EUA, lançada oficialmente em 2013, gerou grandes expectativas. A crise financeira e económica iniciada em 2007 / 2008 afectou seriamente o crescimento das economias europeias e norte-americana. As negociações do comércio mundial, em curso desde 2001 no âmbito da ronda de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC), estavam num impasse. Nesse contexto, a TTIP arrancou com uma agenda negocial ambiciosa. Tradicionalmente, os acordos de comércio livre tinham um objecto limitado e bem definido: reduzir, ou eliminar, direitos aduaneiros sobre mercadorias e contingentes. Mas as negociações tornaram-se bem mais abrangentes, seguindo uma linha iniciada nos anos 1970, no Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio (General Agreement on Tariffs and Trade — GATT), o antecessor da actual OMC. Passaram a incluir, por exemplo, as chamadas barreiras não aduaneiras / entraves não pautais ao comércio, os serviços, os produtos agrícolas, os direitos de propriedade intelectual relacionados com o comércio (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights — TRIPS).  Se este alargamento tem os seus méritos, ao mesmo tempo dificulta a conclusão de acordos de comércio, pela complexidade e abrangência das matérias. Vejamos o caso da TTIP.

  1. Um ambicioso projecto de comércio livre e investimento

As negociações da TTIP foram configuradas em três grandes áreas / capítulos negociais[1]: (i) o capitulo do acesso ao mercado (Market access), no qual estão inseridos os direitos aduaneiros, os serviços, as denominações de origem, mas também o acesso ao mercado do sector público, ou seja os concursos públicos; (ii) o capítulo da cooperação na regulação (Regulatory cooperation), o qual abrange, entre outros, os veículos automóveis, os pesticidas, os cosméticos, os produtos químicos e a segurança alimentar; (iii) o capítulo das normas e legislação (Rules), onde estão incluídas as questões ambientais / desenvolvimento sustentável, a energia e as matérias-primas, os direitos de propriedade intelectual, a política de concorrência, e, ainda, um mecanismo de resolução de disputas entre Estados e investidores estrangeiros. Para Cecilia Malmström, a responsável pelo comércio internacional Comissão Europeia, trata-se do acordo comercial mais ambicioso de sempre e de uma oportunidade única para tornar os padrões do comércio internacional mais exigentes. Ao mesmo tempo, a Comissão Europeia apontou para cenários com múltiplas vantagens decorrentes desse acordo, entre as quais as seguintes: aumento do Produto Interno Bruto (PIB) no conjunto europeu; ganhos para as empresas na exportação e facilidades de investimento no mercado dos EUA; criação significativa de novos empregos e aumento do rendimento das famílias. Resumidamente, a economia da União poderia crescer “119 mil milhões de Euros por ano, o equivalente a cerca de 500 Euros para uma família média. A TTIP poderia ser vista como uma espécie de pacote de crescimento sem o uso de dinheiro dos contribuintes.”[2]

  1. A Parceria Transatlântica e os seus críticos

Desde o início, a visão muito favorável da Comissão Europeia contrastou com as críticas oriundas de diversos quadrantes sociais e políticos, especialmente de Organizações não Governamentais (ONG). Para os críticos, as negociações foram conduzidas sem uma adequada transparência e a TTIP teria essencialmente efeitos negativos: menos protecção ambiental; menos liberdade na Internet; menos soberania alimentar; mais desregulação financeira; e, pior ainda, vantagens ilegítimas dos investidores internacionais, sobretudo empresas multinacionais, sobre os Estados e cidadãos em geral[3]. Parte das críticas pode ser explicada pela abrangente agenda das matérias incluídas nas negociações. A consequência é que estas ficam submetidas à lógica do comércio internacional, o que está longe de ser consensual.  Como já referido, há matérias que vão muito além do núcleo duro do comércio internacional, ou seja, dos direitos aduaneiros e aspectos afins. Podem, por isso, colidir com outras opções políticas de uma sociedade. Apenas um exemplo. As diferenças de normas técnicas e de legislação entre os EUA e a União Europeia, em matéria de ambiente, protecção dos consumidores, etc., são vistas como barreiras ao comércio na agenda negocial da Parceria Transatlântica. É verdade que podem funcionar como barreiras ao comércio internacional e dificultar o acesso ao mercado. Mas as diferenças de regulamentação e legislação também podem, legitimamente, ser vistas sob outros ângulos.  […]»

[1] Ver European Union, Inside TTIP. An overview and chapter-by-chapter guide in plain English,  Publications Office of the European Union, 2015 http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2015/july/tradoc_153635.pdf  [Acedido a 20/2/2017].

[2] Ver European Commission, The Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP). TTIP explained, 19 de Março, Acessível em http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2014/may/tradoc_152462.pdf [Acedido a 20/2/2017].

[3] Ver Plataforma [“STOP TTIP!”], Manifesto contra os tratados de livre comércio TTIP, CETA, TISA, Acessível em https://www.nao-ao-ttip.pt/manifesto/ [Acedido a 20/02/2017].

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, excerto do artigo originalmente publicado nos Cadernos de Economia (Revista da Ordem dos Economistas), Nº118, 2017, pp. 21-25.

© Imagem: capa do Livro de Jagdish Bhagwati,  “Protectionism” (The MIT Press, 1989).

A inutilidade do G20

1. Para os globalistas e outros entusiastas da governação global as cimeiras do G20 são uma espécie de clímax apoteótico. Um ambiente de excitação mediática normalmente acompanha a sua realização. Contribui para criar a ideia de que se vão tomar decisões importantes para o futuro da humanidade, numa base cooperativa e de espírito universalista entre os líderes mundiais. A realidade é outra, muito mais trivial, e, em certos aspectos, até bastante perversa face a uma genuína e democrática governação global: o G20 contribui para erodir os poderes e competências das organizações verdadeiramente globais como a Organização das Nações Unidas (ONU), onde todos os Estados do mundo têm assento. É fundamentalmente uma versão pós-moderna dos directórios de potências usuais no século XIX, na época um restrito clube europeu, hoje mais alargado. (Apesar de tudo, os tempos são outros e a Europa / Ocidente estão em retrocesso.) Na prática, pretende impor-se aos restantes 173 Estados do mundo que são membros da ONU — talvez estes devessem formar um G173 (ou um G150, se consideramos que a União Europeia está representada também.) Tal como outras associações, formais ou informais, de potências do passado, assenta numa lógica de poder, seja ele económico, político ou militar. O facto de ter mais membros do que o G7 — ou de ter Estados que, no seu conjunto, serão 2/3 da população mundial e 80% do comércio mundial — não altera a sua lógica fundamental: continua a ser um directório de potências que se nomeou a si próprio.

2. O globalista incauto imagina o G20 como o fórum no qual, para além dos problemas económicos e financeiros globais, assuntos de grande importância para a humanidade e elevado valor moral, vão ter, ou deviam ter, uma solução: problemas ambientais, crise dos refugiados, comércio livre e justo, etc. Na realidade, pouco ou nada disso acontece, mesmo no terreno económico e financeiro, que está na sua origem. Em 2008, após o desencadear da crise financeira nos EUA, a Cimeira de Washington do G20 em finais do ano, era apresentada como um “novo Bretton Woods” (por referência à conferência que decorreu em 1944 nos EUA, para arquitectar a ordem económico-financeira-comercial do pós-guerra). Uma declaração final conjunta de um comprometimento com a estabilidade dos mercados financeiros e economia mundial — suficientemente genérica para todos saírem satisfeitos —, deixou muita gente convencida que se tinha feito história: um “novo Bretton Woods” estaria em marcha. Claro que nada disso aconteceu. (O que tivemos, depois disso, foi até uma grave crise da Zona Euro e uma continuada crise financeira e económica internacional.) Não aconteceu nenhum “Bretton Woods”, dada a complexidade do assunto, a divergência de interesses para além dos aspectos de superficialidade, e a morosidade da implementação de um novo sistema digno desse nome.

3. Nesta cimeira de Hamburgo, ocorreu algo similar. Na realidade, o acordo mais palpável e importante foi bilateral e paralelo à reunião do G20 (podia ter ocorrido noutro local qualquer onde Donald Trump e Vladimir Putin se encontrassem): o entendimento entre os EUA e a Rússia num cessar-fogo em partes da Síria. No que diz respeito às questões ambientais — um assunto inquestionavelmente importante e uma espécie de tema “cartaz” deste G20 —, a declaração final refere que foi “tomada nota da decisão dos EUA se retirarem do Acordo de Paris” (algo que já se sabia oficialmente muito antes desta cimeira). Ao mesmo tempo, é também referido que “os líderes dos outros membros do G20 afirmam que o Acordo de Paris é irreversível”. Acrescenta-se ainda nessa declaração existir um “forte compromisso” com este acordo, “avançando rapidamente para a sua plena implementação, segundo o princípio de responsabilidades comuns e diferenciadas e respectivas capacidades.” Soa bem, mas é vago. Veremos em que se vai traduzir na prática o compromisso. Há inúmeros aspectos operacionais em aberto do qual depende a sua concretização efectiva, desde os encargos financeiros até verificação do cumprimento das metas com que muitos dizem se comprometer. Para já, são declarações de intenções abstractas, subscritas num aparente consenso do qual apenas Donald Trump se auto-excluiu. Mas não nos iludamos: para muitos é ideia é ser um compromisso a custo zero, ou usá-lo para obter ganhos noutros assuntos que tocam o seu interesse nacional.

4. Aqueles que depositam grandes esperanças no G20 convém que olhem melhor para a composição dos líderes mundiais que habitualmente participam nestas cimeiras, para não se auto-iludirem. Não precisamos de grande imaginação para ter uma ideia do que Vladimir Putin (Rússia), Recep Tayyip Erdogan (Turquia), Xi Jinping (China), Mohammed Al-Jadaan (Arábia Saudita, em representação do rei Salman bin Abdulaziz, que não se deslocou a esta cimeira de Hamburgo), entre outros, pensam mesmo dos ideais de uma governação global democrática, dos direitos humanos, dos refugiados e dos problemas ambientais. Que os globalistas ocidentais tão ansiosamente esperem soluções de um G20 com esta composição é algo que diz muito da superficialidade, ou ingenuidade, com que olham para a política internacional. Claro que com Donald Trump na presidência dos EUA, mesmo as inconsequentes declarações de intenções, habituais das cimeiras do G20, são hoje mais difíceis em assuntos como o ambiente, os refugiados, ou até o comércio internacional. Quando são possíveis, são deliberadamente feitas sem compromissos controláveis, como no caso das questões ambientais — podemos ver aqui uma hábil diplomacia, ou cinismo político. Não é surpreendente: é um heterogéneo directório de realpolitik, entendida como sempre foi no passado. Há uma primazia pragmática dos interesses sobre os ideais e os valores morais. A diferença fundamental é que no mundo actual raramente alguém assume isso abertamente, como acontecia no século XIX. O cinismo político é hoje bem mais sofisticado e sabe adaptar-se à sociedade da imagem.

5. As cimeiras do G20 permitem à sensibilidade globalista actual ter o seu fórum e discutir problemas comuns da humanidade. É algo que soa sempre bem apesar de ser fundamentalmente inconsequente, pelas já apontadas contradições do G20: um directório de potências com interesses díspares. Mas há um aspecto onde não são inúteis: permitem alimentar o mundo mediático que vivemos. Aí atingem a plenitude do que se pode ambicionar de um bom espectáculo. Angela Merkel, que vai disputar eleições legislativas na Alemanha, queria um palco internacional (e interno) para si, talvez convencida que podia ocupar o lugar deixado vago por Donald Trump na liderança do mundo ocidental. Mas a ideia de convocar uma cimeira para a cidade de Hamburgo — não numa estância isolada nas montanhas, ou numa afastada ilha, como habitualmente fazem estes clubes exclusivistas das elites —, deu o palco aos manifestantes anticapitalismo e antiglobalização. O mundo já quase se tinha esquecido que eles existiam. Provavelmente, desde a falhada ronda do milénio da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Seattle, nos EUA, em 1999, que não se assistia a uma tão empenhada batalha campal, entre estes e a polícia nas ruas. É sempre bom ver gente disposta a defender as suas convicções com ardor. Para além do palco para os manifestantes antiglobalização, estas cimeiras preenchem o ego de muitos políticos, e não é apenas o caso de Donald Trump. Afinal, vivemos num mundo global e de imagem. Emmanuel Macron, o recém-eleito presidente francês, é um caso curioso desta ambição. Como estreante, não quis passar despercebido. Na foto de grupo, afastou-se do lugar que lhe estava reservado no protocolo, para se colocar bem visível ao lado do Presidente dos EUA: fait-divers ou realpolitik a la française?

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Público, 11/07/2017

© Imagem: Mapa dos países que integram o G20 (retirado do site oficial do G20)

O Acordo de Paris na teia da política internacional

Pobre planeta preso nesta teia infindável de interesses humanos.

1.     As questões ambientais são um problema da humanidade e do futuro comum do planeta. Infelizmente, estão presas na complexa teia de interesses da política internacional. Precisávamos de outras formas políticas mais adaptadas ao mundo globalizado de hoje. Mas não as temos. Não há um governo da globalidade com poder e legitimidade para  gerir as questões globais em nome de todos, nem no ambiente, nem noutras áreas da vida humana. As Nações Unidas são o que mais vagamente se aproxima disso, mas sem meios e poderes efectivos. Inevitavelmente, a decisão passa por actores políticos nacionais. Para complicar o assunto, os acordos ambientais têm repercussões na economia e no emprego. A consequência é que ficam no centro da competição político-estratégica pela supremacia mundial em curso.

2.     Para quem se lembra ainda do que aconteceu com o Protocolo de Quioto nos anos 1990 / 2000 a situação é demasiado familiar. A centralidade económica e política dos EUA tornavam-nos uma parte fundamental desse acordo ambiental. Também na altura, a União Europeia estava profundamente empenhada na sua implementação. Tal como agora com Donald Trump, o governo de George W. Bush recusou a ratificação. (Bill Clinton tinha assinado o Protocolo de Quito à semelhança do que Barack Obama fez com o Acordo de Paris.) O argumento para a recusa de ratificação do Protocolo de Quioto foi fundamentalmente económico e estratégico: trazia encargos excessivos para a economia dos EUA, sobretudo quando comparada com rivais em  ascensão como a China. Similar argumento reapareceu — agora ligado às promessas da campanha eleitoral e do relançamento da economia e do emprego nos Estados em declínio industrial do Rust Belt —, como motivo de abandono do Acordo de Paris.

3.     O Protocolo de Quioto esteve preso, durante vários anos, num jogo político-estratégico nada apreciável do ponto de vista ético, nem do interesse comum da humanidade. Vale a pena relembrar mais alguns aspectos do que aconteceu. Como já referido, para os EUA, o facto de a China, a Índia e outras potências emergentes não terem de assumir compromisso concretos e verificáveis na redução efectiva das emissões de CO2, era inaceitável. Mas a recusa de George W. Bush em ratificar deu trunfos à Rússia de Vladimir Putin. Ficou com o poder de colocar o Protocolo de Quioto em vigor, caso o ratificasse. É de notar que a Rússia herdou a quota de emissões de CO2 da antiga União Soviética. Por isso não, tinha, na prática, qualquer dificuldade em cumprir a sua quota, nem nenhum problema económico e de emprego interno. Podia tê-lo ratificado logo. Não o fez. Atrasou deliberadamente a ratificação para obter concessões da União Europeia, a parte mais empenhada no mesmo. O caso é útil para compreendermos como os acordos ambientais têm sido usados pelos diferentes actores da política internacional em seu favor. Infelizmente, uma lição válida para percebermos o jogo político-estratégico hoje à volta do Acordo de Paris.

4.     A China  está a tentar ganhar crescente terreno aos EUA na disputa pela supremacia mundial. Procura tirar proveito dos passos em falso de Donald Trump e explorar o mal-estar instalado nas relações euro-atlânticas. Já vimos isso no início do ano no Fórum Económico Mundial de 2017. Face à preocupação internacional levantada pelo discurso nacionalista económico e a tentação proteccionista dos EUA, Xi Jinping,  o  Presidente chinês, procurou posicionar-se como líder da globalização. A China  seria agora o grande defensor dos mercados abertos e de uma globalização responsável e equilibrada. A intenção de Donald Trump sair do Acordo de Paris deu nova oportunidade aos chineses. Tal como Vladimir Putin no caso anterior de Quioto (Putin está agora numa pragmática versão don’t worry, be happy, de minimização da decisão de Trump), a China procura tentar tirar vantagens, em termos comerciais e políticos, do empenhamento europeu no cumprimento do Acordo de Paris. Veremos que preço pagará a União Europeia por isso.

5.     Mas não são apenas os Estados que tentam usar os acordos ambientais a seu favor. Os interesses empresariais e a maneira como estes actuam e pressionam o poder político nacional é outra parte fundamental da questão. Um aspecto, à primeira vista surpreendente, foi o facto de várias multinacionais do petróleo saírem em defesa do Acordo de Paris. Podemos ver um maior empenhamento nas questões ambientais, sustentabilidade e responsabilidade social. Sim, mas é parte da história. No plano apresentado pelo governo de Obama, para cumprir as metas do Acordo de Paris, a medida com mais impacto na economia e emprego era a da substituição da produção de energia a partir do carvão, pelo gás natural. As multinacionais do petróleo são hoje empresas diversificadas em todas as áreas da energia. Tinham ganhos em perspectiva devido ao investimento público federal que iria ser feito nessa área. A conversão é interessada. Pobre planeta preso nesta teia infindável de interesses humanos.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, 3/6/2017

domínio público Imagem: Logo da COP21, UN Climate Conference, Paris 2015 (domínio público / Wikipedia)