Refugiados: uma solução para o problema demográfico da Europa?

Exodus. Immigration and Multiculturalism in the 21st Century (2013), de Paul Collier

O livro de Paul Collier deve ser visto como um contributo relevante para (re)pensar, de forma abrangente, o impacto das migrações em massa nas sociedades de acolhimento.

 

1.A Alemanha tem surpreendido os europeus. As suas posições generosas, de abertura de fronteiras, contrastam com as reticências ou entraves colocados por muitos outros Estados da União Europeia. A chanceler alemã, Angela Merkel, afirmou publicamente que espera receber, até ao final deste ano, 800 mil pedidos de asilo. Mais recentemente, o vice-chanceler e líder do SPD, Sigmar Gabriel, referiu, por sua vez, estar convicto que o seu o país teria capacidade para acolher cerca de 500 mil pessoas durante vários anos. Várias explicações têm sido avançadas para esta generosa política de acolhimento. A melhoria da imagem internacional da Alemanha, a qual foi seriamente afectada durante a crise da Zona Euro, é uma das mais referidas. Outra explicação, frequentemente apontada, sugere, mais pragmaticamente, razões económicas e demográficas. Podemos encontrá-la, por exemplo, neste artigo da Euronews, “Alemanha: A necessidade por detrás da solidariedade” (7/09/205), http://pt.euronews.com/2015/09/07/alemanha-a-necessidade-por-detras-da-solidariedade/. Este explica assim as razões do governo alemão: “Por detrás desta onda de solidariedade estão também motivos económicos e demográficos. A primeira economia da Europa, com uma taxa de desemprego de apenas 6,4% e uma população a envelhecer, precisa desta mão-de-obra e vai precisar mais ainda dentro de alguns anos. Os empresários alemães pedem um acesso rápido e simples destas pessoas ao mercado de trabalho. Com 670.000 nascimentos contra 870.000 óbitos por ano, a população alemã tem dificuldade em renovar-se. A taxa de fertilidade é muito baixa, apenas de 1,36 por cada mulher em idade fértil. […] As iniciativas locais para recrutar estrangeiros multiplicam-se. Por enquanto, a lei exige que, antes de se dar emprego a um refugiado ou imigrante, haja uma prova de que nenhum candidato alemão é indicado para aquele posto de trabalho. Uma lei que pode ter os dias contados.” Deixando de lado a questão da imagem, importa reflectir neste último argumento. Como é bem conhecido, não é só a Alemanha que tem um problema demográfico, mas a generalidade da Europa, Portugal incluído. A baixa natalidade tem consequências a vários níveis, desde o mercado de trabalho à sustentabilidade da segurança social. Pode ser esta a solução — ou, pelo menos, ser uma contribuição significativa —, para o problema demográfico, com as suas implicações económicas e de sustentabilidade de um generoso welfare-state, ou seja, do chamado modelo social europeu?

2. Para a discussão desta problemática vamos usar essencialmente o trabalho de Paul Collier, “Exodus — Immigration and Multiculturalism in 21st Century”, Allen Lane, 2013 / Êxodo — Imigração e Multiculturalismo no Século XXI. (Usamos a edição digital em formato epub, pelo que não indicamos as páginas citadas, apenas os capítulos e / ou títulos onde se inserem). O autor é um economista ligado à Universidade de Oxford, que já foi, também, quadro do Banco Mundial. O seu livro tem sido considerado um dos mais relevantes trabalhos publicados nos últimos anos, sobre um tema tão sensível politicamente e do ponto de vista humano. No capítulo 4, dedicado aos aspectos económicos da migração, este começa por abordar a já referida necessidade de mais população jovem para suportar o mercado de trabalho e os sistemas de segurança social. A análise de Paul Collier questiona os fundamentos desta argumentação intuitiva, que parece irrefutável, pelo menos à primeira vista. Importa, por isso, ver melhor quais as bases concretas em que a ideia é questionada. Um primeiro aspecto que este analisa é o do impacto nos benefeciários já existentes das prestações do Estado social. Nas sociedades de acolhimento esse impacto ocorre sobretudo na camada média-baixa e baixa da população. Aqui, Paul Collier faz notar o seguinte: “Potencialmente, o efeito mais importante é que os migrantes que chegam pobres e com famílias, competem com as populações autóctones pobres pela habitação social. Porque tendem a ser mais pobres e a ter famílias maiores que a população autóctone, têm necessidades atipicamente elevadas”. Um segundo aspecto analisado é sobre a relação que se pode estabelecer entre as populações acolhidas e a sustentabilidade demográfica do Estado social. Paul Collier mostra cepticismo quanto facto de poderem ser uma solução fácil para esse problema. Um argumento usual “especialmente na Europa, é a demografia. É a noção de que precisamos da “migração porque estamos a envelhecer.‘ […] No entanto, o simples facto de uma sociedade estar a envelhecer não é necessariamente uma razão para precisar de mais trabalhadores. […] Este sugere que a solução passa, essencialmente, por ligar a idade de reforma ao aumento da esperança média de vida, algo em que os governos europeus têm mostrado incapacidade em fazer. “Dada a inépcia dos governos na fixação da idade da reforma, por que não salvarmo-nos com alguma migração jovem?”, interroga-se. A razão, acrescenta em seguida, é que essa estratégia seria insustentável, pois, um “influxo de migrantes em idade de trabalho, apenas dá à sociedade um alívio fiscal temporário, enquanto que o aumento da esperança de vida é um processo contínuo.”

3. Ainda sobre a relação entre os migrantes, a economia e o Estado social, o problema mais delicado discutido por Paul Collier tem a ver com o impacto global do acolhimento, incluindo o reagrupamento familiar, numa perspectiva de médio e longo prazo. “O argumento demográfico pressupõe que os migrantes reduzam a relação entre dependentes e trabalhadores: sendo jovens, estão na idade da força de trabalho. Assim, equilibram a expansão do número de reformados na população autóctone. Mas os migrantes que trabalham têm também filhos e pais. […]” Até que se ajustem ao padrão das sociedades de acolhimento, “os migrantes de sociedades de baixo rendimento tendem a ter um número desproporcionalmente elevado de filhos”. Como faz notar em seguida, se “trazem os ascendentes e seus dependentes para o país de acolhimento, isso depende, em grande parte, da política de migratória”. Tendo em conta essa possibilidade — ou seja, o reagrupamento familiar —, a experiência existente mostra que “não existe uma presunção de que, ainda que temporariamente, possam reduzir a relação de dependência”. Quer dizer, “os migrantes trazem não só o capital humano gerado nas suas próprias sociedades; trazem também os códigos morais das suas próprias sociedades”, com todas as implicações, positivas, negativas ou neutras que daí resultam. Um outro aspecto relevante da análise de Paul Collier incide sobre a tensão entre os interesses das empresas, especialmente das grandes empresas, e o resto da sociedade nesta matéria. “Quase todas as semanas”, diz este,” vejo cartas nos jornais assinadas por alguns CEO fulminando contra as restrições em matéria de migração.” Como este chama à atenção, frequentemente isso ocorre por interesses empresariais de curto prazo. A coberto da retórica (neo)liberal da competitividade evitam pagar salários mais elevados, ou pressionam a sua redução e / ou eliminam custos de formação. Por outras palavras, as empresas que actuam assim retiram as vantagens de uma mão-de-obra mais barata, fragilizada e sem reivindicações sindicais, ou eventualmente já formada. Paralelamente, externalizam os custos de longo prazo, de não emprego dos autóctones e / ou de acolhimento e integração dos migrantes — infraestruturas sociais, prestações sociais, reagrupamento familiar, etc. —, para a sociedade no seu todo. É, por isso, do interesse da população autóctone “forçar as empresas que pretendem beneficiar do modelo social do país, a treinarem a sua juventude e contratarem os seus trabalhadores. As suas afirmações portentosas são apenas variantes pálidas do grandiloquente o que é bom para a General Motors é bom para o país.”

4. Que pensar de tudo isto? Serão estas ideias transponíveis para o actual fluxo de refugiados para a Europa? Estamos a lidar com uma situação essencialmente diferente? Mais do que qualquer conclusão simplista, ou ideias definitivas sobre o assunto, o livro de Paul Collier deve ser visto como um contributo relevante para (re)pensar, de forma abrangente, o impacto das migrações em massa nas sociedades de acolhimento. Quanto ao caso português, é atípico devido aos até agora escassos fluxos migratórios para o país. Muitas das ideias aqui discutidas são mais relevantes para uma análise geral a nível europeu, bem como para uma visão comparativa. Importa ainda sublinhar que o termo migrante, quando usado em sentido lato, como é feito neste artigo, abrange duas realidades diferenciadas. Uma é a dos que fogem de países devastados pela guerra, como a Síria, susceptíveis de serem apropriadamente qualificados como refugiados, quer face à Convenção das Nações Unidas de 1951 e ao seu Protocolo adicional de 1967, quer face à legislação da União Europeia e dos Estados-membros. Outra situação é a das pessoas que estão à procura de uma vida melhor e de emprego, que mais rigorosamente são migrantes económicos (imigrantes). Em qualquer política adequada é necessário separá-las, o que apresenta dificuldades práticas, sendo a mais óbvia a dos que chegam sem documentos. Por último, uma boa sociedade, uma sociedade aberta e humanista, não pode ficar indiferente à tragédia que está a ocorrer às suas portas, no Sul e Leste do Mediterrâneo e já transbordou para o seu interior. Mas a compaixão, a solidariedade e vontade de ajuda não devem obscurecer a complexidade do problema, quando se se trata de tomar decisões políticas a nível de Estado, ou da União Europeia. É necessário balancear as múltiplas de facetas da questão, que vão para além do imediatismo e do nobre impulso da entreajuda humana. Estamos a assistir ao início de um processo histórico que poderá ter muitas consequências, próximas ou diferidas no tempo. Se a vida dos refugiados está em jogo — e urge actuar —, também, num outro plano, para os já desfavorecidos nas sociedades de acolhimento, o Estado social e os modos de vida das gerações actuais futuras, os impactos podem ser grandes. Nenhumas destas dimensões deve ser subestimada.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Público, 11/09/2015

© Imagem: capa do Livro de Paul Collier, “Exodus — Immigration and Multiculturalism in 21st Century”, Allen Lane, 2013

Allah über Deutschland? A Alemanha entre o fascínio e a rejeição do Islão

Islam and Nazi Germany's War

 

Quando olhamos para a Al-Qaeda ou o Estado Islâmico do Iraque e do Levante, não estamos perante interpretações e apropriações do Islão, que ressoam às […] usadas hoje pelo totalitarismo islamista-jihadista? Escavar nas ideias políticas traz muitas surpresas e levanta questões perturbadoras que julgávamos enterradas na história do século XX.

 

1. Nos últimos meses a Alemanha surgiu na linha da frente dos movimentos anti-islamização da Europa. Nascido em Dresden, no leste do país, o PEGIDA (em alemão “Patriotische Europäer gegen die Islamisierung des Abendlandes”/Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente), organizou nos últimos meses manifestações públicas em cidades alemãs que lhe deram visibilidade mediática. O movimento protesta contra várias políticas governamentais, especialmente em matéria de emigração, bem como contra o que considera ser a progressiva islamização da Alemanha e do Ocidente. Embora não sejam muito claras as suas origens, o movimento parece ser uma amálgama de membros de grupos de extrema-direita – eventualmente com simpatias ou até conexões pró-nazis –, da direita populista anti-União Europeia, bem como de muitos cidadãos comuns por motivações variadas. O seu principal líder, Lutz Bachmann, renunciou ao cargo em meados de janeiro de 2015, após ter aparecido uma fotografia sua, nas redes sociais, onde este se fantasiava de Adolf Hitler. Pouco depois, Kathrin Oertel, a porta-voz do PEGIDA, renunciou também, invocando prejuízos pessoais e profissionais, devido à hostilidade que estava a ser alvo nos media. Avaliada pelas manifestações, a força principal do PEGIDA parece estar nos territórios da antiga Alemanha de leste (ex-República Democrática Alemã), absorvida em 1990 pela República Federal da Alemanha. Curiosamente, ou talvez, não, nessa parte da Alemanha há muito menos emigrantes que nos Estados federados do ocidente, mais prósperos e populosos. Não é claro, nesta altura, se a demissão de parte importante da sua liderança será o princípio do fim do movimento, ou apenas um episódio no seu percurso. Do ponto de vista político-ideológico (e da história conturbada da Alemanha dos último século), o surgimento do PEGIDA levanta uma interrogação perturbadora: será que estamos a assistir ao ressurgir dos fantasmas da Alemanha nazi (1933-1945)? Sendo o assunto delicado e complexo, vou analisar apenas um aspeto específico e pouco conhecido desse passado, que é o das relações entre a Alemanha e o Islão no período nazi, em especial durante a II Guerra Mundial. Faço-o, essencialmente, a partir de um livro recentemente publicado por David Motadel, “Islam and Nazi Germany’s War”/O Islão e a Guerra da Alemanha Nazi (The Belknap Press da Harvard University Press, 2014).

2. Um dos aspectos mais estranhos e curiosos do livro de David Motadel é o relato que o autor faz do fascínio que existia entre vários membros da elite do Partido Nazi face ao Islão. Dois casos, que abordaremos mais à frente, são objeto de particular atenção: o de Heinrich Himmler, um dos principais líderes nazis, responsável pela Schutzstaffel (SS)/“Tropa de Protecção” e directamente ligado aos horrores do holocausto da população judaica; e o do próprio Adolf Hitler. Ambos são objeto de análise detalhada no capítulo 2 intitulado “O Momento Muçulmano de Berlim”. Interessante é ainda a discussão feita por David Motadel em torno do problema da ideologia (pp. 56-70) e da dificuldade colocada pela superioridade da raça ariana. Esta foi proclamada, por exemplo, no Mein Kampf de Adolf Hitler (1925), especialmente no capítulo 11 (I Parte), “Raça e Povo”. Por outras palavras, como é que um Estado ideológico, como era a Alemanha nazi, fundado na convicção da superioridade rácica do povo germânico – e obcecado com a sua pureza –, se relacionava com o Islão e os povos muçulmanos, nomeadamente árabes, turcos e persas? A questão é ainda mais curiosa se pensarmos que o principal ideólogo da teoria racial nazi, Alfred Rosenberg, no livro “O Mito do Século XX (“Der Mythus des 20. Jahrhunderts”/O Mito do Século Vinte (1930), fez a apologia da subjugação do mundo islâmico sob o domínio imperial europeu (Capítulo 6 do Livro 3, “Um Novo Sistema de Estado”).

3. Entre a elite do Partido Nazi, Heinrich Himmler foi, provavelmente, o mais fascinado com o Islão e aquele que mais acreditava existir uma grande afinidade deste com os valores do nacional-socialismo (nazismo). Importa aqui recordar um facto histórico: é a Himmler que se deve a criação nos Balcãs primeira divisão não germânica das Waffen-SS (1943-1945), recrutada entre muçulmanos da região, especialmente bósnios. O pensamento de Himmler sobre o Islão foi sobretudo relatado nas memórias do seu médico pessoal, Felix Kersten, que escreveu um capítulo inteiro sobre o assunto. (As citações que fazemos a seguir são retiradas do já referido livro de David Motadel). De acordo com esse relato, Himmler teria lido vários livros sobre o Islão e biografias do Profeta, estando convencido que Maomé era uma das maiores figuras da história da humanidade. O que mais impressionava Himmler era ter encontrado no Islão as qualidades de uma “religião masculina” e a “bravura de soldados” (p. 60). Este terá confidenciado a Felix Kersten o seguinte: “Maomé sabia que a maioria das pessoas são terrivelmente covardes e estúpidas. Por isso prometeu a cada guerreiro que luta com coragem e cai em batalha […] mulheres bonitas […]. Este é o tipo de linguagem que um soldado entende. Quando acredita que será recebido desta maneira na vida após a morte, está disposto a dar a vida. Vai estar entusiasmado com a ida para a batalha e não vai temer a morte. Pode achar isso primitivo e rir-se… mas baseia-se em sabedoria profunda. A religião deve falar a língua de um homem.” (p. 61). Himmler, nascido numa família católica mas que abandonou o catolicismo em 1936, ter-se-á referido em diversas ocasiões ao Islão, pondo-o em contraste especialmente com a Igreja Católica. Usualmente, nessas conversas, menosprezava o Cristianismo por ser uma religião débil e pouco masculina, lamentando o facto de não conter “promessas aos soldados que morrem em batalha”, não havendo nenhuma recompensa no além, por atos de bravura. Quanto ao Islão, era uma “fé prática que forneceu os crentes orientação para todos os dias vida“, sendo uma religião muito mais “inteligente”. Em termos históricos, Himmler lamentava ainda que os exércitos turco-muçulmanos não tivessem conseguido conquistar a Europa no século XVII, quando foram derrotados às portas de Viena, em 1683. (Aparentemente, porque que teriam levado aos povos germânicos uma religião mais consentânea com a sua raça.)

4. Também Adolf Hitler terá tido similar fascínio pelo Islão. Segundo relatos da irmã de Eva Braun, Ilse, teria abordado várias vezes, em conversa com ambas, o tema do Islão. À semelhança de Himmler, via-o como uma religião “forte” e “prática, por oposição ao Cristianismo que era uma religião “artificial”, “suave” e de “sofredores” (p. 63). Apreciava particularmente o facto de o Islão ser “uma religião do aqui e agora”, por isso superior ao Cristianismo, uma religião do reino vindouro. Mesmo aí, em comparação com o paraíso prometido pelo Islão, era muito pouco atrativo (idem). Os seus aspetos “masculinos” e “guerreiros” terão impressionado igualmente, em termos muito favoráveis, o líder nazi: “A exortação para lutar corajosamente é explicativa em si mesma” terá este comentado. “Observe-se, a propósito, que, como corolário”, ao muçulmano “foi prometido um paraíso cheio de houris” (virgens) […] O Cristianismo não prometeu nada comparável. Os cristãos dão-se por satisfeitos “se após a sua morte forem autorizados a cantar aleluias!” (ibidem). Quanto ao passado histórico, Adolf Hitler lamentava a derrota dos exércitos árabes por Carlos Martel na batalha de Poitiers (732) e, mais tarde, a perda do Al-Andalus (a Península Ibérica muçulmana medieval). Para este, o período islâmico da Península Ibérica teria sido “o mais culto, o mais intelectual e em todos os aspectos a melhor e mais feliz época na história da Espanha” ao qual se seguiu um período de “perseguições com atrocidades incessantes” (p. 64). Mas como se conciliava este fascínio pelo Islão com a superioridade da raça ariana, dogma central no ideário nazi? Basicamente a solução passava por separar o Islão da “raça” dos seus seguidores. Na óptica de Adolf Hitler o Islão era uma religião superior mas já os seus seguidores árabes eram “inferiores”. Quanto aos alemães, tinham o infortúnio de ter “uma religião errada”. O Islão era mais compatível com o “espírito vital” e características guerreiras dos povos germânicos do que o Cristianismo, imbuído de “mansidão e flacidez” (p. 65).

5. Coincidência ou talvez não, o pensamento de Himmler e de Hitler sobre o Islão descrito no livro de David Motadel ecoa de perto o do filósofo germânico, Friedrich Nietzsche, em “Der Antichrist”/O Anti-Cristo” (1888), a sua última obra concluída. Atente-se neste excerto onde se denota uma espécie de “realpolitik” filosófica: Se o Islão “despreza o Cristianismo, tem para tal mil razões: o Islão tem homens como pressuposto […]. O Cristianismo desperdiçou os frutos da cultura antiga, fez-nos perder novamente mais tarde os frutos da cultura [do Islão]. Não podia em si, é certo, haver escolha alguma entre o Islão e o Cristianismo, como tão pouco entre um árabe e um judeu. A decisão está tomada, ninguém é livre de ainda aqui escolher. Ou se é um chandala [escravo] ou não… “Guerra total com Roma [ao Cristianismo]! Paz e amizade com o Islão” […] (trad. port. Edições 70, 1997, pp. 98-99). Outro paralelismo curioso com a elite nazi e o seu menosprezo pelo Cristianismo, encontra-se neste segundo excerto do mesmo livro, onde Nietzsche também considera que o Cristianismo era a “religião errada” para a virilidade e emergia vital dos povos germânicos: “Que as raças vigorosas do Norte da Europa não tenham rejeitado o Deus cristão, eis o que não honra de modo algum o seu talento religioso – para já não falar no seu gosto. Deveriam ter acabado com esse monstruoso produto da décadence, mórbido e senil.[…]” (p.20). Que pensar deste dois trechos agressivos, laudatórios do Islão e depreciativos do Cristianismo? São meras coincidências de pensamento com a elite nazi? Será que tudo isto se pode explicar como sendo apenas parte de um certo “zeitgeist” (espírito da época)? Ou será que há questões mais profundas e ligações “perigosas” entre o pensamento de Nietzsche sobre o Islão e a elite do Partido Nazi? E que pensar do atual PEGIDA e das suas manifestações anti-islamização: inserem-se numa lógica de extrema direita racista, com proximidade a círculos neo-nazis? (Se for o caso, não deixa de ser irónico quando pensamos no fascínio de Heinrich Himmler e Adolf Hitler tiveram pelo Islão). E o anti-semitismo atual, alimenta-se das ideias anteriormente citadas? Quando olhamos para a Al-Qaeda ou o Estado Islâmico do Iraque e do Levante, não estamos perante interpretações e apropriações do Islão, que ressoam às descritas no livro de David Motadel, usadas hoje pelo totalitarismo islamista-jihadista? Escavar nas ideias políticas traz muitas surpresas e levanta questões perturbadoras que julgávamos enterradas na história do século XX.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes. Artigo originalmente publicado no Público,  6/02/2015

Maquiavel na batalha pela Grécia

The-Essential-Writings-of-Machiavelli (cover)

 

Numa União Europeia que deveria estar alicerçada em princípios políticos de igualdade entre os Estados-membros e valores de solidariedade, o regresso de Maquiavel e da realpolitik é um retrocesso.

 

1. Não é preciso ser um moralista político para ficar consternado, se não mesmo chocado, com os conselhos sobre a arte de bem governar de Maquiavel (Niccolò Machiavelli) na obra O Príncipe do século XVI. Entre os muitos aspectos focados nesse tratado de governo encontram-se as relações entre quem governa e quem é governado e o respeito pelas promessas efectuadas. É o que na linguagem clássica se chamava honrar a palavra. Não é uma preocupação específica do Renascimento, nem das sociedades autocráticas. Nas atuais sociedades democráticas da União Europeia o cidadão comum tem demasiadas vezes a sensação das promessas políticas não serem cumpridas e de que os governantes faltaram à palavra. Pode isso ser considerado uma “boa” forma de governar? Atente-se na reflexão de Maquiavel sobre este problema intemporal da política (O Príncipe, cap. XVIII, “De que modo os príncipes devem cumprir a sua palavra): “Todos sabem quão louvável é um príncipe ser fiel à sua palavra e proceder com integridade e não com astúcia; contudo, a experiência mostra que só nos nossos tempos fizeram grandes coisas aqueles príncipes que tiveram em pouca conta as promessas feitas e que, com astúcia, souberam transtornar as cabeças dos homens; e por fim superaram os que se fundaram na sua lealdade.” Mas o cinismo político de Maquiavel e o seu desprezo pelo vulgo – na linguagem política de hoje o cidadão comum, ou as massas –, não se fica por aqui. Como este faz notar, o governante que engana achará sempre quem se deixe e enganar (idem): “Nem nunca faltaram a um príncipe razões para colorir a sua falta à palavra. Disto se poderiam dar infinitos exemplos modernos e mostrar quantas pazes, quantas promessas ficaram írritas e nulas pela falta de palavra dos príncipes; aquele que melhor soube proceder como a raposa, melhor se houve. Mas é necessário saber bem colorir esta natureza e ser grande simulador e dissimulador: os homens são tão simples e obedecem tanto às necessidades presentes que quem engana achará sempre quem se deixe enganar.” Quer dizer, o fundamental é que a acção política seja percebida pelo vulgo, ou seja pelas massas, como um sucesso, estando os meios empregues justificados pelos fins (ibidem): “Faça, pois um príncipe por vencer e por manter o seu Estado; os meios serão sempre julgados honrosos e de todos louvados. Porque o vulgo deixa-se sempre levar pela aparência e o sucesso das coisas; e no mundo não há senão vulgo e os poucos só têm lugar quando os muitos não têm em que apoiar-se.”

2. Ao contrário do que se poderia supor, o realismo político e a realpolitk, um termo germânico ligado à política europeia do século XIX, não têm só adeptos e praticantes – frequentemente não assumidos –, na área conservadora, próxima da direita política. Provavelmente o caso mais conhecido dessa atitude intelectual e política é o do ex-Secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger. No seu livro Diplomacia (1994), Kissinger faz uma quase apologia das virtudes da realpolitik em matéria de diplomacia e política internacional. No outro extremo do espectro político, o intelectual marxista italiano Antonio Gramsci (1891-1937) exemplifica o fascínio suscitado pelas ideias de Maquiavel – e de alguma forma da realpolitik –, à esquerda. Gramsci fez uma (re)leitura de O Príncipe não só como um tratado de ciência da política, mas também como texto voltado para a acção de carácter revolucionário. Nos Cadernos do Cárcere, escritos na prisão durante a Itália fascista, entre 1929-1935, procurou adaptar Maquiavel ao ideário socialista-comunista no contexto da época. O Príncipe do Renascimento que para conquistar e conservar o poder do Estado recorria à acção política amoral, deu lugar à vanguarda revolucionária do Partido – “O Príncipe moderno” –, agora com o objetivo de conquistar e manter a hegemonia do proletariado. Tal como Maquiavel, Gramsci validou o recurso estratégias políticas amorais para conquistar e preservar o poder: alianças de conveniência, guerra de posições, contra-hegemonia, etc. Face a este fascínio por Maquiavel, à direita e à esquerda, várias interrogações vêm à mente. Na União Europeia e Estados-membros do século XXI, o realismo político amoral é uma coisa do passado? A acção política como esfera humana separada das questões morais, cruamente retratada por Maquiavel, foi relegada para o caixote do lixo das ideias políticas? A realpolitk, assente na hierarquia do poder, na aferição crua do interesse nacional e num pragmatismo que não cede a valores e princípios morais, foi afastada da política nacional e europeia? Em sociedades democráticas, onde os governantes submeteram um programa político aos eleitores com um catálogo de medidas a adoptar, há espaço para o realismo político amoral e a realpolitk? É politicamente legítimo, e moralmente aceitável, pressionar pequenos Estados a aceitar compromissos internacionais que grandes potências provavelmente nunca aceitariam?

3. Analisar a política interna grega e as negociações na União Europeia à luz dos “conselhos ao Príncipe” de Maquiavel pode ajudar a compreender a actual forma de fazer política. Leva também a reflectir sobre as questões de moralidade e valores políticos, ou falta deles, que a crise económica-financeira iniciada em 2007//2008 fez emergir. Começando pela Grécia, o referendo de 5/7 é um caso óbvio de análise. Um referendo nunca é um puro exercício de democracia directa, estranho ao cálculo político. O timing em que é efectuado, bem como o teor da pergunta aos eleitores, são aspectos clássicos desse cálculo, com influência no resultado. Estes pesaram na decisão de avançar para o referendo de Alexis Tsipras e ajudam a explicar a esmagadora vitória do “não”. As subsequentes negociações com a União Europeia e FMI levantam, no entanto, sérias questões políticas e morais. A campanha do “não” assentou na ideia de melhoria da posição negocial grega e da recusa de mais austeridade. Na realidade, nem uma, nem outra, parecem estar a ocorrer. A proposta do governo grego submetida ao Eurogrupo retomou, no essencial, aquilo que tinha sido rejeitado pelo “não”. Abriu brechas no Syriza e na coligação governamental. Panagiotis Lafazanis, o Ministro da Reconstrução Produtiva do Syriza, e Panos Kammenos, o Ministro da Defesa do ANEL/Gregos Independentes, refutaram-na. No Parlamento, as fracturas foram também visíveis. Dezassete deputados da Syriza insurgiram-se, incluindo a Presidente do Parlamento. Foi a oposição ao governo do establishment europeísta – PASOK e Nova Democracia, mais o centrista To Potami/O Rio –, que permitiu obter uma ampla maioria parlamentar. Mas esses eram os partidos da campanha pelo “sim”… Entre muitos que votaram “não”, o sentimento é o de terem sido defraudados pela viragem política nas negociações. A reviravolta de Alexis Tsipras ecoa demasiado os conselhos de Maquiavel: “[…] nunca faltaram a um príncipe razões para colorir a sua falta à palavra”, pois os homens “obedecem tanto às necessidades presentes que quem engana achará sempre quem se deixe enganar.” Mas não é só na política interna grega que as ideias de Maquiavel parecem ser a chave de leitura dos processos políticos. Na União Europeia também. Após ter falhado a estratégia de aliciar o atual governo grego – protagonizada, entre outros, pelo Presidente da Comissão Europeia –, o “não” no referendo de 5/7 deu lugar a uma abordagem punitiva, numa lógica crua de poder. Esta forma de actuar parece também extraída de Maquiavel (cap. XIX, “Da Crueldade e da clemência e se mais vale ser amado que temido, ou temido que amado”). Aí pode ler-se o seguinte: “Responde-se que ambas as coisas seriam de desejar; mas porque é difícil juntá-las, é muito mais seguro ser temido que amado, quando haja de faltar uma das duas.” Numa União Europeia que deveria estar alicerçada em princípios políticos de igualdade entre os Estados-membros e valores de solidariedade, o regresso de Maquiavel e da realpolitik é um retrocesso. Alimenta uma lógica política perversa e um círculo vicioso de desconfiança, injustiça e nacionalismo fracturante. Não augura nada de bom para o futuro. A União Europeia é o maior legado de paz e prosperidade que as gerações anteriores de europeus nos deixaram. Cabe-nos a responsabilidade de o continuar e não de destruí-lo.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Público, 13/07/2015

© Imagem: capa do Livro de Peter Constantine (trad. e editor), “The Essential Writings of Machiavelli” (Modern Library, 2007)