A saída da Grécia do Euro: o problema político-jurídico

Grécia

 

Agora que há razões de substância para uma modificação dos Tratados, a União encontra-se refém dos seus erros e bloqueada pelo medo das ratificações. A Grécia e o Euro são vítimas colaterais desse bloqueio.

 

1. A crise da dívida externa da Grécia voltou a agudizar-se durante o mês de Junho. Com as negociações entre os credores e o governo grego num impasse, a possibilidade de incumprimento – leia-se, bancarrota – paira no ar. Por sua vez, a discussão em torno de um hipotético abandono do Euro reemergiu com nova intensidade. Na Grécia, no entanto, os eleitores têm-se mostrado largamente favoráveis à sua permanência. O actual governo, que partilha da mesma visão, faz, simultaneamente, o (im)possível por governar sem as políticas de austeridade das instituições europeias e FMI. Do lado da União Europeia, uma hipotética opção grega de abandono do Euro, para desbloquear este (in)sanável impasse, tem sido vista negativamente, por razões económicas e políticas. Afinal, o Euro foi concebido não só como um projecto económico, mas também político. No final da década de 1990, esperava-se que a sua adopção desencadeasse uma maior integração, numa lógica política federalizante. O falhado Tratado Constitucional Europeu, abandonado em 2005, era uma peça dessa estratégia. Por essa razão, em termos políticos, qualquer saída do Euro, seja da Grécia (o “Grexit” popularizado pela imprensa anglo-saxónica) ou de outro Estado, será sempre vista como uma derrota da integração europeia. O seu progressivo e contínuo aprofundamento fica em causa. No terreno económico-financeiro a saída é também potencialmente (muito) negativa. Isso ocorre quer pelo previsível impacto desestabilizador nos mercados financeiros, quer pelas eventuais perdas que acarretaria nos credores – União Europeia e Estados-membros incluídos –, quer ainda por afectar a confiança no Euro, a nível interno e internacional. No entanto, várias declarações políticas de responsáveis europeus e do FMI sugerem não existir hoje o mesmo grau de receio que existia em 2012. Na altura, temia-se que uma hipotética saída grega arrastasse, de forma imparável, outras economias vulneráveis Sul da Europa (Portugal, Espanha ou até a Itália). Aparentemente, hoje não. Se essa percepção é correcta ou subestima as consequências dos “estilhaços”, é uma questão em aberto que só o rumo dos acontecimentos poderá clarificar.

2. A discussão sobre a saída do Euro, da Grécia ou de outro Estado em dificuldades, não é nova. Praticamente desde o desencadear da crise financeira e económica, no Verão de 2008, que está presente, com maior o menor visibilidade, na opinião pública. No entanto, é centrada quase exclusivamente nos aspectos económico-financeiros. A faceta jurídica, ou melhor, político-jurídica do problema, é relativamente secundarizada, sendo certo que, em qualquer hipotético cenário de saída, as questões político-jurídicas teriam um peso fundamental na decisão. Tal como os aspectos económico-financeiros, trata-se de uma matéria complexa, especialmente nos seus aspectos puramente jurídicos, e que merece uma abordagem especializada. Ainda que de forma simplificada, vale a pena olhar aqui para o problema e tentar identificar as suas principais vertentes e possíveis soluções. Em primeiro lugar, e este é talvez o aspecto mais conhecido da opinião pública, os Tratados Europeus não prevêem, expressamente, a saída do Euro. A única coisa que está prevista, no artigo 50.º do Tratado da União Europeia, é a saída da própria União Europeia. Em qualquer caso, o Estado-membro que optar por essa via, após notificar dessa intenção o Conselho Europeu (art. 50.º n.º 1), terá de negociar com a União Europeia “um acordo que estabeleça as condições da sua saída, tendo em conta o quadro das suas futuras relações com a União” (art. 50.º n.º 2). Estabelece ainda o mesmo dispositivo (art. 50.º n.º 3) que os Tratados “deixam de ser aplicáveis ao Estado em causa a partir da data de entrada em vigor do acordo de saída ou, na falta deste, dois anos após a notificação.” Em termos de respeito pela legalidade dos Tratados, a hipótese de uma saída unilateral do Euro, feita, em termos automáticos, através de uma mera notificação desse Estado-membro à União Europeia (por exemplo, ao Conselho Europeu e BCE), está afastada. Quer dizer, “de jure”, um Estado-membro só poderá abandonar a zona Euro saindo, também, da União Europeia. Eventualmente renegociaria, depois, nova adesão a esta, exceptuando o uso do Euro. Se esse processo é concebível numa lógica puramente jurídica, é bastante improvável em termos políticos. A saída e reentrada de um Estado-membro na União seria vista como uma coisa estranha e bizarra pela opinião pública, para além doutros impactos negativos sérios, a nível de certeza das regras jurídicas aplicáveis e do funcionamento económico. Assim, a hipótese mais plausível – provavelmente a única imaginável com algum bom senso –, é a de uma saída negociada. Se os Tratados Europeus tivessem previsto a saída do Euro no seu dispositivo, essa obrigação de negociação, pela multiplicidade de assuntos envolvidos (por exemplo, a moeda em que seriam pagas as obrigações internacionais do Estado, dos contratos de privados, a participação no BCE, etc.), seria certamente incluída na formulação legal. Tal formulação abrangeria provavelmente também a negociação de um compromisso sobre a forma de funcionar no período transitório, incluindo ao nível dos movimentos de capitais. Por outras palavras, seria necessário um acordo ou tratado, entre a União Europeia e o Estado que abandonasse o Euro. Este regularia as relações transitórias e futuras, tal como está previsto no caso de uma saída voluntária da União Europeia. A dificuldade óbvia, do ponto de vista político-jurídico, é que, no caso do Euro, isso só pode ser feito, ao que tudo indica, com alteração dos Tratados. Para além da complexidade intrínseca das negociações técnicas, há o problema da ratificação por todas as partes envolvidas. Enfrentará, previsivelmente, o obstáculo (inultrapassável?) dos referendos.

3. A questão da hipotética saída da Grécia da Zona Euro, e a eventual necessidade de revisão dos Tratados, poderá interligar-se com a pretensão britânica de renegociar a sua relação com a União Europeia. Várias das reivindicações britânicas, se forem aceites, implicarão a renegociação dos Tratados, de forma limitada ou abrangente. É o caso, por exemplo, da pretensão de limitar o acesso aos benefícios sociais de trabalhadores de outros Estados-membros. Em termos jurídicos, esta colide, de forma clara, com os atuais princípios do mercado único e da não discriminação em razão da nacionalidade. Nesse cenário, será interessante ver em que medida os britânicos irão tentar aproveitar o “timing” de uma eventual saída grega do Euro, para fazer valer a sua própria agenda política. Seja qual for a evolução, o que se verifica é que a integração europeia está numa fase fortemente instável e de futuro incerto. Isso ocorre por razões ligadas ao crescente eurocepticismo em vários Estados-membros, como no caso britânico. Ocorre também pela própria arquitectura dos Tratados. São demasiado federalizantes em certas áreas, como na moeda; são demasiado “nacionais” noutras áreas, pelas limitadas capacidades de governação económica e ausência de um orçamento europeu de outra dimensão, o qual permitiria uma ajuda “federal” em tempos de crise. Este desequilíbrio tem reflexos óbvios no caso grego. Independentemente do resultados das atuais negociações sobre a dívida grega, provavelmente só com um redesenho das competências europeias (e nacionais), se encontrará uma solução de estabilização, para casos como o da Grécia. Basicamente, há duas vias possíveis. Um “upgrade” da integração, aumentando as competências da União Europeia; ou, então, um “downgrade”, voltando certas competências a ser nacionais. A primeira é indubitavelmente a mais consentânea com a integração europeia, tal como tem sido entendida até agora. A segunda, falhando as soluções europeístas, pode mostra-se a única exequível. Em termos político-jurídicos, o Tratado de Lisboa não veio responder a nenhuma das dificuldades mais prementes da actualidade. Entrou em funcionamento em 2009, já ultrapassado pela realidade. Ao não conter disposições específicas sobre o processo de saída voluntária do Euro, acrescentou o imbróglio jurídico ao problema económico-financeiro. Numa União de Estados soberanos, essa possibilidade, ainda que altamente indesejável, nunca deveria ter sido descartada. Por outro lado, não inclui mecanismos de governação económica europeia coerentes com as exigências de uma moeda única. Teria sido mais prudente não ter avançado para o Euro sem estes. Independentemente das intenções, o projecto de Tratado Constitucional Europeu e o Tratado de Lisboa tiveram um resultado: desbarataram simpatia e confiança do eleitorado europeu, sem trazerem soluções jurídico-políticas de relevo. Pior, agora que há razões de substância para uma modificação dos Tratados, a União encontra-se refém dos seus erros e bloqueada pelo medo das ratificações. A Grécia e o Euro são vítimas colaterais desse bloqueio.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Público, 18/06/2015

© Imagem:  bandeira da República Helénica

A Grécia entre a democracia, a demagogia e o colapso financeiro

Vhils

Democracia e demagogia. Ambas são palavras gregas. Ambas são conhecidas dos gregos da Antiguidade. Ambas são um legado que ficou para a cultura política moderna, da Grécia e da Europa. Não deixemos que a democracia resvale perigosamente para a demagogia e alimente a engrenagem da catástrofe financeira. A bem de gregos e europeus

 

1. Os referendos são benéficos para a democracia. Alexis Tsipras, Yanis Varoufakis e o governo do Syriza têm bons argumentos para contestar a tecnocracia europeia e do FMI. A sua excessiva prevalência nas decisões políticas e sobre as escolhas democráticas é, deveria, ser, objecto de preocupação. Têm também argumentos válidos quando contestam a prevalência, quase absoluta, dos mercados sobre os Estados. Não é bom para a democracia. A isto poderia acrescentar-se a intransigência negocial dos credores, sobretudo do FMI, face a uma economia e população já sujeita a enormes sacrifícios. Apesar dos seus muitos méritos, a União Europeia, pela própria forma como foi construída, não é um exemplo das melhores virtudes democráticas. A tecnocracia na Comissão e no Banco Central Europeu são dominantes. Estão impregnadas de uma visão (neo)liberal da economia, quase imune às preferências dos eleitores. Para além disso, os processos de ratificação dos Tratados – e os contorcionismos para evitar os referendos, ou obrigar à sua repetição –, mostram o problema desde os anos 1990. Na Dinamarca, no referendo para ratificação do Tratado de Maastricht em 1992, ganhou inicialmente o “não”, embora por escassa margem; depois, por pressão europeia, fez-se novo referendo em 1993, chegando-se a um “sim”. Na Irlanda, houve similar ocorrência com Tratado de Lisboa. Em 2008, num primeiro referendo, a votação foi “não”; a seguir veio a pressão europeia para um segundo referendo, efectuado em 2009, que deu uma votação “sim”. Nessa altura o processo parou, depois de se chegar ao “bom” resultado. Ironia: o “não” ao referendo em França (e Holanda) em 2005, ao Tratado Constitucional Europeu, não levou à repetição da consulta ao eleitorado. A solução foi negociar novo Tratado. Aparentemente, nos grandes Estados, essas coisas são impensáveis.

2. Independentemente das boas razões apontadas, há sucessivos erros na estratégia negocial do governo grego. À chegada ao poder sobreavaliou os apoios que dispunha na União Europeia, especialmente no caso da França e da Itália. Subestimou a oposição dos governos de direita dos “bons alunos” do Sul (Portugal e Espanha), envolvidos em processos eleitorais internos e a lutar pela sua sobrevivência política. Mostra uma confrangedora falta de experiência em negociações internacionais desta envergadura. Não estão em causa os eventuais méritos políticos internos. (Alexis Tsipras conhecia apenas superficialmente as complexidades da política europeia. Yanis Varoufakis é um académico sem peso político, interno e externo.) Acrescem outros erros. Excessiva loquacidade em momentos inadequados e com efeitos contraproducentes das negociações, como a dispensável troca de acusações com o FMI em público. Deficiente calculo estratégico na aproximação à Rússia: Alexis Tsipras trouxe uma promessa de acordo que poderá, num futuro mais ou menos distante, valer 2 mil milhões de Euros se o gasoduto passar pela Grécia. No imediato – e a sua necessidade financeira é imediata –, ganhou uma adicional animosidade dos governos dos Estados Bálticos e da Polónia, dentro da União Europeia. Estes vêm a Rússia como uma ameaça existencial. A isto provavelmente vai juntar-se outro erro: avançar, numa fase especialmente crítica de prazos de pagamento aos credores, para a convocatória de um referendo, a 5 de Julho. Vista do lado dos restantes governos europeus, é um “remake” da atitude de Georgios Papandreou, do PASOK, em finais de 2011, quando confrontado com similar pressão negocial. Predispõe, de forma negativa, a não transigir em eventuais concessões. Para além estratégia, há questões importantes em termos de democracia que aqui se levantam. Foi uma defesa da democracia directa e do interesse nacional que levou Tsipras a avançar por esta via? Ou foi um frio e egoísta cálculo político, de sobreviver à contestação do seu próprio partido e consolidar a sua liderança? Outra questão: em oito dias é possível organizar um referendo e fazer uma campanha esclarecedora para responder à pergunta: “Deverá ser aceite o projeto de acordo que foi apresentado pela Comissão Europeia, o BCE e o FMI na reunião do Eurogrupo de 25/06/2015 e que consiste em duas partes, as quais constituem a sua proposta unificada? O primeiro documento intitula-se ‘Reformas para a Conclusão do Presente Programa e Mais Além’ e o segundo ‘Análise Preliminar à Sustentabilidade da Dívida’.” Será possível debater e esclarecer, neste curtíssimo espaço de tempo, de forma séria, o objecto do referendo? Será possível divulgá-lo em massa a tempo de os eleitores votarem, conscientemente, num assunto de tão grande importância para o seu futuro colectivo? Mas não estará já o projecto de acordo ultrapassado pelos próprios acontecimentos, a 5 de Julho? Não há, neste ambiente de pré-colapso financeiro, um sério risco de prevalecer a manipulação do sentimento nacional, o medo e a demagogia? Um referendo, com estes fortíssimos constrangimentos, não se irá transformar num plebiscito, historicamente demasiadas vezes usado para legitimações artificiosas dos governantes? A democracia nada ganha com isso.

3. No actual contexto pode o referendo resolver a situação política na Grécia e ajudar a encontrar uma saída para a crise? Dificilmente. Se ganhar o “não” ao acordo proposto pela União Europeia e FMI, o actual governo terá de encontrar uma alternativa de financiamento – não se percebendo, nesta altura, onde e como a poderá encontrar. Se pensa voltar à mesa das negociações em condições mais favoráveis, devido ao voto de confiança do eleitorado (e aos receios de danos do lado europeu), pode enganar-se no cálculo estratégico. E se o resultado for tornar ainda mais duras as condições do empréstimo, seja pela continuada intransigência dos credores, seja pela própria deterioração da situação económico-financeira grega? A outra alternativa é entrar em incumprimento, com todas as consequências que daí resultam. Se a situação evoluir por aí, vai ter muita dificuldade em resistir ao previsível tumulto político e social, que será ainda mais intenso do que hoje. A coligação Syriza/Gregos Independentes (ANEL), é basicamente uma coligação de protesto, não de governo. Não tem suficiente coerência ideológica, nem consistência política. Se vencer o “sim” o governo não terá condições políticas para governar. Posicionando-se o Syriza contra os termos do acordo, será visto como desautorizado pelo eleitorado. A solução, nessa hipótese, será provavelmente a demissão. Em qualquer dos cenários de votação do referendo há grande probabilidade de terem de ser feitas novas eleições legislativas. Entretanto, a situação do cidadão comum – já muito difícil pelos enormes constrangimentos financeiros da Grécia e medidas de austeridade –, vai melhorar? Mas como? Para além do risco de agravar a catástrofe social e financeira na Grécia, o resultado pode ser ainda pior. Alexis Tsipras arrisca-se a fazer o jogo dos conservadores britânicos de David Cameron – que já lhe terá sugerido abandonar a Zona Euro. Este vê uma boa oportunidade de renegociação dos Tratados, ligada a uma eventual saída da Grécia do Euro. Arrisca-se, também, a dar argumentos adicionais a todos aqueles que, como o ministro das finanças alemão, Wolfgang Schäuble, vêem a Grécia como um caso perdido e uma ameaça ao projecto europeu. Por último, mesmo ao nível de funcionamento da democracia, há uma preocupação séria, se daí resultar a ingovernabilidade: a descredibilização dos referendos, especialmente sobre as questões europeias. Certamente haverá quem retire satisfação e ganhos políticos se a situação evoluir nesse sentido. Para além dos adeptos do caos, os partidários da governação tecnocrática irão aí buscar renovados argumentos. Democracia e demagogia. Ambas são palavras gregas. Ambas são conhecidas dos gregos da Antiguidade. Ambas são um legado que ficou para a cultura política moderna, da Grécia e da Europa. Não deixemos que a democracia resvale perigosamente para a demagogia e alimente a engrenagem da catástrofe financeira. A bem de gregos e europeus.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Público, 30/06/2015

© Imagem: Vhils, pintura mural no museu da Electricidade, Lisboa, foto do autor 2014

A Turquia, a Síria e os Curdos

Populações curdas no Médio Oriente

 

Política e estrategicamente o maior problema da Turquia é a luta contra os independentistas curdos na conturbada fronteira Sul e não o islamismo-jihadista. A isto acresce a ambição nostálgica de recuperar a influência perdida nas províncias árabes do Império.

 

1. A entrada do Médio Oriente na modernidade política ainda hoje tem sequelas. No final da I Guerra Mundial, o território imperial otomano fragmentou-se após a derrota militar e o colapso político. Sob as cinzas do Império, emergiu a República da Turquia como principal Estado sucessor. Ao contrário do que se poderia supor, a sucessão não foi algo óbvio em termos de configuração territorial. Pelo contrário, o novo Estado ganhou forma num conflito político-militar contra as potências vencedoras com interesses no Mediterrâneo oriental: Grã-Bretanha, França, Itália e Grécia – a Rússia bolchevique fez uma paz separada em 1917. A confrontação principal ocorreu contra as pretensões territoriais da Grécia na costa Mediterrânica, especialmente centradas na zona de Esmirna. Terminou com a derrota e a trágica expulsão das populações gregas. Mas a vitória militar dos nacionalistas turcos de Mustafa Kemal Atatürk, em 1922, teve outras consequências nas fronteiras. Para além de anular as pretensões territoriais gregas, outros dois grupos nacionais – arménios e curdos –, viram defraudadas as suas ambições de constituir um Estado independente. Ambas colidiam com territórios reclamados pelos nacionalistas turcos. Estes saíram largamente vitoriosos, excepto em dois casos ocorridos na fronteira Sul. As antigas províncias árabes do Império tinham ficado sob influência anglo-francesa, a coberto de um mandato da Sociedade das Nações (SdN). O movimento nacionalista turco reclamava Mossul, no actual Iraque, sob domínio britânico. A disputa sobre este território, ocupado pela Grã-Bretanha no final da I Guerra Mundial, foi submetida à SdN. Em 1925/1926 a decisão da SdN deu razão aos britânicos. A antiga província otomana, maioritariamente composta por populações curdas, passou a integrar o Iraque. Quanto ao sandjak de Alexandreta, o actual Hatay turco, ficou sob domínio francês, embora, como será explicado mais à frente, a situação acabasse por ser revertida em vésperas da II Guerra Mundial. Em ambos os casos, as pretensões turcas colidiam directamente com os interesses das potências europeias no Médio Oriente. Face à relação de forças existente na época, a Turquia cedeu a contragosto.

2. O actual Estado da Síria resulta do território que chegou à independência em 1945/1946, face à França. O período do mandato da SdN foi determinante na sua configuração. A divisão administrativa do território feita pelos franceses está na origem da separação e posterior autonomização / independência do Líbano. Este foi desenhado como um Estado para uma maioria de cristãos maronitas, hoje cada vez mais minoritários. Em termos mais gerais, a lógica da administração colonial francesa foi repartir o território de acordo com as minorias religiosas mais substanciais que aí se encontravam. Assim, foi criado um Estado não independente, dos alauítas – o grupo minoritário de Bashar al-Assad – junto ao litoral, a Norte do Líbano, a sua principal região. Para os drusos, a Sul, foi criado um pequeno Estado não independente, num território próximo da actual fronteira com Israel e a Jordânia. O já referido sandjak de Alexandreta foi um outro território autónomo que integrou a Síria até 1938. Sendo uma zona de transição entre as populações turcas e árabes, na época do mandato tinha uma maioria de população árabe. A componente demográfica foi-se alterando por infiltração de população a partir da Turquia. Face à reivindicação turca do território – e num contexto onde a França enfrentava uma crescente ameaça militar da Alemanha nazi na Europa –, o governo francês, em desrespeito do mandato da SdN, aceitou a anexação do território pela Turquia, sob o nome de Hatay. Esta anexação nunca foi reconhecida pela Síria, sendo um ponto de atrito entre os dois Estados. Provavelmente, uma das motivações do governo da Turquia para derrubar Bashar al-Assad foi a de ter um novo poder na Síria que, em troca de apoio, aceitasse de iure a actual fronteira. Aspecto interessante do período do mandato francês da SdN – e relevante para a compreensão dos acontecimentos da actualidade – é o do papel das minorias. A população da Síria está maioritariamente ligada ao Islão sunita. No entanto, existem tradicionalmente substanciais minorias religiosas (alauítas, cristãos e drusos), que constituiriam cerca de 25% a 30% antes da guerra civil. Há, ainda, uma minoria étnica significativa: os curdos, estimada entre 8% a 10% da população – os restantes 90% são árabes. Sob a administração francesa, as minorias tinham um peso desproporcional nas forças militares e de segurança, em corpos como as Troupes spéciales du Levant, sendo vistas como mais confiáveis. Tratou-se de uma estratégia de dominação típica: o governante estrangeiro apoiava-se em grupos minoritários, concedendo-lhe privilégios e/ou proteção, para contrabalançar a maioria. Com o tempo, os principais beneficiários acabaram por ser os alauítas, vistos como seita herética pelo Islão sunita dominante. Com Hafez el-Assad chegaram ao poder em 1970, tendo governado a Síria até agora.

3. A actual guerra civil na Síria fez reemergir a questão curda dos vários lados da(s) fronteira(s): Síria, Turquia e Iraque. A excepção relativa é o Irão, mas mesmo aí existe um conflito armado latente, por vezes aberto. Sendo o maior grupo étnico sem um Estado, com mais de 30 milhões de pessoas – as estimativas naturalmente variam –, a questão curda é eminentemente transnacional. Os sucessos de autonomia / independência de facto de um lado da fronteira têm repercussões imediatas para além desta, nos Estados vizinhos, onde também habitam populações curdas. Os conflitos militares, ataques e/ou massacres de que frequentemente são vítimas também. Nos anos 1980, o conflito teve o seu ponto mais crítico na Turquia, com o desencadear da rebelião armada do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). A partir dos anos 1990, foi progressivamente o Iraque que emergiu como o cerne da conflitualidade curda. Mais recentemente, com o desencadear na guerra civil na Síria em 2011, é no seu território que têm ocorrido os conflitos mais sangrentos. Classicamente, o problema é configurável como oposição política e/ou militar entre os grupos ou partidos curdos e o Estado onde residem. No entanto, face à fraqueza do poder estadual no Iraque e na Síria, que não controlam partes significativas do seu território, especialmente na Síria, surgiram actores no conflito com poder de facto. O Daesh (Estado Islâmico), é o caso mais óbvio. Na Síria e Iraque, as suas áreas implantação colidem com as zonas curdas. Sendo um grupo islamista-jihadista oriundo do Islão sunita, o seu zelo fanático coloca-os em rota de colisão com os curdos, apesar destes serem também sunitas na sua grande maioria. A explicação “oficial” é dada na revista Dabiq, nº 2, p. 13, 2013 (ver The Clarion Project, http://www.clarionproject.org/news/islamic-state-isis-isil-propaganda-magazine-dabiq). Os curdos – especialmente o PKK, na Turquia e montanhas fronteiriças do Iraque, e as Unidades de Protecção Popular (YPG), na Síria, são ateus marxistas, e, por isso, um alvo a abater. Até agora, para o governo da Turquia, o Daesh era apenas um grupo islamista-jihadista que fazia o trabalho sujo no terreno contra os curdos. Com os últimos desenvolvimentos no seu próprio território – recente ataque terrorista na cidade fronteiriça de Suruç –, o actual governo conservador-islamista tem múltiplos motivos de preocupação e de irritação. A Turquia dispõe da parte mais substancial da população curda o que aumenta o risco de internalização do conflito. A crescente independência de facto dos curdos do Iraque e Síria – e agora também a simpatia internacional ganha na heróica resistência em Kobani contra o Daesh –, é vista como um mau exemplo para os seus próprios curdos. Tem, ainda, o “amargo de boca” de ter perdido a maioria absoluta nas eleições legislativas de 7/06/2015 devido ao sucesso eleitoral de um partido curdo, o Partido Democrático dos Povos (HDP). Este ultrapassou a nada democrática barreira dos 10% de votos para eleger deputados. Neste contexto, a permissão dada aos EUA para usarem a base de Incirlik, os ataques aéreos ao Daesh e a criação de uma “zona de segurança” em território sírio, são uma cobertura de legitimidade internacional (leia-se da NATO). Política e estrategicamente o maior problema da Turquia é a luta contra os independentistas curdos na conturbada fronteira Sul e não o islamismo-jihadista. A isto acresce a ambição nostálgica de recuperar a influência perdida nas províncias árabes do Império.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Público, 29/07/2015

© Imagem: mapa dos territórios habitados por populações curdas no Médio Oriente (ISN ETH Zurich / University of Texas Libraries, 1986). Versão a preto e branco do autor