O conflito Israel-Hamas: questões incómodas para os protagonistas

Mapa dos territórios de Israel-Palestina

A 23 de Abril de 2014, a Fatah e o Hamas assinavam um acordo de reconciliação. Este acordo parecia ter alguma consistência, sobretudo pela situação do Hamas em Gaza, fragilizado e isolado após a queda do governo da Irmandade Muçulmana no Egipto. Por sua vez, a 8 de Junho, o Papa Francisco reuniu no Vaticano o Presidente de Israel, Shimon Peres, e o líder da Autoridade Palestiniana, Mahmoud Abbas, para uma oração pela paz no Médio Oriente. Este acto, ainda que essencialmente simbólico, trazia alguma esperança, até pelo seu carácter inédito. Todavia, todos estes ténues passos de aproximação se desmoronaram no último mês, numa cadeia trágica de acontecimentos que ainda não sabemos bem como, e quando, finalizará. Recordam-se os factos mais relevantes:

A 12 de Junho três jovens israelitas foram raptados na Cisjordânia, em Hebron.

A 30 de Junho/1 de Julho, os três jovens foram encontrados mortos, tendo sido assassinados pelos seus raptores.

A 4 de Julho extremistas judeus, em represália, assassinam um jovem palestiniano, queimando-o vivo.

Os autores do atentado aos três jovens israelitas terão sido dois membros do clã Qwamesh de Hebron. É um dos clãs palestinianos tradicionais da região, com uma história de violência, ligado ao Hamas. Tem atuado frequentemente de forma autónoma da liderança do grupo islamista radical, situada na faixa de Gaza e fora dos territórios palestinianos, em países árabes. Agora as questões incómodas.

Do lado palestiniano/Hamas:

1. Qual o objectivo político desse acto? A questão é crucial pois o rapto de civis, ou soldados israelitas, para forçar troca por palestinianos prisioneiros detidos em Israel poderia ter uma lógica minimamente compreensível. É uma arma clássica deste tipo de conflitos assimétricos, usada pela parte mais fraca. Mas, nesse caso, por que razão foram brutalmente mortos os jovens israelitas depois do rapto e não mantidos vivos, para servir como moeda de troca política?

2. Se este rapto e assassinato não foi ordenado pela liderança do Hamas, ou esta não teve conhecimento prévio do plano, por que motivo não se demarcou do mesmo?

3. Independentemente da legalidade, moralidade, ou proporcionalidade da resposta israelita – face à qual podemos estar em total rejeição, ou eventualmente sermos mais compreensivos –, a reacção de atacar militarmente Gaza, feudo do Hamas, era largamente previsível. Segue o padrão habitual de represálias israelitas. Será que os líderes do Hamas pensaram na sua própria população, quando não se demarcaram do acto? Ou será que viram aqui, de forma cínica, uma oportunidade para tentar capitalizar com o sofrimento palestiniano, de forma a consolidar a sua base de apoio popular e enfraquecer a Fatah?

Do lado israelita:

1. Por que razão se optou fazer a represália militar sobre os palestinianos (ainda que sobre a estrutura do Hamas) da Faixa de Gaza, quando o incidente que vitimou os jovens israelitas ocorre na Cisjordânia, em Hebron, não sendo claro que tenha sido ordenado pela liderança do Hamas em Gaza ou no exterior?

2. Sendo impossível num ataque militar evitar vítimas civis numerosas em Gaza – é um escasso território de 360km2 densamente povoado, com cerca de 1,6 milhões de pessoas e onde as milícias do Hamas se misturam, deliberadamente, com a população civil –, qual a razão por que não foi evitado esse custo humano (para os palestinianos que já vivem miseravelmente) e político (para Israel, que em nada beneficia internacionalmente na sua legitimidade com as imagens de morte e sofrimento dos seus ataques militares em Gaza)?

3. Para além dos motivos humanitários, não seria mais vantajoso procurar isolar os responsáveis destes actos violentos e actuar só sobre estes, explorando politicamente essa atitude, em vez de uma actuação militar (a qual, seja qual for a lógica, é sempre sentida pelos palestinianos como uma punição colectiva, afastando, cada vez mais, as possibilidades de entendimento?)

Certamente que estas questões não têm uma resposta totalmente objectiva e inequívoca, até porque há factos cujos contornos, ainda hoje, não são claros. A sua resposta, é, também, inevitavelmente, condicionada pela maneira como vemos o conflito israelo-palestiniano e nos identificamos, ou não, com os protagonistas. Todavia, obrigam-nos a reflectir sobre o que pode ter provocado o seu reacender e a quem isso pode interessar, interna e externamente. Fazem-nos suspeitar que, mais uma vez, as más razões prevaleceram na actuação dos actores em conflito. Sugerem ainda como, de ambos lados, embora sob formas específicas da sociedade israelita e palestiniana, existem grupos e facções radicais que parecem ter crescente capacidade de influenciar o rumo dos acontecimentos, no pior sentido. Assim, só podemos esperar a perpetuação deste conflito, que é uma das heranças mais trágicas do século XX.

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo publicado originalmente no Público a 16/07/2014

domínio público  Mapa: Wikimedia Commons / José Pedro Teixeira Fernandes

A tomada de posição chinesa na EDP e as infraestruturas críticas

Edp

 

A compra de parte do capital da EDP pela empresa estatal chinesa “Three Georges” foi objeto de polémica na sociedade portuguesa. Todavia, a questão tem sido essencialmente discutida do ponto de vista das vantagens ou desvantagens económicas e do retorno financeiro para o Estado português. Aqui coloco a questão sob um outro prisma, que é o das infraestruturas críticas – um tema central na abordagem da cibersegurança.

Hoje, a produção de energia elétrica e as redes de distribuição da mesma, a par das telecomunicações, dos transportes, dos serviços de saúde, dos serviços financeiros, etc., são consideradas uma infra-estrutura crítica do Estado, em termos de estratégia de cibersegurança. Ainda no âmbito do pensamento estratégico e de segurança, é também largamente consensual a ideia de que os próximos conflitos internacionais terão uma novo teatro de operações no ciberespaço. Este inclui as referidas infraestrutras críticas, as quais estão, cada vez mais, dependentes de sistemas de informação para o seu funcionamento. A interrogação óbvia é aqui a de saber se a China – e, importa recordar, a “Three Georges” é uma empresa do Estado chinês – não será um parceiro problemático sobre este prisma.

Em qualquer hipótetico, mas plausível, cenário de conflitualidade futura, Portugal e a China estarão, com grande probabilidade, em lados diferentes do conflito. Basta pensar que eventuais tensões entre os EUA e a China, por exemplo, devido à questão de Taiwan ou outro ponto de atrito, Portugal estará, por vontade ou arrastamento derivado dos próprios compromissos na NATO, do lado dos EUA. Podemos imaginar a vulnerabilidade que sentiremos nessa altura, pelo fato de estarmos numa coligação oposta à China e dependente desta num setor crítico para o normal funcionamento do país. Seria bom que se pensasse nestas coisas antes delas poderem acontecer.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, 11/01/2012. Última revisão 5/06/2015

Ligações perigosas: a sedução pós-moderna da irracionalidade

 

Além do impasse ético e do bloqueio da acção política a que este tipo de ideias tendencialmente leva (o que, só por si, já é negativo) é também óbvio que o mesmo procedimento corrosivo pode ser aplicado aos ideais verdadeiramente progressistas, como os direitos humanos.

 

1. Um encontro com uma das mais surpreendentes reviravoltas da vida intelectual europeia do século XX, é o que nos propõe Richard Wolin, um historiador das ideias da City University de Nova Iorque, neste, agora editado em paperback (a edição original é de 2004). Os trabalhos de Richard Wolin, oriundo do movimento da New Left dos anos 60, e que se define como um pensador liberal no sentido norte-americano da palavra (ou seja, não conservador), já deixaram um rasto de polémica e muitos intelectuais pós-estruturalistas e pós-modernistas da Europa e América do Norte, à beira de um ataque de nervos (sobretudo o entretanto falecido Jacques Derrida). Quando falamos em pós-estruturalismo ou pós-modernismo, estamos a referir-nos a uma corrente intelectual ampla e heterogénea que se caracteriza, essencialmente, pela oposição aos ideais racionalistas, humanistas e universalistas do Iluminismo, pela crítica ao conhecimento científico considerado uma forma de poder e de opressão ao serviço da democracia liberal-capitalista, pela desvalorização da racionalidade, pela sustentação do relativismo cultural da verdade e pela defesa das políticas de identidade.

2.  Richard Wolin dividiu a sua abordagem em duas partes. A primeira é dedicada ao que designa como a “ideologia alemã”, ou seja, o contra-iluminismo, empenhado na rejeição da crença na razão e na verdade universal, da possibilidade de progressão social e política pelos valores do liberalismo e da democracia e na negação do humanismo universalista iluminista do século XVIII. Aqui, Wolin analisa sobretudo as ideias e o percurso pessoal e político de pensadores como Nietzsche, Jung, ou Gadamer, efectuando também o que este chama uma “excursão política” sobre o pensamento da nova direita alemã. Insere ainda um capítulo dedicado especificamente à recepção pós-moderna de Nietzsche na América do Norte, após a “escala técnica” feita em França, onde adquiriu roupagens pós-estruturalistas, com o sugestivo título de “Zaratustra vai para Hollywood” (uma alusão irónica ao livro Assim Falava Zaratrustra, de Nietzsche). Neste capítulo, põe em causa o uso selectivo e/ou as omissões deliberadas dos aspectos mais incómodos e comprometedores do pensamento de Nietzsche, usado e abusado pelos nazis como uma espécie de “filósofo da corte”, mas que nos textos dos pós-estruturalistas franceses e seus seguidores (os casos de Michel Foucault e Jaques Derrida são talvez o melhores exemplos), surge com uma imagem “desnazificada”, quase angélica, como um espírito sublime com meras preocupações estéticas e de crítica cultural e social, alheado dos meandros terrenos da política de poder (machtpolitik).

3. Na segunda parte, Wolin aborda o que chama as “lições francesas” e a viagem da “ideologia alemã” para a outra margem do Reno, ou seja, a deslocação do contra-iluminismo com “a crítica da razão, da democracia e humanismo, que teve origem na direita alemã dos anos 20″, para França, pela via, bastante insólita, de parte da esquerda intelectual e política francesa, que se apropriou e interiorizou essas ideias. A análise de Richard Wolin incide sobre os pensadores que, segundo este, tiveram um papel central nessa “transmutação” de ideias reaccionárias e próximas de ideologias totalitárias de direita – fascismo e nazismo – em ideias que passaram a ser apresentadas como “progressistas”, “democráticas” e de esquerda. Esses pensadores foram Georges Bataille, Maurice Blanchot e Paul de Man, passando pela influência filosófica de Martin Heidegger, para culminar no desconstrucionismo de Jacques Derrida e nas implicações do seu relativismo extremo sobre a própria ideia de verdade e de justiça. Há também uma segunda “excursão política”, agora sobre o pensamento da nova direita francesa da Frente Nacional de Le Pen e seus seguidores. O que se torna perturbante ao longo da leitura do livro é a evidenciação das similitudes filosófico-políticas entre o actual pós-modernismo e as suas pretensões de crítica e superação da modernidade, e muitas das ideias dos intelectuais “protofascistas” dos anos 20 e 30, que aderiram a ideologias totalitárias, e que pretendiam erradicar a democracia parlamentar e o liberalismo, revelando a existência de um vasto “património negro” habitualmente omitido ou “embelezado” pelos seus adeptos.

4. Indubitavelmente desconcertante é ver como a ideia de uma esquerda tradicionalmente universalista, herdeira do iluminismo e da revolução francesa, baseando os seus ideais e reivindicações sociais e políticas nas noções de razão, verdade, direitos humanos, justiça e democracia e que estava na linha da frente da luta contra o obscurantismo, se perdeu na nebulosa do pós-estruturalismo/pós-modernismo. Ao assimilar, entre outras influências, o “perspectivismo” de Nietzsche (bem expresso no dito “não há factos, só há interpretações”) parte do pensamento de esquerda — a chamada “nova esquerda pós-marxista” — pretendeu relativizar as normas sociais e/ou jurídicas da sociedade liberal-burguesa, denunciando-as como expressão de interesses particulares ou relações de poder que arbitrariamente favorecem alguns povos, culturas ou grupos sociais em detrimento de outros. Com este fundamento filosófico e epistemológico os “progressistas pós-modernistas” consideram-se em posição de “desconstruir” as normas dos grupos dominantes, ou privilegiados socialmente, e denunciar a hipocrisia social que lhe está subjacente, proclamando, em alternativa, que todas as “culturas são boas”. Além do impasse ético e do bloqueio da acção política a que este tipo de ideias tendencialmente leva (o que, só por si, já é negativo) é também óbvio que o mesmo procedimento corrosivo pode ser aplicado aos ideais verdadeiramente progressistas, como os direitos humanos. Se os virmos sob o prisma do pós-modernismo chegamos à conclusão que são uma expressão da cultura ocidental (o ideário liberal contido nas revoluções francesa e americana) e de uma vontade de poder do ocidente, que pretende impor a “hegemonia cultural” denunciada por Gramsci, não havendo, por isso, razão sólida para que outras culturas os adoptem. Isso é o que dizem também os ideólogos do islamismo radical, como Mawdudi e Qutb. É o que faz também a Organização da Conferência Islâmica, com a sua Declaração dos Direitos Humanos no Islão, que não são os da Declaração Universal das Nações Unidas.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, recensão originalmente publicada sob o título “Oposição à razão” na revista Crítica, 10 de abril de 2007

© Image: capa do Livro de Richard Wolin “The Seduction of Unreason: The Intellectual Romance with Fascism from Nietzsche to Postmodernism” (Princeton University Press, 2006)