A obsessão pela visibilidade nas redes sociais

Digital Vertigo

 

1. Andrew Keen é um crítico cáustico da revolução digital, em especial de algumas consequências desta para a vida em sociedade e alta cultura. No seu anterior livro, “O Culto do Amador” (2006) denunciou, de forma particularmente contundente, a utopia libertário-anárquica ligada à Web 2.0 (simbolizada pelos blogues, Youtube, etc.), qualificando-a como uma nova versão das clássicas utopias políticas dos séculos XIX e XX. Para este, o jargão associado à Web 2.0 não é mais do que uma linguagem absurda, herdada da contracultura hippie dos anos 60/70, agora embelezada e sofisticada numa fraseologia de tipo sociológico. O seu argumento é curioso e vai à raiz política da questão. Em termos ideológicos, trata-se de uma fusão entre “o radicalismo dos anos 60 com a escatologia utópica da tecnologia digital”. O provável resultado pode ser bastante negativo para a sociedade no seu conjunto. Isto porque a Web 2.0 abriu caminho àquilo este chamou “o culto do amador”. Desta forma, estar-se-á a destruir o que usualmente se designa por “alta cultura”, bem como o conhecimento especializado nas mais diversas áreas do saber. Este necessita de anos de formação e treino não sendo compatível com a lógica “amadora” da Web 2.0.

2. No seu mais recente “Vertigo Digital” (2012) – uma alusão ao clássico filme de Alfred Hitchcock –, Keen ataca o “lado negro” das redes sociais (Facebook, Twitter, LinkedIn, etc.). Ainda estou nas páginas iniciais da leitura, mas, tal como o livro anterior, promete polémica, reflexões interessantes e comparações curiosas com o passado. O edifício “panóptico” de Jeremy Bentham, concebido no início do século XIX para vigiar sem ser visto, surge como um precedente exótico da atual (ciber)vigilância. Keen retoma aqui as ideias de Foucault sobre “vigiar e punir” (1975) e os mecanismo de poder nas modernas sociedades capitalistas. Ironicamente, agora é a atual obsessão pela visibilidade do próprio indivíduo que abre caminho a possíveis consequências nefastas. A crescente perda de privacidade é um resultado negativo bastante óbvio. Num cenário ainda pior, poderá abrir-se caminho a um cada vez maior controlo de todas as esferas vida individual, seja pelo Estado, seja por empresas ligadas às tecnologias digitais, nomeadamente os fornecedores de ligações à Internet e de comunicações. A discussão sobre o direito de não querer ter a sua imagem divulgada, ou de que o Estado, ou uma empresa privada, tenha os nossos dados pessoais, ou que saiba onde nós estamos, é um assunto bem sério. No limite, é uma questão de Direitos Humanos. Nada tem a ver com ser avesso à tecnologia ou à inovação (o próprio Keen é um empresário da era digital, em Silicon Valley). Aliás, este lembra como uma discussão legal sobre o direito à não imagem pública, ou seja, à privacidade, emergiu logo com os primórdios da fotografia, no século XIX. Adquiriu, no entanto, com as atuais redes sociais, uma dimensão inimaginável para os nossos antepassados. Para estes, o afastamento da possibilidade de intromissão de estranhos, governantes ou não, na esfera privada do indivíduo, foi um reivindicação central da sua luta pela liberdade, conquistada com grandes sacrifícios incluindo da própria vida.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes

A Política Externa da Turquia face a Israel: o regresso da ambição otomana

A declaração de guerra do Império Otomano em 1914

A questão da Turquia ser membro de pleno direito da União Europeia é problemática […]. No entanto, é provável que a Turquia permaneça na NATO, a não ser que o referido partido [o Refah Partisi/ Partido da Prosperidade ou Partido do Bem-Estar] registe uma vitória eleitoral esmagadora ou que a Turquia, conscientemente, rejeite a herança de Atatürk e se redefina como país chefe de fila do Islão. Um cenário destes é concebível e até desejável para a Turquia, mas improvável num futuro próximo. Qualquer que venha a ser o seu papel na NATO, a Turquia defenderá cada vez mais os seus interesses no que respeita aos Balcãs, ao mundo árabe e à Ásia central.

Samuel P. HUNTINGTON[1]

 

         Introdução

Neste artigo propomo-nos analisar de forma esquemática a política externa da Turquia face a Israel, desde a fundação deste último Estado, em 1948, no antigo território da Palestina do Império Otomano (1516[2]-1918), posteriormente sujeito ao mandato de administração atribuído à Grã-Bretanha (1918-1948) pela Sociedade das Nações (SdN). O principal objectivo é avaliar em que medida a política externa turca – até um passado recente baseada no estabelecimento de relações cooperativas e de parceria estratégica com o Estado judaico e surgindo como uma espécie de prolongamento dos interesses ocidentais na região, sobretudo norte-americanos –, não se alterou ao ponto de por em causa a relação cooperativa e estratégica e até o precário equilíbrio de poderes no Médio Oriente. Subsidiariamente, vai-se procurar perspectivar aquilo que poderão ser as implicações da actual política externa da Turquia face a Israel, para a União Europeia. Recorda-se que a Turquia está, desde 2005, envolvida num processo de negociações de adesão[3] e que a União está também numa fase em que procura ganhar relevância como actor internacional, através da implementação dos novos instrumentos institucionais previstos no Tratado de Lisboa (nomeadamente, uma presidência permanente do Conselho Europeu, um Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, e um Serviço de Acção Externa).

 

  1. As relações entre a Turquia e Israel no quadro da Guerra-Fria

É bem conhecido o ambiente de conflito em que foi proclamado o Estado de Israel[4] por David Ben-Gurion, em Tel-Aviv, a 14 de Maio 1948, marcado pela forte oposição diplomática e militar que, desde o seu momento fundador, enfrentou da parte dos países árabes e islâmicos, especialmente oriunda dos seus vizinhos próximos do Médio Oriente. O contexto histórico da fundação de Israel foi o do holocausto (Shoah) da população judaica às mãos do regime nazi, ocorrido durante a II Guerra Mundial, com a subsequente emigração em massa de populações judaicas para o ex-território sob administração britânica da Palestina, a existência de um plano de partilha deste território entre árabes e judeus aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas (Resolução nº 181 de 29 de Novembro de 1947), a não aceitação deste plano pelos países árabes o que, de alguma maneira, acabou por originar, logo à nascença, um primeiro conflito militar[5]. A grande excepção à hostilidade generalizada do mundo árabe e islâmico foi a República da Turquia, que é um país islâmico não árabe. Na altura, esta era também um Estado recente no mapa político do Sudeste Europeu e Médio Oriente, tendo sido criada um quarto de século antes por Mustafa Kemal Atatürk[6]. No plano do Direito Internacional, a República da Turquia que surgiu como Estado soberano a 29 de Outubro de 1923, assumiu o estatuto de Estado sucessor do Império Otomano, sucedendo-lhe nas embaixadas e nos tratados internacionais de que o Estado otomano tinha sido signatário. No plano interno, o seu fundador pretendeu romper drasticamente com o passado otomano e o seu modelo de sociedade islâmica tradicionalista, vista como retrógrada e ultrapassada, procurando adoptar uma via de modernidade similar à ocidental e criar, de raiz, um conjunto de novas estruturas estaduais de base secularista[7].

Foi esta Turquia, impregnada da visão de Atatürk, que reconheceu de iure o Estado de Israel, em inícios de 1949, adoptando, conforme já referido, uma opção diplomática singular e notoriamente contrastiva com a atitude hostil dos Estados árabes islâmicos face a Israel[8]. Para além disso – e embora as relações entre os dois Estados tivessem, naturalmente, altos e baixos[9] –, prosseguiu, ao longo das décadas seguintes, formas de cooperação, económica e militar com o Estado israelita, que se intensificaram na fase final da Guerra Fria (e na primeira década do pós-Guerra Fria). Que razões político-diplomáticas justificaram esta opção arrojada de política externa da Turquia de, num primeiro momento, reconhecer Israel, e, nas décadas seguintes, desenvolver relações de cooperação e estratégicas, incluíndo o domínio militar? Várias podem ser apontadas. Em primeiro lugar as circunstâncias específicas da Guerra-Fria, as quais levaram também a Turquia a entrar na Aliança Atlântica, em 1952. (Um primeiro passo nessa opção estratégica, foi a participação, na guerra da Coreia, iniciada em 1950, ao lado das tropas norte-americanas). Esta viu na superpotência soviética que emergiu vitoriosa da II Guerra Mundial, na sua ideologia comunista, e nas suas ambições expansionistas, uma ameaça à sua segurança se não mesmo à sua própria sobrevivência como Estado independente. Esta percepção nada tem de surpreendente à luz da história das relações russo-turcas. Durante o século XIX, a principal ameaça à sobrevivência do Império Otomano – o “homem doente da Europa” na célebre frase atribuída ao czar Nicolau I – foi a Rússia imperial. Por sua vez, o seu aliado tradicional, ainda que problemático, para conter a ambição russa sobre territórios otomanos, foi a Grã-Bretanha. Assim, a entrada na Aliança Atlântica e a substituição da garantia britânica pela norte-americana, foi uma natural continuidade de uma visão estratégica enraizada historicamente face ao tradicional inimigo russo/soviético.

Em segundo lugar, as relações difíceis mantidas entre a Turquia e os antigos súbditos imperiais/coloniais otomanos, das ex-províncias árabes do império. Na memória turca ficou gravada a imagem de uma “traição” árabe, em 1916-1918, quando o Império Otomano estava em guerra com a Entente (França, Grã-Bretanha e Rússia), na frente oriental da I Guerra Mundial, e estes se aliaram às tropas britânicas contra o exército otomano. O reconhecimento de Israel, que nasceu no ex-teritório otomano da Palestina, foi – pelo menos numa interpretação que é bastante comum encontrar nos países árabes –, essencialmente um acto de vingança política turca pelos acontecimentos de 1916-1918.

Em terceiro lugar, o conflito de Chipre, desencadeado nos anos 50 do século XX – outro ex-território otomano que passou para administração britânica em 1878[10] – o qual agudizou, ainda mais, as más relações da época entre a Turquia e os países árabes. Estes, e sobretudo o Egipto de Gamal Abdel Nasser, apoiaram os cipriotas gregos e a Grécia contra as pretensões da Turquia e dos cipriotas turcos de partição da ilha, numa curiosa solidariedade entre ex-colonizados pelos otomanos. Para a Turquia, este apoio foi sobretudo interpretado como uma forma de retaliação árabe pelo reconhecimento de Israel. Importa sublinhar que a República da Turquia deste período estava ainda profundamente marcada pelos acontecimentos traumáticos que levaram à dissolução do Império Otomano, bem como pela convicção de continuar a estar cercada por inimigos externos (Grécia, Bulgária, ex-União Soviética, Irão, Iraque e Síria). Esta “fobia de Sèvres”[11], influênciou, naturalmente, a já referida procura de aliados externos para contrabalançar a ideia de cerco.

Em quarto lugar, e de alguma maneira relacionado com os aspectos anteriormente referidos, o problema curdo[12] da Turquia. Embora não tenha tido um papel relevante na altura do reconhecimento de Israel em 1949, influenciou, a partir dos anos 80, o reforço das relações de cooperação e estratégicas com Israel. De facto, este conflito, que esteve adormecido[13] nas décadas subsequentes ao final da II Guerra Mundial, reacendeu-se em 1984, em larga escala, com o revolta armada do Partiya Karkeran Kurdistan (PKK)[14]. Isto colocou, inevitavelmente, a questão curda no centro das preocupações de segurança e políticas (internas e externas) da Turquia. Do ponto de vista de política externa, o que mais preocupava a Turquia era, naturalmente, o apoio à causa curda no exterior, quer o político, quer o militar. Preocupação bem real e intensificada pelo facto de existirem populações curdas significativas nas regiões fronteiriças contíguas do Iraque, Irão e Síria. Daí que, no pico do conflito, ocorrido na segunda metade dos anos 80 e prolongado durante a década de 90, nos meios diplomáticos turcos se falasse de uma “coligação de dois Estados e meio” contra o seu país (os dois Estados eram a Síria e a Grécia e o “meio Estado” era o PKK liderado por Abdullah Öcalan[15]).

Por tudo isto, ao longo das várias décadas de Guerra Fria, a Turquia acabou também por interiorizar as limitações da Aliança Atlântica para certos interesses do país – o primeiro marco desse alerta foi a crise de Chipre de 1963/1964 –, passando, ao mesmo tempo, a sua política externa a reflectir a preocupação de encontrar novos aliados para ameaças regionais específicas. Note-se que, face à ameaça da superpotência soviética, a NATO e os EUA continuavam a ser vistos como o melhor aliado possível. Todavia, já quanto a um eventual conflito no Médio Oriente com os seus países vizinhos, desencadeado ou pela questão curda, ou por disputas teritoriais, ou outro qualquer motivo, a situação era diferente. Face a estas ameaças específicas, a cooperação político-militar com Israel acabou por surgir como uma opção particularmente interessante. Não só Israel não tinha qualquer reivindicação territorial sobre a Turquia, como, em caso de conflito militar, poderia ser um aliado importante para efectuar um contra-cerco à Síria de Hafez Al-Assad ou ao Iraque de Saddam Hussein – os mais ambiciosos e agressivos Estados árabes, a partir dos anos 70, sucedendo, nesse papel, ao Egipto de Gamal Abdel Nasser. Foi, aliás, esta lógica estratégica que acabou por levar, já no pós-Guerra-Fria, como veremos mais à frente, à celebração, em meados da década de 90, de um acordo formal de cooperação e treino militar entre os dois Estados[16].

 

  1. A política externa da Turquia face ao ambiente geopolítico do pós-Guerra Fria

As transformações políticas ligadas ao final da União Soviética e ao “vazio” que se gerou em grande parte dos territórios que estiveram sob a sua esfera de influência durante a Guerra Fria, tiveram implicações significativas na geopolítica do Sudeste Europeu (Balcãs) e do Cáucaso até à Ásia Central. A política de “isolacionismo” face aos ex-territórios otomanos e turcófonos – a excepção mais notória foi o caso de Chipre –, que caracterizava a república turca desde a sua fundação, começou, já neste período, a sofrer algumas mudanças assinaláveis. Em ambas regiões, a Turquia tentou aproveitar a mutação geopolítica em curso para projectar, de alguma forma, a sua influência nas mesmas. Neste contexto, as ligações históricas e culturais, os laços afectivos que persistiam com algumas populações e territórios, e a nostalgia do passado otomano, tornaram-se, subitamente, num interessante trunfo diplomático-estratégico. No caso do Balcãs, essas ligações derivam da multisecular presença do Império Otomano na região, iniciada nas últimas décadas do século XIV e que só terminou com as duas guerra balcânicas 1912/1913. A conexão mais óbvia são as diversas populações islamizadas pelos otomanos, que existem um pouco por toda a região, especialmente numerosas no caso da Bósnia-Herzegovina (que ascendeu à independência com o fim sangrento da ex-Jugoslávia), do Kosovo e da Albânia. Para além disso, existem, também, memórias com forte simbolismo histórico e político ligadas aos Balcãs, por outras razões. O próprio fundador da República, Mustafa Kemal, nasceu em finais do século XIX em Salónica, na Macedónia, cidade que, até à primeira guerra balcânica de 1912, fez parte do Império Otomano para depois ser integrada na actual Grécia. Quanto à outra área onde a Turquia tentou projectar a sua influência foi, como já referimos, a dos territórios ex-soviéticos do Cáucaso até à Ásia Central. A alteração do mapa político na região levou ao aparecimento de novos Estados independentes “turcófonos” (Azerbaijão, Turquemenistão, Uzebequistão, Cazaquistão e Quirguistão – os quais, juntamente com a Turquia, formaram um grupo informal conhecido por “T5”). Esta alteração geopolítica fez também renascer algumas ambições de panturquismo. Estas germinavam sobretudo no início do século XX, na fase terminal do Império Otomano, sendo, na época, o líder dos jovens turcos, Enver Paxá[17], o principal rosto dessa ambição política de reconstituir o império otomano/turco para Oriente. Por tudo isto, é inegável constatar que se encontra nos primeiros tempos do pós-Guerra Fria a génese de uma reconfiguração da política externa turca em moldes neo-otomanos. No entanto, um aspecto importante a reter, é que esta foi efectuada de forma cautelosa e pragmática, e com o cuidado de preservar, ao mesmo tempo, a orientação diplomático-estratégica anterior, de tipo pró-ocidental. Ou seja, procurando, pelo menos no que dependia da Turquia, manter uma ligação forte às instituições de segurança ocidentais (leia-se à NATO), e dar continuidade às relações estratégicas privilegiadas com os EUA. Quanto a Israel, e conforme já referimos, a relação estratégica, durante a primeira década do pós-Guerra Fria, foi até reforçada ao nível da cooperação militar (assistindo-se, também, ao reforço das relações económicas e político-militares). Neste último caso, importa olhar mais de perto para as razões da intensificação da parceria estratégica com Israel, as quais só podem ser compreendidas quer tendo em conta as dinâmicas internacionais mais gerais, quer olhando mais especificamente para dinâmicas do ambiente geopolítico envolvente da Turquia[18]. É isto que explica Mustafa Kibaroğlu, ao evidenciar o que mudou no ambiente internacional pós-Guerra Fria, as suas implicações sobre o papel da NATO (e da Turquia nesta organização), e as ameaças que, entretanto, surgiram no Médio Oriente, com implicações directas sobre a segurança do país:

What has changed? The 1990s brought about far-reaching shifts in Turkey’s geo-strategic position. Since the breakup of the Warsaw Pact and the fall of the Soviet Union, NATO’s role has lost some of its clarity. NATO found several new missions in the Balkans, but the eastward expansion of the European Union (EU), and the German and French led efforts to establish a “European army” have raised questions about NATO’s future role. Turkey, positioned at the far edge of the NATO alliance and outside the EU, now asks itself whether it still comes completely under any collective umbrella.

At the same time, the potential threats from the Middle East have grown exponentially. Countries on Turkey’s Middle Eastern borders have stockpiles of chemical and biological weapons, and growing arsenals of ballistic missiles. Beyond the potential threats emanating from the neighboring states, the terrorist groups based in the region are menacing and may have chemical and biological agents at their disposal. Their possible deployment of crude weapons of mass destruction looms over Turkey’s citizens and military forces[19].

Face a estas preocupações securitárias dirigidas, em especial, aos seus vizinhos belicosos do Médio-Oriente, o que poderia um país de pequena dimensão geográfica e populacional, como Israel, oferecer de aliciante a um Estado da dimensão territorial, com as capacidades militares e as ambições políticas da Turquia? Ainda segundo Mustafa Kibaroğlu, Israel tinha tecnologia e meios militares defensivos bastante adequados para lidar com as ameaças que se desenhavam num cenário de eventual conflito com os vizinhos árabes de ambos os Estados:

Turkish planners have been impressed by Israel’s Arrow missile system, precisely because it has been designed to meet the capabilities of Turkey’s immediate neighbors. Sheer national interest may be driving Turkey toward an informal pact, linking it with the United States and Israel in an effort to counter the threat of ballistic missiles. Nor can Turkey afford to ignore the scenario of a regional conflagration, in which Turkey might find itself alongside the United States and Israel. No one can estimate the probability of such a scenario, but it is sufficiently probable to justify some joint planning[20].

Para além das vantagens estritamente militares, poderíamos apontar outras nos planos da cooperação económica e política. Em termos políticos, a parceria estratégica com Israel tinha também o atractivo de poder beneficiar da ajuda do lóbi judaico, em países onde este era influente, como nos EUA – pelo menos a expectiva turca era essa. Este atractivo não era uma aspecto menor para questões políticas sensíveis, como por exemplo, o reconhecimento do massacre dos arménios durante a I Guerra Mundial como um genocídio. A ideia era, naturalmente, que o lóbi judaico ajudasse a bloquear qualquer resolução política reconhecendo os massacres como genocídio[21], numa altura em que a diáspora arménia estava politicamente bastante activa, apresentando, anualmente, ao congresso norte-americano, propostas de resoluções neste sentido. Um outro aspecto interessante da intensificação da relação estratégico-militar da Turquia com Israel é o da situação política interna turca, na época em que o acordo formal foi assinado (1996). Este foi realizado quando, pela primeira vez no historial da república, um partido de base islamista tinha chegado ao governo – o Refah Partisi/Partido da Prosperidade ou Partido do Bem-Estar de Necmettin Erbakan. Tal facto não deixa de ser surpreendente, sobretudo sendo bem conhecidas as posições anti-judaicas dos islamistas Refah Partisi e o seu militantismo político-religioso a favor das causas muçulmanas em geral e do palestinianos em particular. Todavia, este facto deve ser interpretado como uma demonstração de força do establishment secular – civil, e, sobretudo, militar –, bem como uma prova de que, na altura, as relações de poder estavam do seu lado, algo que, ao longo da última década, se alterou drasticamente e que não deixou de se projectar no rumo da própria política externa como veremos em seguida.

 

  1. Nacionalismo “gaulista”, ideologia islamista e pragmatismo económico

Nos últimos anos, as relações entre a Turquia e Israel sofreram uma deterioração significativa, a qual, pela mediatização de algumas das controvérsias que estão na sua origem, não passou sequer despercebida da opinião pública menos interessada nas questões internacionais e do Médio Oriente. Sintetizando essas controvérsias, podemos elencar como mais relevantes os seguintes acontecimentos: i) As eleições legislativas que decorreram em 26 de Janeiro de 2006, nos territórios da Autoridade Palestiniana, deram a vitória[22] ao Ḥarakat al-Muqāwamat al-Islāmiyyah/Movimento de Resistência Islâmica (HAMAS) liderado por Ismaïl Haniyeh, o qual concorreu sob o nome de “Lista da Mudança e Reforma”. Em inícios de Fevereiro seguinte, o governo turco foi o primeiro de um Estado não-árabe a receber uma delegação de alto nível do movimento islamista radical palestiniano, causando grande irritação no governo do ex-Primeiro-Ministro Shimon Peres[23]. Note-se que, mesmo entre os palestinianos, a ascensão ao poder do HAMAS esteve longe de ser um processo pacífico. Logo após as eleições, assistiu-se a um clima de confrontação entre a Fatah (o movimento do Presidente Mahmoud Abbas) e o HAMAS, que se intensificou em Junho de 2007, com graves confrontos entre as duas facções. Na sequência desta confrontação violenta, o Presidente da Autoridade Nacional Palestiniana, Mahmoud Abbas, sediado na Cisjordânia, em Ramallah, afastou Ismaïl Haniyeh do cargo de Primeiro-Ministro. Todavia, este manteve o poder de facto na Faixa de Gaza (local de onde a Fatah foi expulsa pelo Hamas), não reconhecendo o novo governo palestiniano nomeado por Mamoud Abbas. ii) A troca azeda de palavras, no Fórum Económico Mundial de Davos, a 29 de Janeiro 2009, entre o Primeiro-Ministro turco, Recep Tayyip Erdoğan e o Presidente israelita, Shimon Peres, a propósito das incursões israelitas na Faixa de Gaza, onde este acusou Israel de “saber muito bem como matar”, abandonando, em seguida, o palco de Davos. Esta mediática confrontação verbal valeu-lhe, no regresso à Turquia, uma entusiástica recepção com milhares de pessoas nas ruas a celebrar o “herói de Davos” e um significativo aumento da popularidade junto do mundo árabe-islâmico[24]. Quanto ao HAMAS, o seu líder Ismaïl Haniyeh, agradeceu calorosamente à Turquia a intervenção do seu Primeiro-Ministro, dizendo mesmo que “Erdoğan tornou-se a nossa voz” e chamando à Turquia “o novo otomano”[25]. iii) Em inícios de Outubro de 2009 a Turquia cancelou o convite tradicionalmente feito a Israel para participar num exercício militar aéreo conjunto, realizado anualmente desde meados da década de 90, no qual participavam também os EUA e outros membros da NATO. Quase em simultâneo com o cancelamento desse convite à força aérea israelita, a Turquia convidou a Síria – um dos inimigos tradicionais de Israel –, para exercícios militares conjuntos, ainda que limitados, e anunciou a criação de um conselho de cooperação estratégica com esse país[26]. iv) O acordo patrocinado pela Turquia, juntamente com o Brasil, negociado em 16 e 17 de Maio de 2010 que, segundo Recep Tayyip Erdoğan e o seu Ministro dos Negócios Estrangeiros, Ahmet Davutoğlu, permitiria resolver a questão do programa nuclear iraniano[27] sem necessidade de mais sanções pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Contudo, a 9 de Junho de 2010, o Conselho de Segurança aprovou uma quarta ronda de sanções contra o Irão, tendo a Turquia (e o Brasil) que, actualmente, são membros não permanentes do Conselho de Segurança, votado contra essas novas sanções[28]. Neste assunto – que é provavelmente o mais delicado do actual panorama político do Médio Oriente –, a Turquia tem mantido uma atitude diplomático-estratégica favorável[29] ao que considera ser o direito do Irão em ter energia nuclear (aparentemente, dando toda a credibilidade ao discurso oficial do Presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, de que o seu programa nuclear é meramente para fins pacíficos e respeita integralmente o dispositivo do Tratado de Não Proliferação Nuclear – TNP). Isto em clara dessintonia não só com Israel (que vê no prosseguimento do programa iraniano um esforço para se tornar numa potência militar nuclear e uma ameaça à sua própria existência como Estado), como das próprias potências ocidentais que têm estado envolvidas nas negociações – EUA, França, Reino Unido e Alemanha –, das quais é aliada na NATO. v) Por último, o recente caso da expedição marítima composta por seis barcos e cerca de 700 pessoas oriundas de mais de três dezenas países, oficialmente qualificada como sendo uma operação de ajuda humanitária. Esta flotilha foi organizada pela İnsan Hak ve Hürriyetleri ve İnsani Yardım Vakfı/Fundação para os Direitos do Homem, da Liberdade e a Ajuda Humanitária (também conhecida sob a sigla IHH), uma ONG sediada em Istambul, próxima dois meios islamistas e, ao que tudo indica também, dos próprios círculos dirigentes[30] do actual governo turco do Adalet ve Kalkinma Partisi/Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP). A 31 de Maio de 2010, quando a flotilha navegava no Mediterrâneo oriental já próximo de Gaza, ocorreram graves incidentes entre esta e a marinha israelita. Os acontecimentos terão ocorrido mais ou menos da seguinte maneira: na altura dessa aproximação da flotilha, Israel intimou aos comandantes dos navios para entregarem a ajuda humanitária no porto de Ashod, de forma a esta ser previamente inspeccionada e depois entregue por terra em Gaza, pedido que foi recusado. Face à atitude de recusa em acatar essas indicações, comandos navais israelitas assaltaram a flotilha de forma a tentar obrigá-la a acatá-las pela força[31]. Nessa tomada de assalto, os incidentes mais graves ocorreram com o maior navio, o Mavi Marmara, cujos passageiros entraram em confronto com os comandos israelitas das forças especiais Shayetet 13. Dos confrontos resultou a morte de cerca de uma dezena de activistas, a grande maioria de nacionalidade turca, ferimentos em algumas dezenas e também entre os comandos das forças navais israelitas.

Para além das controvérsias factuais que os envolvem, de que um exemplo óbvio é o caso da flotilha, como interpretar estes acontecimentos e encaixá-los na actual linha de política externa da Turquia e nas suas relações com Israel? Serão actos mais ou menos fortuitos e isolados, sem nenhum significado político-estratégico especial, ou podemos inferir deles um padrão consistente e deliberado de actuação? Na resposta a estas questões, verificamos que não é só entre os analistas e especialistas europeus e ocidentais que existem leituras bastante divergentes sobre o alcance dos acontecimentos. Curiosamente, ou talvez não se tivermos em contas as fracturas profundas que atravessam a sociedade turca, entre os próprios especialistas turcos radicados no Ocidente (EUA) existem divergências tanto ou mais significativas que nos europeus e ocidentais. Por exemplo, Ömer Taşpınar rejeita que a Turquia esteja a introduzir uma visão ideológica islamista na sua política externa. Segundo este, trata-se, antes, de uma nova visão diplomático-estratégica de um Estado mais confiante em si próprio, que adoptou uma atitude mais assertiva e independente no plano internacional. Estará então a emergir aquilo que qualifica como um “gaulismo turco” – ou seja, uma espécie de nacionalismo a la turca –, o qual configura uma visão de política externa que transcende a divisão entre islamistas e secularistas:

The flotilla incident and Turkey’s “no” vote to new sanctions against Iran at the United Nations Security Council once again triggered a familiar debate about Turkey’s alleged “Islamic” turn in foreign policy. […] Long before the recent turn of events, I argued that if current trends continue, what we will see emerging in Turkey is not an Islamist foreign policy but a much more nationalist, defiant, independent, self-confident and self-centered strategic orientation in Ankara. Because of similarities between the French and Turkish political tradition, I think it helps to think of this new Turkish sense of self-confidence, nationalism, grandeur and frustration with traditional partners such as America, Europe and Israel as “Turkish Gaullism.” One should not underestimate the emergence of such a new Turkey that transcends the Islamic-secular divide because both the Kemalist neo-nationalist (ulusalcı) foreign policy and the Justice and Development Party’s (AK Party) neo-Ottomanism – the ideal of regional influence – share the traits of Turkish Gaullism[32].

Por sua vez, Soner Çağaptay tem uma interpretação substancialmente diferente. Embora não rejeite a existência de componente nacionalista de tipo “gaulista”, faz notar que está em curso uma transformação significativa na identidade da Turquia sob o governo do AKP, iniciada com a sua chegada ao poder em finais de 2002, a qual está imbuída de uma visão do mundo islamista e acabou por trazer também implicações de relevo na política externa do país:

After seven years of the AKP’s Islamist rhetoric, public opinion has shifted to embrace the idea of a politically united “Muslim world.” According to independent polling in Turkey, the number of people identifying themselves as Muslim increased by ten percent between 2002 and 2007; in addition, almost half of those surveyed describe themselves as Islamist. […] The transformation of Turkish identity under the AKP has potentially massive ramifications. Guided by an Islamist worldview, it will become more and more impossible for Turkey to support Western foreign policy, even when doing so is in its national interest. Turkish-Israeli ties – long a model for how a Muslim country can pursue a rational, cooperative relationship with the Jewish state – will continue to unravel. Such a development will be greeted only with approval by the Turkish public, further bolstering the AKP’s popularity. Thus, the party will be able to kill two birds with one stone: distancing the country from its former ally and shoring up its own power base[33].

Sendo este um assunto naturalmente polémico, parece-nos que, pelo menos no caso que directamente nos ocupa, que é o da análise da política externa da Turquia face a Israel, tem substância o comentário de Soner Çağaptay, quando chama à atenção para a emergência, sob o governo do AKP, de uma adicional dimensão ideológica islamista na política externa do país, a qual não existia no início desta década. Esta é verificável não só na retórica político-diplomática como nas suas actuações internas e externas, nomeadamente nos acontecimentos atrás mencionados, os quais, sob este prisma, não são meros factos isolados ou fortuitos. Na realidade, a política externa da Turquia apesar de, pelo menos desde o final da Guerra Fria, ser ter tornado mais multifacetada e complexa, adquiriu, nos últimos anos, tonalidades não usuais. Assim, o dado novo é de facto ter passado a incorporar uma componente ideológica islamista, a par de uma componente nacionalista de tipo “gaulista” – não sendo esta última propriamente uma faceta nova, pois, de alguma maneira, está inscrita na matriz kemalista do Estado turco –, e de uma componente mais pragmática, ligada sobretudo aos crescentes interesses económico-empresariais do país, que é a décima sétima economia mundial[34].

Analisando a introdução, ocorrida nos últimos anos, de uma componente ideológica islamista na política externa, pode-se dizer que não se trata de algo surpreendente para um observador atento do país e conhecedor do seu passado histórico-político. De facto, se olharmos as ambições do actual governo do AKP – que, oficialmente, afirma prosseguir apenas uma benévola política de “zero conflitos” na sua vizinhança –, à luz da sua ideologia conservadora-nacionalista-islamista e do passado histórico de “grandiosidade” otomana que a parece inspirar, essa componente adquire um sentido histórico e político. Basta lembrar aqui que, no caso da política externa face a Israel e ao conflito israelo-palestiniano, ao contrário da Europa onde a memória histórica da questão não costuma ir mais além do que a I Guerra Mundial – acordo Sykes-Picot[35] (1916) e declaração do Foreign Office britânico (Declaração Balfour, 1917) prometendo um território aos judeus na Palestina –, na Turquia a percepção da cadeia de acontecimentos que explicam o actual mapa político é outra e bem mais longa. Os trinta anos de domínio administrativo-colonial britânico nos actuais territórios de Israel/Palestina (1918-1948), diluem-se perante uma bem conhecida presença imperial e colonial otomana, num longo período histórico de quatro séculos. Esse passado confere à Turquia uma ligação óbvia à questão palestiniana e reforça a convicção e ambição, no seu governo e opinião pública, de poder ter um papel significativo no rumo dos acontecimentos.

Quanto à compreensão, se não mesmo simpatia, mostrada pelo HAMAS na Palestina que contrasta com o pouco entusiasmo mostrado pela Fatah, também se podem explicar pela conexão histórica, cultural, e, sobretudo, ideológica. O AKP de Recep Tayyip Erdoğan e Abdullah Gül[36], é herdeiro dum conjunto heterogéneo de influências da direita conservadora, religiosa e nacionalista da Turquia. Este absorveu, em parte, o ideário de sucessivos partidos islamistas anteriores formados pelo seu emblemático líder, o já referido Necmettin Erbakan. Neste contexto, a abertura aos “irmãos muçulmanos” do HAMAS surgiu com uma certa naturalidade face às raízes ideológicas e simpatias do eleitorado do AKP. Todavia, importa aqui lembrar que o HAMAS prevê, no seu programa político[37], a nível interno, a instauração da Sharia, a lei islâmica, e, a nível externo, a erradicação do Estado de Israel cuja existência até agora se tem recusado a reconhecer, objectivos que não parecem preocupar particularmente o actual governo turco. No passado, mesmo na altura em que o islamista Necmettin Erbakan do Refah Partisi (1996-1997) foi Primeiro-Ministro, as circunstâncias internas (sobretudo) e externas, teriam, muito provavelmente, refreado[38] o governo de uma movimentação diplomática similar. O facto de este actualmente não sentir tais constrangimentos é bem revelador da mudança do statu quo, interno e internacional.

 

  1. A política externa da Turquia face a Israel num cenário de adesão à União Europeia

Um dos aspecto mais complexos de uma eventual adesão da Turquia é, sem dúvida, o das implicações que acarretará para a política externa da União. Como vimos, actualmente há divergências muito sensíveis nos dois assuntos fundamentais do actual Médio Oriente – o programa nuclear do Irão e o conflito israelo-palestiniano, nomeadamente quanto ao papel do movimento islamista radical HAMAS neste. O governo do AKP tem seguido um linha de política externa muito própria e independente, de relacionamento com o mundo islâmico em geral e com os antigos territórios do Império Otomano em particular, Israel incluído, procurando projectar a Turquia como potência regional dominante. Mas, mais problemático do que esse “nacionalismo gaulista” é o facto de a política externa do país ter adquirido, recentemente, uma adicional dimensão ideológica de que as relações com Israel, são, provavelmente, o caso mais visível para a opinião publica europeia e ocidental. Apesar do discurso diplomático oficial não o admitir, esta transformação não deixa de ter consequências potencialmente preocupantes para os seus aliados tradicionais. Para os EUA, tende a implicar um aliado mais imprevisível e até mesmo a trazer um novo competidor[39] para os seus interesses na região. Para Israel, no pior cenário, arrisca-se a desequilibrar a delicada balança de poderes no Médio Oriente em seu desfavor, aumentando a probabilidade de confronto militar com o Irão, a Síria e o Hezbollah libanês. Para a União, pouco consistente politicamente, num cenário de futura integração da Turquia, esta política é uma potencial fonte de atritos e de bloqueios para os seu já bastante delicados equilíbrios institucionais.

Na realidade, muito se tem discutido se a Turquia tem, ou não, condições para integrar a União. Mas a questão aqui é também a de saber se a União está preparada para integrar a Turquia. Esta, para além do aspectos jurídico-formais vertidos nos seus Tratados “constitucionais”, assenta num conjunto de equilíbrios e compensações internos complexos, que consubstanciam verdadeiras regras estruturantes não escritas. Em termos de equilíbrios políticos – e com reflexos naturais na configuração da política externa da União –, um equilíbrio fundamental, desde a sua fundação, é aquele que se estabelece entre os países grandes (os caso mais óbvios são a Alemanha e a França, mas também o Reino Unido), os quais têm um peso fundamental na decisão política[40], e nas acções internas e externas. Em contrapartida, uma parte significativa dos países pequenos e médios (como por exemplo, Grécia e Portugal, aos quais acresce agora a generalidade dos doze novos Estados-membros), vê o seu reduzido peso na decisão política da União compensado noutras áreas, nomedamente em matéria de ajudas estruturais. Na linguagem crua da realpolitik, dir-se-à que quem paga o benefício económico dos outros é também quem mais decide politicamente. Todavia, o dado novo relevante é que num cenário de futura adesão da Turquia, não só a configuração de uma política externa europeia, minimamente coerente e articulada, aumenta significativamente de dificuldade – a actual política externa turca face a Israel (e ao Médio Oriente em geral) deixa bem claro o problema –, como os equilíbrios “genéticos” da União são também afectados[41].

 

  1. Reflexões finais

Pela análise efectuada, parece-nos poder-se inferir que estamos perante uma progressiva, por vezes subtil, outras vezes explícita reconfiguração da política externa da Turquia face a Israel, a qual surgiu nos anos mais recentes imbuída de uma visão ideológica de tipo islamista, que não existia no início desta década. Esta componente ideológica veio complexificar a política externa do país e adicionar-se às mais tradicionais vertentes de tipo “nacionalismo gaulista” e pragmática, ligada sobretudo às questões de diplomacia económica. De um ponto de vista histórico-político, a actual orientação diplomática do governo do AKP face a Israel e ao Médio Oriente denota também aquilo que pode ser visto como o regresso de uma ambição otomana, ou seja uma vontade de restaurar a influência política que o Império Otomano outrora teve no Sudeste Europeu e Médio Oriente. Apesar da diplomacia europeia e norte-americana terem bastante relutância em o admitir, pelo menos a nível oficial, esta reconfiguração, de que as relações com Israel são um exemplo claro, não deixa de ter consequências potencialmente preocupantes para os seus aliados tradicionais na Europa e Ocidente. Pensando a questão em termos prospectivos, o caso mais problemático não é para os EUA, como vulgarmente é sugerido nas análises dos media, mas para a União, pelo seu envolvimento no processo de adesão da Turquia, pela sua natureza “constitucional” e pelas complexas implicações sobre a sua política externa e delicados equilíbrios institucionais.

Quanto às explicações, importa notar que esta transformação da política externa turca ocorrida na última década resulta certamente de factores geopolíticos externos – alguns dos quais com origem nas grandes transformações trazidas pelo final da Guerra Fria –, mas também das mudanças sociais e identitárias ocorridas no âmbito da esfera da política interna, muitas vezes subestimadas na Europa e nos EUA. Uma possível interpretação dessas transformações sugere que, na sua raiz mais longínqua, se encontra a maneira como a própria República da Turquia se constituiu em 1923. Na altura, o abandono da legitimidade islâmica tradicional que caracterizava o Estado teocrático otomano não foi a expressão de uma vontade popular e democrática esmagadora, mas o projecto de uma elite modernizadora e secularista liderada por Atatürk. Este projecto foi posto em prática segundo um esquema em grande parte autoritário. Assim, para além da sua génese autoritária, o drama actual da Turquia secular resulta do facto do modelo se ter enraizado apenas nas instituições ligadas ao aparelho estadual: o exército, o aparelho judicial, a administração pública e as escolas públicas. Nas massas e nas organizações da sociedade civil, a cultura secularista e modernizadora de Atatürk e dos seus seguidores foi assimilada, na maior parte dos casos, de forma superficial. Actaulmente, está numa fase de reversão em favor de valores islâmicos e de uma eventual modernidade alternativa. A política externa e as relações com Israel são hoje, de alguma maneira, um reflexo dessa transformação, a qual vem detrás mas teve um impulso político decisivo sob os governos do AKP desde 2002.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, “A Política Externa da Turquia Face a Israel: o Regresso da Ambição Otomana” in Nação & Defesa nº 127 (2010): 159-180. Versão sem notas

domínio público Imagem: foto (domínio público / Wikipedia), declaração de jihad contra a Grã-Bretanha, França e Rússia, após a entrada do Império Otomano na I Guerra Mundial (Istambul, 14/11/1914)

A memória otomana nos conflitos dos Balcãs

Tropas otomanas durante as guerras balcânicas de 1913-1913

 

Nesse dia de Novembro, uma longa caravana cheia de cavalos chegou à margem esquerda do rio e parou aí para passar a noite. O aga dos janissários, com uma escolta armada, voltava para Istambul após ter colhido das aldeias da Bósnia oriental o número de crianças cristãs determinado para o tributo de sangue. Era já o sexto ano desde a última recolha deste tributo de sangue, e por isso, desta vez, a tarefa foi fácil e rica; o número necessário de rapazes saudáveis, espertos e bem-parecidos entre os dez e os quinze anos foi encontrado sem dificuldade, apesar de muitos pais terem escondido os seus filhos nas florestas, ensinando-os como parecerem meios idiotas, vestindo-os com farrapos e deixando-os ficar imundos, para evitar a escolha do aga. Alguns foram mesmo ao ponto de mutilar os seus próprios filhos, cortando-lhe um dos seus dedos com um machado.

Ivo ANDRIĆ [1]

 

1. É ao escritor e diplomata jugoslavo, Ivo (Ivan) Andrić, prémio Nobel da Literatura em 1962, nascido no final do século XIX (1892) em Dolac, perto de Travnik, na Bósnia, no seio de uma família de croatas católicos que se deve o romance de ficção histórica Na Drini Cuprija/A Ponte sobre o Drina, originalmente publicado em servo-croata (1945). Nessa original obra de literatura, onde a ficção e a os factos históricos se misturam de uma maneira intrincada, Ivo Andrić transformou a ponte sobre o Drina no fio condutor da narrativa onde relata a história conturbada da Bósnia em particular, e dos Balcãs em geral, desde a conquista dos bósnios pelos otomanos, em meados do século XV (1468), até à chegada dos áustro-hungaros no ultimo quartel do século XIX (1878) e aos acontecimentos trágicos da I Guerra Mundial (1914-1918). Na origem do trabalho literário concebida por Ivo Andrić detecta-se não só a influência marcante da tradição oral e dos relatos históricos de cariz popular que se podiam encontrar na sua Bósnia nativa, na transição do século XIX para o século XX, como a turbulência dos acontecimentos políticos que marcaram toda a sua existência. Ao longo da sua vida, Andrić assistiu ao fim dos impérios que governavam a maioria dos Balcãs – o Império Otomano e o Império Austro-Húngaro – passou por duas guerras mundiais e conheceu três «nacionalidades»: nasceu como súbdito da Áustria-Hungria até 1918; depois foi cidadão do Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, mais tarde designado por Jugoslávia; quando, faleceu, em 1975, era cidadão da República Socialista Federal da Jugoslávia, (re)fundada por Josip Broz (Tito) no pós II-Guerra Mundial; se tivesse podido viver até finais do século XX, teria ainda tido uma quarta «identidade», devido à metamorfose regressiva dos jugoslavos em eslovenos, croatas, bósnios, macedónios, montenegrinos, sérvios, kosovares etc., a partir de 1991.

A violência das guerras que assolaram a Jugoslávia associadas à complexidade e étnico-religiosa das suas populações, mostraram, para grande surpresa da generalidade dos europeus/ocidentais, a existência de uma Jugoslávia e de uns Balcãs num registo histórico bastante diferente da island of peace da União Europeia, construída no pós-II Guerra Mundial. Este diferente tempo histórico de grande violência real, que tanto surpreendeu e consternou a opinião pública, os media e os políticos europeus/ocidentais, por ter feito sobressaltar a tranquilidade da «paz perpétua kantiana» em que imaginavam viver, e pela ininteligibilidade das causas do conflito, levou frequentemente a uma visão da região como uma espécie de não-Europa. Esta atitude típica dos europeus/ocidentais do final do século XX denota certa facetas de continuidade histórica face às atitudes e percepções dos políticos e opinion makers novecentistas, quando tiveram que lidar com as diversas crises da «questão do Oriente»[2], resultantes da retirada do Império Otomano dos territórios do sudeste europeu. Vale a pena recordar algumas das mais célebres afirmações atribuídas a políticos da época. No início do século XIX, Clemens Wenzel Nepomuk Lothar, mais conhecido como príncipe de Metternich e chanceler do Império Austríaco, principal artífice da ordem europeia saída Congresso de Viena de 1815, afirmava que «a Ásia começa na Landstrasse», a estrada real que saía para o Sul e para Leste e que ligava Viena às planícies da Hungria. Por sua vez, já na segunda metade do século XIX, Otto von Bismarck, o «chanceler de ferro» da Prússia e unificador da Alemanha imperial novecentista dizia que «os Balcãs não valiam os ossos de um soldado da Pomerânia». Na visão típica dos europeus século XIX a Península Balcânica era o início de um Próximo Oriente retrógrado, intratável e marcado pelo «despotismo oriental». Como afirmava o escritor vitoriano Rudyard Kipling, o «Oriente era Oriente e o Ocidente era Ocidente» e pelos parâmetros europeus novecentistas o sudeste europeu era mesmo «Oriente»[3].Se abstrairmos da linguagem «eurocêntrica» e «politicamente incorrecta» do século XIXvemos que a percepção europeia/ocidental é essencialmente similar: para os europeus do final do século XX e início do século XXI os Balcãs são uma espécie de «outro» quase intratável, que rejeita irracionalmente as virtudes da paz kantiana, os direitos humanos e o multiculturalismo em nome de nacionalismos étnico-religiosos retrógrados.

2. Um facto bem elucidativo das dificuldades da apreensão da realidade balcânica pelos europeus/ocidentais é o duplo equívoco em que incorreram os geógrafos do século XIX, quando cunharam a designação «Península Balcânica», que hoje está perfeitamente enraizada. Durante o período medieval e o Renascimento predominavam os nomes da oriundos da Antiguidade Clássica greco-romana, como «Península Helénica», «Península Bizantina» ou «Península Ilírica». Mais tarde, nos séculos XVII, XVIII e XIX, os cartógrafos europeus/ocidentais passam a utilizar para esta região designações como «Império Otomano da Europa», ou «Turquia da Europa», ou ainda «Império do Grande Turco». Conforme refere o geógrafo sérvio, Jovan Cvijić, no início do século XIX e até ao Congresso de Berlim (1878) «o nome Turquia Europeia dominou sobre todos os outros. Correspondia perfeitamente à situação política em que se encontrava esta região no início do século XIX: quase toda a Península pertencia então à Turquia. A Dalmácia, sucessivamente veneziana, austríaca, francesa depois novamente austríaca, o pequeno Montenegro, o único estado independente da Península, contava bem pouco. Mas, desde a primeira década do século XIX, a Sérvia e a Grécia apareceram sobre a cartografia. Estes dois Estados de formação recente, punham em causa a concepção geográfica dos cartógrafos. É com evidente repugnância que, à falta de um outro nome geral, assinalavam ainda a toda a Península o nome de Turquia Europeia»[4].

Foi neste contexto que o geógrafo alemão August Zeune utilizou pela primeira vez a palavra Balkanhalbinsel/Península Balcânica (1808), para designar a Hæmushalbinsel, ou seja, «Península de Hæmus», seguindo a mesma linha dos importantes trabalhos geográficos de Alexander von Humboldt e de Carl Ritter, que tendiam a substituir no estudo geográfico os tradicionais nomes de origem histórica e política, por novos nomes baseados em factores naturais. Todavia, como também assinala Jovan Cvijić, a escolha desta designação (infeliz) por August Zeune baseou-se numa percepção geográfica alimentada por dois equívocos[5]. O primeiro equívoco teve origem numa convicção errónea, originária da Antiguidade Clássica, a qual persistiu durante mais de dois milénios, segundo a qual toda essa região geográfica era atravessada longitudinalmente, do Adriático ao Mar Negro (Pontus Euxinus), por uma grande cadeia montanhosa central, a qual era geralmente considerada o limite natural da Península, a Norte. É a este equívoco que se deve o nome actual de «Península Balcânica». Mas há ainda um segundo equívoco, embora de menor magnitude, que reside no facto de os geográfos/exploradores europeus do século XIX que estudaram a Península, como fizeram Ami Boué e Auguste Viquesnel, desmistificando a (in)existente cadeia montanhosa central, pensarem que o Hæmus (Aæmus em grego) da Antiguidade clássica correspondia ao que os otomanos tinham passado a designar como «Balcã». De facto, essa palavra de origem otomana/turca que literalmente significa «montanha»/«cadeia montanhosa»/«montanha arborizada»[6], era apenas uma palavra genericamente utilizada quando não era conhecida a designação específica do lugar em causa, à qual normalmente se acrescentava um nome específico. Assim, como explica também Jovan Cvijić o nome «Balcã» atribuído ao lugar de Hæmus não é inteiramente exacto, pois aquilo a que a população turca da parte oriental da Península designava como «Balcã» eram apenas umas montanhas pouco distantes de Constantinopla/Istambul, que constituíam a parte mais baixa e mais insignificante do velho Hæmus. Por último, não deixa de ser curioso notar que enquanto os europeus/ocidentais acabaram por dar à Península um nome de origem otomana/turca, baseados em percepções geográficas e linguísticas erradas, pelo seu lado, os otomanos nunca utilizaram a designação Balcãs» nem «Península Balcânica» para esta região mas Rumeli (literalmente a terra dos romanos, ou seja, do Império Romano do Oriente o qual era culturalmente greco-bizantino) ou Avrupa-i Osmâni («Europa Otomana»).

3. A maneira como os europeus/ocidentais viam no passado e tendem a ver actualmente os povos balcânicos e os seus conflitos não é certamente igual à percepção que estes têm de si próprios. Por sua vez, a compreensão da maneira como os diferentes povos balcânicos se vêm a si próprios e dão significado aos factos do presente à luz da sua própria história colectiva é um ponto de partida fundamental para qualquer trabalho que queira tentar compreender correctamente a engrenagem do conflito. Um rápida vista de olhos sobre o muito que se escreveu nos media e em trabalhos académicos sobre as guerras que marcaram o fim da Jugoslávia (1991-1999), mostra-nos que este ponto de partida foi amplamente negligenciado, sendo frequente encontramos análises a-históricas desses conflitos (sobretudo nos media), ou análises e interpretações feitas à luz da história europeia/ocidental e com recurso ao aparelho teórico-conceptual tradicional da Ciência Política (especialmente nos trabalhos académicos). O resultado mais frequente são visões parciais, não invulgarmente simplistas, e, sobretudo, pouco clarificadoras das raízes mais profundas desses conflitos. Um dos aspectos surpreendentemente tratados com ligeireza na maioria das análises feitas pelos académicos das Relações Internacionais – a excepção meritória são principalmente os textos de historiadores dos Balcãs e do Império Otomano/Turquia – é o das implicações das instituições sociais e religiosas e da forma de governação política otomana, na realidade dos países balcânicos do século XX. Importa recordar que o «cunho otomano» moldou os Balcãs durante vários séculos, e de uma forma normalmente profunda, atingindo nalgumas áreas mais de quatrocentos anos de domínio imperial/«colonial» (por exemplo, Albânia, Kosovo e Macedónia), que só se extinguiu com o fim da chamada «Turquia da Europa», nas vésperas da I Guerra Mundial.

 

Quadro 1 – Períodos de duração da governação otomana nos Balcãs

Países/regiões Datas Anos (duração)
Albânia 1468-1912 444
Bósnia 1463-1878 415
Bulgária 1396-1878 483
Croácia 1526-1699 173
Grécia 1456-1830 374
Herzegovina 1482-1878 396
Hungria 1526-1699 173
Macedónia (Skopje) 1371-1913 542
Roménia (Valáquia) 1476-1829 353
Roménia (Moldávia) 1504-1829 325
Sérvia 1389-1829 440

 

Fonte: Carl L Brown [ed.], Imperial Legacy. The Ottoman Imprint on the Balkans and the Middle East, Nova Iorque, Columbia University Press, 1996, pp. xiii e xiv. As datas são apenas aproximadas. As fronteiras destes territórios mudaram ao longo do tempo. As diferentes formas de administração/domínio no âmbito do Império Otomano não estão mencionadas (sendo variáveis desde a autonomia e a independência virtual até ao governo directo de forma centralizada)

 

Um papel central na impressão do «cunho otomano» foi desempenhado pelo sistema de governação do millet e pelo estatuto do dhimmi, o qual foi aplicado aos que não pertenciam à umma, ou seja à «comunidade dos crentes» Muçulmanos. Esta instituição marcou profundamente a realidade sociológica e política dos povos balcânicos, em períodos temporais variáveis e subsistiu em várias regiões até uma fase tardia do século XIX, entrando marginalmente no próprio século XX. Na nossa opinião, sem um conhecimento razoável desta forma de governação, que é essencialmente estranha à evolução social e política da Europa Ocidental após o período medieval, e é totalmente estranha à Ciência Política europeia/ocidental forjada nos alicerces laicos (seculares) do Iluminismo do século XVIII, torna-se, por exemplo, impossível apreender as razões mais profundas da conflitualidade greco-turca e a complexa teia de razões que levaram ao fim violento do Estado Jugoslavo, a partir dos acontecimentos desencadeados no Verão de 1991.

4. Pelos motivos já apontados, uma pesquisa sobre a forma de governo representada pela multisecular instituição do millet não pode começar por ser feita na literatura da Ciência Politica e das Relações Internacionais, mas tem antes de ser direccionada para o campo da História, em particular para os trabalhos de historiadores especializada nos Balcãs e do Império Otomano/Turquia. Um contributo importante para a compreensão da Península Balcânica sob a dominação otomana foi-nos dado pelo historiador francês, Georges Castellan, com a sua Histoire des Balkans/História dos Balcãs, originalmente publicado em 1991. Nesse trabalho, é explicado com bastante detalhe o funcionamento do sistema do millet[7], a pedra basilar da governação otomana praticamente até à fase de extinção do império, nas primeiras décadas do século XX. Atente-se na maneira como Georges Castellan, descreve este mesmo sistema de governação, ao mesmo tempo coloca em causa algumas das vulgatas[8] mais associadas a este, nomeadamente a da sua alegada «originalidade histórica» e do carácter ímpar da «tolerância» desta forma de governo:

[A] visão étnica pré-nacional não era de maneira nenhuma a dos otomanos: fiéis do Profeta, só conheciam entre os seus sujeitos os moslem («crentes») e os zimmi («pessoas protegidas», ou seja, os não-muçulmanos vivendo no império e obedecendo às suas leis). Ora, estas leis eram fundadas sobre a Xária, estranha aos não-crentes. Daí o sistema do millet, do qual se tem feito um exemplo singular da tolerância do poder otomano. Na realidade, sistemas semelhantes de auto-administração de grupos humanos apoiando-se sobre as suas leis religiosas, tinham existido durante a Idade Média ocidental; sem recuar aos Estados bárbaros, com o seu direito romano e os seus códigos visigóticos ou burgondos, o estatuto dos judeus acordado por Casimiro o Grande da Polónia, e fundado sobre a kahâl, procedia da mesma visão teológica do mundo, para chegar à mesma tolerância teórica. Os sultões encontraram exemplos nos grandes impérios do Médio-Oriente, junto dos persas, em particular.

Segundo refere ainda o mesmo historiador, a proporção dos dhimmi era tão grande, sobretudo na parte europeia do império, onde representariam mais de 80% da população, «que o sistema do millet teve de ser precisado e completado», tornando-se desta forma numa das «instituições fundamentais do poder otomano nos Balcãs». Conforme este explica também «é um contra-senso traduzir a palavra millet por “nação”, ou por “nacionalidade”: o millet é uma comunidade religiosa reconhecida pelo poder otomano e que, sob a responsabilidade do seu chefe hierárquico, se auto-administra nos domínios que relevam da sua teologia e da sua moral, mas que se conforma com as leis do império para tudo o resto». Ora, como facilmente se pode antever, esta partilha de competência era uma tarefa delicada, pois, «nestas sociedades pré-laicas, a Xária de um lado, e o Direito Canónico do outro, tinham vocação para regular todos os problemas da vida pessoal e colectiva. Só a prática delimitou estes dois domínios, não sem conflitos frequentes, resolvidos em general com benefício do mais forte, ou seja do poder otomano»[9]. Assim, as populações dos Balcãs foram submetidas a um esquema organizativo de dominação imperial/religiosa, que pode ser apresentado da seguinte maneira:

i) O Rum Millet, ou millet «grego», não no sentido étnico/nacional, mas no sentido de «Igreja Grega», ou seja, da Igreja Cristã do Oriente dependente do Patriarcado de Constantinopla, instituído pelo sultão otomano Mehmed II poucos meses depois da conquista da cidade, na pessoa de Georgios Yennádhios, mais conhecido pelo nome monástico Gennadius (Genádios) – numa escolha que denotava um hábil intuito político-estratégico de perpetuar o cisma entre a Cristandade oriental e a ocidental. Este millet enquadrava todas as populações cristãs orientais da Península Balcânica – gregos, búlgaros, sérvios, albaneses e valáquios – e era chefiada pelo patriarca ecuménico, designado como millet baxi, que se inseria na hierarquia otomana com o título de paxá de três tug (caudas de cavalo). A estrutura do Rum Millet assentava na estrutura da Igreja «grega», liderada pelo patriarca de Constantinopla, com residência no bairro do Fener (ou Phanar) dessa cidade; depois o metropolita autocéfalo de Ohrid, com jurisdição sobre os territórios búlgaros, e o Metropolita[10] de Ipec (Péc), com jurisdição sobre os territórios sérvios, bósnios e, mais tarde, também húngaros; nos graus mais baixos da hierarquia, os arcebispos e bispos, bastantes numerosos nos territórios de população grega. Para além dos assuntos religiosos, a sua autoridade alguns domínios seculares, tais como os impostos, retomando aqui o Império Otomano a tradição dos últimos séculos do Império Bizantino.

ii) O millet arménio, também não no sentido étnico/nacional da palavra «arménio», mas no sentido de designar os fiéis da Igreja Arménia Gregoriana, a qual segue uma doutrina ortodoxa não calcedónia, também designada por monofisita[11]. Na chefia do millet arménio otomano foi instalado pelo sultão Mehmed II o arcebispo de Bursa, que passou a residir no junto aos seus fiéis da capital, no bairro de Sulu Monastir. Em 1461 este foi nomeado millet baxi tal como o seu congénere grego ortodoxo, sendo-lhe também concedidos poderes similares ao do patriarca grego; para além dos cristãos gregorianos arménios, a sua jurisdição abrangia os ciganos coptas, os monofisitas da Síria e do Egipto, e os bogomiles[12] da Bósnia.

iii) O millet judaico (yahudi millet), também no já referido sentido religioso da palavra, criado logo em 1453, pela nomeação directa feita pelo sultão Mehmed II, de Moses Kapsali como grande rabino e funções de millet baxi da(s) comunidade(s) judaica(s), sendo, posteriormente, os seus sucessores eleitos pela própria comunidade judaica (tendo, no entanto, essa nomeação de ser confirmada pelo sultão otomano, como também acontecia com os patriarcas grego e arménio) .

5. A dhimmitude é a condição sociológico-jurídica dos dhimmi (designados por rayas, no caso dos Cristãos dos Balcãs) e resulta directamente do sistema de governação e estratificação social inerente ao millet, que foi acordada (leia-se imposta) às populações não muçulmanas – essencialmente, mas não exclusivamente,[13] Cristãos, Judeus e Zoroastrianos (a religião dominante na Pérsia pré-muçulmana) –, aquando das conquistas árabes e/ou otomanas. Apesar desta realidade sociológica ter existindo durante longuíssimos períodos históricos, o conceito só foi cunhado nos anos 80 do século XX, e a sua divulgação na literatura académica deve-se a Bat Ye´ or[14], uma historiadora britânica nascida no Egipto, de ascendência judaica, que se inspirou no já referido trabalho do geógrafo sérvio, Jovan Cvijić, La Péninsule Balkanique. Géographie Humaine (1918) e nos discursos políticos do ex-Presidente libanês Beshair Gemayel[15].

Uma questão curiosa é a de saber quais as razões da escassez de estudos sobre a realidade sociológico-jurídica da dhimmitude – as excepções mais notórias foram os trabalhos de Arthur Stanley Tritton (1930) e Antoine Fattal (1958)[16]. Este aspecto é ainda mais intrigante se pensarmos na explosão da produção académico-científica das Ciências Sociais e Humanas, ocorrida ao longo de todo o século XX, e no acrescido interesse pelo estudo dos «povos oprimidos», pelos direitos das minorias e pela diversidade cultural. A explicação, ou pelo menos parte dela, talvez se possa encontrar num dos mais importante trabalhos até hoje elaborados sobre a história dos Balcãs, originalmente publicado em 1958, e da autoria do historiador L. S. Stavrianos, quando este refere que «os povos balcânicos deixaram poucos registos deste período da sua história. Tendo perdido a sua classe dirigente, a única educada e articulada, foram deixados sem líderes, anónimos e silenciosos. Mesmo os seus clérigos eram largamente iletrados […]. Assim, durante vários séculos, os gregos, os albaneses, os romenos, e os eslavos do Sul foram povos sem história»[17]. Mais quais eram as implicações concretas da dhimmitude para os povos não muçulmanos dos Balcãs? E que significou exactamente para os Cristãos dos Balcãs (rayas) terem o estatuto de «protegidos»? Estes tinham direitos similares aos dos Muçulmanos? E podiam desenvolver livremente as suas práticas religiosas? Atente-se na resposta que o historiador francês, Georges Castellan, dá a algumas destas questões[18]:

[Só] os crentes podiam ser membros de parte inteira deste Estado [o Império Otomano], enquanto que os não-muçulmanos que aí viviam eram os protegidos (zimmi ou dhimmi) tendo um estatuto constitutivamente inferior. Em termos jurídicos os zimmi só existiam pela graça dos conquistadores que os podiam mandar matar, o que se exprimia pelo pagamento da capitação (jizya), taxa de compra da vida; naturalmente que não pretendiam exercer um papel político ou administrativo num organismo fundado sobre uma lei que eles não reconheciam. A conversão ao Islão era o único meio de ultrapassar esta barreira.

A visão romântica e idealizada da governação otomana como um exemplo da singular «tolerância islâmica» parece ter pouco a ver com a realidade histórica das estratégias de dominação das populações cristãs da Península Balcânica, postas em prática pelos conquistadores otomanos. Como faz notar Bat Ye´ or, o estudo da condição de dhimmi não pode ser apreendido segundo a dicotomia tolerante/intolerante, devendo os conceitos de «tolerância islâmica» e de «minorias religiosas», ser liminarmente afastados, por falta de rigor conceptual e não adequação ao objecto estudo. A palavra «tolerância» tem de ser entendida «no contexto do Alcorão, e não na moderna generalização ocidental»[19], pois, caso contrário, está a ser induzido nos receptores deste discurso o amplo significado que a palavra hoje adquiriu no Ocidente, que pouco tem a ver com a realidade histórica do millet e da dhimmitude. Para além disso, quando se começa a aprofundar este assunto, rapidamente se tem a percepção que estamos perante uma matéria histórica complexa, difícil de ser traduzida com rigor em generalizações, quer pela extensão da dimensão geográfica e diversidade dos territórios abrangidos, quer pela dimensão temporal variável da presença otomana. Para além disso, a documentação que baseia a generalidade das descrições e análises históricas, ou foi produzida pelos próprios otomanos (estando imbuída da sua visão dominadora), ou são relatos de viajantes europeus/ocidentais da época, mas que quase sempre foram limitados a Constantinopla/Istambul e a umas poucas mais cidades dos Balcãs (Sofia, Belgrado, Salónica, Andrinopla/Edirne, etc.), pouco ou nada dizendo sobre a massa dos raya que viviam fora das mesmas. Apesar das limitações já pontadas, pode-se tentar traçar um quadro, ainda que imperfeito, da dhimmitude nas esferas política, económica social e religiosa. Na esteira do trabalho[20] de Bat Ye´ or pode-se dizer que os traços mais marcantes desta instituição, são os que a seguir se apresentam.

Na esfera política a dhimmitude abrangia as seguintes práticas:

(i) Protecção: por princípio, as leis da guerra anulavam todos os direitos do indivíduo não Muçulmano (harbi), não sujeitos a uma autoridade Muçulmana, ou seja vivendo no domínio da guerra (dar-al-harb); todavia, os não-Muçulmanos das outras «religiões do Livro» eram objecto de «tolerância», uma vez preenchidas certas condições; nesse caso, os seus direitos eram restaurados, embora com restrições, mediante o pagamento de um imposto (jizya), fundamentado no Alcorão; a recusa do pagamento desse imposto transformava o dhimmi num harbi, sujeitando-o às regras e consequências da jihad: escravatura, morte, ou eventualmente expulsão dos territórios do Islão. Esta situação foi progressivamente alterada, em termos legais, ao longo do século XIX, com as reformas seculares (Tanzimat), iniciadas em 1839 e com a Constituição otomana de 1876.

(ii) Desarmamento: os dhimmis estavam proibidos de transportar e usar armas, ficando as tarefas da segurança da sua vida e património nas mãos dos seus protectores muçulmanos. Esta situação perdurou historicamente até ao final do século XIX e início do século XX, nalgumas partes do Império Otomano (por exemplo, em 1860 o desarmamento dos sérvios do Kosovo ainda era compulsivo).

(iii) Deportações: a remoção dos dhimmis das zonas onde habitavam tradicionalmente, por razões de segurança (por exemplo, zonas de interesse estratégico-militar ou zonas fronteiriças) e por imperativos económicos (por exemplo, revitalização do comércio e rehabilitação da agricultura em territórios devastados pela guerra), foram medidas mais ou menos frequentes durante todo o Império Otomano, sobretudo na sua fase de expansão, até ao século XVI-XVII. Daí resultou que embora a lei islâmica permitisse a integração dos dhimmis no dar al-Islam, podendo estes reter a posse do solo, retirar usufruto deste e herdá-lo, este princípio era frequentemente transgredido devido à deportação de populações, as quais eram obrigadas a abandonar todas as suas propriedades e os seus bens pessoais.

Na esfera económica a dhimmitude abrangia as seguintes práticas:

(i) Kharaj: os dhimmis estavam obrigados a pagar um imposto sobre a terra que cultivavam, por vezes extensível a outros bens como direitos de pastagem e de pesca, etc.; esses impostos eram cobrados por capitação, numa base de responsabilização individual ou de toda a população de uma aldeia pelo conjunto pelos mesmos; as bases de cálculo variavam de acordo com a qualidade da terra e as tradições locais e podiam ser pagos em dinheiro ou géneros; os colectores de impostos recorriam frequentemente às punições e à tortura para levarem a cabo a sua tarefa, instalando-se nos locais onde efectuavam a recolha de impostos vários dias, à custa das populações que os tinham de pagar.

(ii) Jizya: imposto pago por cabeça, a que os dhimmis estavam obrigados, com três taxas de 12, 24 e 48 dirhams, dependendo a sua escolha da situação económica do pagador. Em teoria, as mulheres, os pobres, os doentes e os incapazes, estavam isentos; todavia, na prática, não era invulgar o imposto ser exigido também a crianças, viúvas e orfãos. Todos aqueles que abandonassem as suas casas sem o comprovativo do pagamento da jizya, estavam sujeitos a forte punição, pois os colectores de impostos podiam interceptá-los facilmente devido ao seu vestuário ser diferente do usado pelos Muçulmanos.

(iii) Impostos adicionais: todas as taxas sobre comércio e transportes pagas pelos Muçulmanos eram geralmente dobradas, no caso dos dhimmis.

Na esfera social a dhimmitude abrangia as seguintes práticas:

(i) Vestuário: os dhimmis estavam frequentemente obrigados a usar roupa diferenciada, sujeitas frequentemente a detalhes minuciosos, para se distinguirem das populações

(ii) Muçulmanas; esta discriminação normalmente não existia onde as populações Cristãs eram a maioria (por exemplo, na Grécia e na Sérvia).

(iii) Transporte: proibição de uso para de montadas consideradas nobres, como o cavalo ou o camelo;

(iv) Litígios judiciais: o testemunho de um dhimmi não era aceite nos tribunais contra um Muçulmano.

Na esfera religiosa a dhimmitude abrangia as seguintes práticas:

(i) Locais de culto: a continuidade das igrejas e sinagogas após a conquista Muçulmana dependia das circunstâncias em que esta ocorreu; nas regiões conquistadas pela força estes locais de culto eram confiscados e por vezes transformados em mesquitas; nos casos de rendição, seriam mantidos se fosse especificada essa condição, sendo, todavia, proibidas as obras de modificação ou conservação, excepto mediante autorização especial, sob pena de serem demolidas e os infractores castigados severamente. Nos locais fundados após a conquista só podiam ser erigidas mesquitas, sendo totalmente proibidas igrejas e sinagogas.

(ii) Prática religiosa: os dhimmis tinham de conduzir as suas celebrações em silêncio, não sendo permitidas manifestações públicas com sinos, nem cruzes, nem ícones. A excepção das celebrações públicas no exterior poderiam ser as cidades onde os cristãos eram maioritários

(iii) Conversões forçadas: os períodos de «protecção-perseguição» dos dhimmis alternaram frequentemente com os períodos de conversões forçadas, motivados por factores variáveis e mais ou menos imponderáveis como a personalidade dos sultões-califas, e/ou dos governadores provinciais, e as contingências político-militares do império.

6. Pelo que foi exposto, tornam-se agora mais claras as razões que inicialmente apontamos para debilidade generalizada na apreensão das raízes mais profundas dos conflitos dos Balcãs. Importa relembrar que esta região da Europa geográfica sofreu um duplo corte que a desligou por longos períodos históricos da evolução da Europa Ocidental. O primeiro corte deu-se em dois tempos: primeiro foi divisão do Império Romano no final do século IV, entre Roma e Constantinopla/Bizâncio; depois foi o cisma da Cristandade no século XI, entre a Igreja Católica romana e a Igreja Ortodoxa grega. O segundo corte, bastante mais profundo, ocorreu entre os séculos XIV e XIX, com a conquista e dominação otomana da região. Só com a progressiva retirada pela força das armas do dar al-Islam dos Balcãs – acompanhada por inúmeras «limpezas étnicas» entre rayas/Cristãos e otomanos/Muçulmanos[21] – que marcaram a emergência da Sérvia, da Grécia e dos outros Estado balcânicos, como entidades políticas independentes ao longo do século XIX, é que a sua história se voltou a (re)ligar à do Ocidente europeu. Ponto fulcral é que o reencontro dos Balcãs com a Europa se fez com importantes períodos que moldaram a história genética do Ocidente «em branco»: sem Renascimento, sem Reforma Protestante, sem Iluminismo, sem Revolução Francesa e Americana, sem Revolução Industrial. Em vez desses «genes formativos», os povos balcânicos trouxeram consigo a matriz do millet, com as suas experiências de sujeição para os Cristãos (gregos, sérvios, montenegrinos, búlgaros, etc.) ou de proximidade com o poder instituído para os Muçulmanos (bósnios, albaneses, kosovares pomaks búlgaros, etc.); trouxeram uma tradição de governo que desconhecia qualquer separação fundamental entre o laico e o religioso; trouxeram a matriz religiosa como principal elemento de pertença comunitária e de diferenciação face ao «outro»; trouxeram populações frequentemente misturadas e disseminadas à maneira de uma «salada macedónia»; e trouxeram uma ausência total de estruturas de Estado soberano do tipo da que se afirmou na Europa Ocidental, após a Paz de Vestefália de 1648. Não é por isso surpreendente que, operando-se o reencontro de trajectórias históricas apenas no início do século XIX, em plena era da Nação e dos Nacionalismos, produtos culturais da genética política europeia/ocidental, como o «Estado» e a «Nação», e ideologias como «Nacionalismo», o «Secularismo», e o «Comunismo», aplicados no contexto balcânico tenham levado a resultados bastante diferentes daqueles que os europeus do final do século XX gostariam de ver. À luz desta evolução histórica, os problemas que rebentaram na Jugoslávia em 1991 «parecem ser menos sequelas do comunismo, do que o retomar de um processo parado em 1912»[22], quando uma coligação de Estados balcânicos – a Grécia, a Sérvia, o Montenegro e a Bulgária – conquistou[23] a Macedónia otomana, a última província da «Turquia da Europa». Nesta, incluíam-se o mítico Kosovo dos sérvios e Salónica, a cidade que hoje é grega, mas na qual a nasceu o não menos mítico Mustafa Kemal Atatürk, fundador da República da Turquia no refúgio do heartland da Anatólia, em 1923.

 

NOTAS

[1]Ivo Andrić, Na Drini Cuprija, 1945 (trad. ingl., The Bridge on the Drina, Chicago, The University of Chicago Press, 1977), pp. 23-24. O texto transcrito procura representar a prática do devxirme, ou seja, o tributo de sangue que os cristãos dos Balcãs tinham de dar ao sultão otomano para o serviço imperial e que era constituído por crianças e jovens do sexo masculino que eram subtraídos às suas famílias.

[2] Para uma panorâmica das sucessivas crises que marcaram a questão do Oriente ver o trabalho de síntese de A. L. Macfie, The Eastern Question 1774-1923, Londres-Nova Iorque, Longman, 1996, 2ª edição revista. Ver também o trabalho mais alargado de M. S. Anderson, The Eastern Question, Londres, The MacMillan Press, 1966, 4ª reimpressão, 1974.

[3] Ver José Pedro Teixeira Fernandes «As Metamorfoses da Europa» in História 60 Outubro (2003), pp. 42-49.

[4] Jovan Cvijić (1918), La Péninsule Balkanique. Géographie humaine (trad. it., La Penisola Balcanica. Geografia humana, versão on-line disponível em http://www.univ.trieste.it~storia/labgeo/balkan.rtf ), pag. 4.

[5] Jovan Cvijić, op. cit. ant., pag. 5.

[6] Maria Todorova, Imagining the Balkans, Oxford-New York: Oxford University Press, 1997, pag. 26.

[7] Palavra que só surge nos textos otomanos a partir do século XVIII, embora a realidade que esta pretende traduzir seja anterior. Ver Georges Castellan, Histoire des Balkans. XIVe – XXe siècle, Paris: Fayard, 1991, pag. 118, nota 2.

[8] Georges Castellan, op. cit. ant., pag. 118.

[9] Georges Castellan, op. cit. ant., pp. 118-119.

[10] O Metropolita é um prelado das igrejas cristãs ortodoxas orientais, que na hierarquia religiosa se situa entre o patriarca e o bispo, não tendo correspondência directa com a hierarquia do catolicismo ocidental.

[11] Esta doutrina teológica afirma que a partir da reincarnação só há uma natureza (physis) em Cristo, absorvendo a sua natureza divina a natureza humana. A separação das Igrejas que seguem esta doutrina (Igrejas Ortodoxas não-Calcedónias) inicia-se a partir do Concílio de Calcédonia, efectuado no ano 451.

[12] Doutrina religiosa fundada originariamente no século X, na Bulgária, pelo padre Bogomil, e que era baseada numa visão dualista e maniqueísta do mundo, tendo sido considerada herética pelo Cristianismo Católico e pelo Cristianismo Ortodoxo grego.

[13] A prática governativa muçulmana mostra também que o estatuto de dhimmi foi aplicado populações hindus e budistas submetidas ao Islão na Ásia Central e no sub-continente indiano, só não sendo designado como tal, pois face ao Alcorão estas populações são idólatras (politeístas que prestam o culto a ídolos).

[14] Pseudónimo que significa literalmente «fillha do Nilo», em língua hebraica.

[15] Beshair Gemayel era Cristão maronita e ocupava o cargo de Presidente da República do Líbano quando foi assassinado, a 14 de Setembro de 1982.

[16] Ver Arthur Stanley Tritton, The Caliphs and their Non-Muslim Subjects. A Critical Study of the Covenant of Umar, London, Frank Cass, 1930, 2ª ed., 1970; e Antoine Fattal, Le Statut Légal des Non-Musulmans en Pays d´Islam, Beirut, Imprimerie Catholique, 1958, 2ª edição 1995.

[17] L. S. Stavrianos, The Balkans since 1453, London: Hurst & Company, 1958, 2ª ed. 2000, pag. 96.

[18] Georges Castellan, op. cit. ant., pag. 108.

[19] Bat Ye´ or, Islam and Dhimmitude. Where Civilizations Collide, Madison, Farleigh University Press, 2002, 2ª edição 2003, pag. 22.

[20] Bat Ye´ or, op. cit. ant, pp. 50-122.

[21] Sobre os sofrimentos do Muçulmanos otomanos com o retrocesso do Dar al-Islam nos Balcãs desde o início da guerra da independência da Grécia, (1821) até ao fim da «guerra de libertação» da Turquia (1922), ver o livro de Justin McCarthy, Death and Exile. The Ethnic Cleansing of Ottoman Muslims, 1821-1922, Princeton-Nova Jersey, The Darwin Press, 1995.

[22] Ver Stéphane Yerasimos, Questions d´Orient, Paris, La Découverte/Livres Hérodote, pag. 6.

[23] Sobre as guerras balcânicas ver o trabalho de Richard C. Hall, The Balkan Wars 1912-1913. Prelude to the First World War, Londres e Nova Iorque, Routledge, 2000.

 

© Artigo: José Pedro Teixeira Fernandes, “A Memória Otomana nos Conflitos dos Balcãs” originalmente publicado em Nação & Defesa nº 112, Outono/Inverno (2005), pp. 87-102. Última revisão em 21/06/2014

domínio público Imagem: foto da Bibliothèque Nationale de France (domínio público, Wikipedia), mostrando tropas otomanas durante as guerras balcânicas (1913-1913)