A estratégia do Hezbollah

Hezbollah

 

No complexo contexto da política libanesa, o Hezbollah é um protagonista importante não só pelo assumido apoio externo do Irão – e, em menor grau, da Síria –, como pelo facto de a população xiita (a base natural de propagação ideológica), registar um importante crescimento demográfico.  Constitui já a facção religiosa mais importante do país, superando os cristãos maronitas e os muçulmanos sunitas, que são os tradicionais pilares do Estado libanês […]

 

1. Os recentes acontecimentos internacionais mostram bem como o islamismo, enquanto ideologia política, continua a ter um significativo potencial de expansão a nível internacional, não só dentro dos países islâmicos como nas próprias sociedades ocidentais. De uma forma simplificada, podem-se sintetizar em cinco as principais características desta ideologia. Uma primeira característica é a recusa de separação entre o Islão como religião e o Islão como política. Uma segunda é que os actores não são necessariamente os partidos políticos, tal como os conhecemos habitualmente, mas grupos e movimentos, formais ou informais, aparentemente apenas com missões religiosas e/ou sociais, mas que, na prática, prosseguem objectivos políticos. A terceira é a forma sui generis de fazer política, em rota de colisão com ideia de «política» do mundo ocidental, a qual pode ser designada como «teopolítica», devido à intrincada e deliberada mistura entre o religioso e o político que lhe está subjacente. A quarta é que o horizonte ideal é o Estado islâmico regido pela Xária (Sharia), o que, na linguagem política ocidental corresponde à ideia de teocracia e a uma espécie de «fascismo arcaico», na qualificação de Maxime Rodinson. Uma quinta característica é o uso/apropriação dos textos religiosos do Islão – o Corão e a Suna – como «manifesto político». Um exemplo desta apropriação encontra-se na Carta do movimento palestiniano HAMAS (1988), onde o artigo 8º estabelece que «Alá é o objectivo, o Profeta o seu modelo e o Corão a sua constituição».

2. O Hezbollah, o partido libanês liderado pelo Xeique Sayyid Hassan Nasrallah, insere-se nesta filiação ideológica e aproxima-se das características de outros movimentos islamistas com os quais tem relações (é o caso do HAMAS). Todavia, existem especificidades relevantes que resultam do ambiente regional onde se encontra inserido e do facto de estar ligado ao Islão xiita. Tendo adoptado uma designação que significa literalmente «Partido de Deus» a partir dum versículo do Corão (surata «A Mesa Servida», 5: 56): «Os que tomam por amigos Alá, o Seu Enviado e os que crêem, são membros do partido de Alá: esses são os vencedores», este «teopartido» surgiu no Líbano, em 1982, em plena guerra civil, como um produto de exportação do xiismo iraniano e do ideário islamista radical do Ayatollah Khomeini. Em termos de manifesto ideológico – parcialmente revelado na «Carta Aberta», publicada a 16 de Fevereiro de 1985, no al-Safir de Beirute –, a teoria do wilayat al-faqih é a sua peça central. Esta teoria, construída a partir da interpretação feita por Khomeini dum versículo corânico (surata «A Mesa Servida», 5: 44), sustenta a supremacia governativa dos clérigos uma vez que estes, alegadamente, dispõem de «conhecimento sagrado para adivinhar o significado oculto do Corão», conhecimento esse que lhes permite também «participar na revelação final da palavra de Deus». Assim, o modelo de pólis é o Estado islâmico sob a supervisão do wali al-faqih, o teólogo-jurista que desempenha o cargo de «guia supremo» – actualmente o Ayatollah Ali Khamenei.

3. No complexo contexto da política libanesa, o Hezbollah é um protagonista importante não só pelo assumido apoio externo do Irão  – e, em menor grau, da Síria –, como pelo facto de a população xiita (a base natural de propagação ideológica), registar um importante crescimento demográfico, Constitui já a facção religiosa mais importante do país, superando os cristãos maronitas e os muçulmanos sunitas, que são os tradicionais pilares do Estado libanês, desde a sua independência, em 1943. Importa notar que após os Acordos de Taif que puserem fim à sangrenta guerra civil no ano de 1989 e a posterior retirada do exército de Israel em 2000, o Hezbollah impôs-se ao próprio Estado, ao qual, em teoria, está subordinado. No terreno, a realidade é outra e não obedece à lógica de Estado soberano, pois o Partido de Deus tem as suas próprias forças de segurança, os seus tribunais (que aplicam a Xária…), os seus serviços sociais e educativos, a sua televisão por satélite, as suas estações de rádio e jornais… Para atingir os seus objectivos apostou, inteligentemente, em duas vias estratégicas. Uma primeira passa pelo uso da força e foi privilegiada até aos anos 90, mantendo-se, entretanto, em stand- by (ressurgiu no recente conflito com Israel). Para a manter aberta, conservou a sua própria força militar após os Acordos de Taif e uma capacidade bélica superior ao exército libanês. A outra via é gradualista e consiste na participação no jogo eleitoral, bem como na actividade de governação, esperando convencer a opinião pública, interna e internacional, das suas virtudes «democráticas» e sociais, afastando o rótulo incómodo de organização «terrorista». Todavia, o objectivo último – o Estado islâmico –, mantém-se inalterado: se esse é atingido pela propaganda, pela força pujante da demografia xiita e pelo voto maioritário, ou pela força das armas, isso não é o mais importante na sua realpolitik.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Expresso nº 1765 (26 Agosto 2006), pag. 18. Ultima revisão 11/06/2015

domínio público Imagem: bandeira do Hezbollah (domínio público / Wikipedia)

As minorias religiosas sob o totalitarismo do Estado Islâmico

A composição étnico-religiosa da Síria

A semelhança com as regras que o ISIS pretende impor atualmente aos cristãos da Síria é muito óbvia. No contexto medieval, estas foram um avanço em relação às leis de guerra da Antiguidade […] Mas pretender [aplicá-las] no século XXI, negando a evolução civilizacional da humanidade e os Direitos Humanos universais, não é regressar a uma sociedade em harmonia com a vontade divina. É criar um totalitarismo disfarçado de Islão medieval.

1. Não nos deixemos iludir. A fraseologia religiosa do Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS na transliteração de árabe para inglês, ou Daesh no acrónimo em árabe), esconde múltiplas semelhanças com as ideologias totalitárias seculares ocidentais, como o nazismo, o fascismo, ou o estalinismo. Uma dessas semelhanças é a pretensão de criar um homem e uma sociedade perfeita, por diferentes vias. Os totalitarismos seculares são “futuristas”. São subprodutos do Iluminismo. O totalitarismo Islamista-jihadista é “passadista”. É um subproduto do Islão. A utopia da sociedade perfeita está no regresso aos primórdios da era islâmica. Não está na transformação segundo a fé iluminista inabalável no progresso e no futuro. Pretende voltar a um passado idealizado, o Islão medieval dos primeiros califas sucessores do Profeta Maomé. Como nos totalitarismos seculares, impõe a sua visão do mundo sem espaço para pluralismos ou dissidências. Usa a intimidação verbal e física e a violência para sujeição, ou eliminação, dos seus opositores. Todos os não muçulmanos – incluindo os muçulmanos que não se revêm na sua interpretação do Islão –, são potenciais vítimas do fanatismo Islamista-jihadista. (Ver “O Islamismo-jihadista como ideologia política totalitária” Público, 27/09/2014). Nos últimos tempos, uma minoria visada de forma brutal são os cristãos do Médio Oriente, a forma mais antiga e próxima dos relatos bíblicos de Cristianismo. A par destes, outras minorias como os curdos e yazidis sofrem atrocidades. O caso dos cristãos é clarificador sobre o tratamento dado às minorias religiosas em geral. No seu zelo purista, o ISIS está a usar as regras medievais do Tratado ou Pacto (dhimma em árabe) de Umar. Esse Tratado – analisado mais à frente –, terá sido feito pelo califa Umar b. al-Hattab, ou Umar I, no ano de 78 (687 da era cristã) com os cristãos da Síria. O ISIS vê-se hoje no lugar dos conquistadores árabes da Síria e outros territórios do Levante aos Impérios Bizantino e Persa Sassânida no século VII. Pretende submeter os cristãos e restantes “Povos do Livro” à dhimmitude (neologismo cunhado a partir de dhimma), sujeitando-os às disposições da sharia abandonadas durante as Tanzimat, as reformas modernizadoras do Império Otomano efetuadas no século XIX.

2. Ao longo da semana anterior os media ocidentais divulgaram o sequestro, feito por milícias do ISIS no nordeste da Síria, de mais de duas centenas de cristãos assírios. Anteriormente, foram brutalmente sequestrados e decapitados na Líbia vinte e um cristãos coptas egípcios. Uma outra informação da BBC, datada de há cerca um ano atrás (27/02/2014), descrevia-nos o tratamento dado aos cristãos capturados em Raqqa (Syria crisis: ISIS imposes rules on Christians in Raqqa/Crise na Síria: ISIS impõe regras aos cristãos de Raqqa). Vale a pena ler um excerto que aqui transcrevo. “Um grupo jihadista na Síria exigiu que os cristãos no norte da cidade de Raqqa pagassem um imposto em ouro e aceitassem limitações à sua fé, ou teriam de encarar a morte […] A diretiva do ISIS, citando o conceito islâmico de dhimma, exige que os cristãos na cidade paguem um imposto de cerca de metade de uma onça (14 g) de ouro puro, em troca da sua segurança. A diretiva diz que os cristãos não devem fazer obras nas suas igrejas, exibir cruzes ou outros símbolos religiosos fora destas, tocar os sinos da igreja, ou rezar em público. Os cristãos não devem trazer armas e devem seguir outras regras impostas […]. Segundo o comunicado, o grupo reuniu-se com representantes cristãos e ofereceu-lhes três opções – poderiam converter-se ao Islão, aceitar as condições [anteriores], ou rejeitá-las correndo risco de serem mortos. ‘Se as rejeitam, estão sujeitos a ser alvos legítimos‘ […] Um grupo de vinte líderes cristãos escolheu aceitar o novo conjunto de regras, disse o ISIS.“ Para os Islamista-jihadistas, trata-se, apenas, de voltar a aplicar “escrupulosamente” a sharia com base no já referido Tratado ou Pacto de Umar. Aos seus olhos, tem a legitimidade inatacável de ter sido celebrado pelos primeiros califas com os cristãos da Síria, aquando da sua rendição aos exércitos muçulmanos, no século VII. Vêm-no como a forma intemporal de lidar com cristãos, judeus e zoroastrianos (dhimmi)

3. O jurista libanês Antoine Fattal no livro Le statut legal des non-musulmans em pays d’Islam/O Estatuto Legal dos Não-Muçulmanos nos Países Islâmicos (2.ª ed., Beyrouth, Dar El-Machreq Éditeurs, 1995), explica esse estatuto. Antoine Fattal faz notar a existência de várias versões do Tratado de Umar, bem como a existência de dúvidas quanto à sua autenticidade. A título de exemplo, reproduzo aqui uma das versões que descreve no seu livro (pp. 64-65). Nesta versão, o texto é atribuído a uma negociação de Umar e Abu Ubaida com Constantino, patriarca cristão sírio de Antioquia. Atente-se neste excerto: “(i) os ricos entre os habitantes de d’as-Sam (possível nome de Damasco) pagarão uma jizya de 48 dirhems; aqueles que vivem com desafogo uma jizya de 24 dirhems; os pobres, uma jizya de 12 dirhems; (ii) os habitantes de d’as-Sam não criarão igrejas novas; (iii) não usarão a cruz nos bairros muçulmanos; (iv) não baterão os naqus (sinos) fora das suas igrejas; (v) partilharão as suas casas com os muçulmanos; (vi) cederão aos muçulmanos, para que aí construam mesquitas, os terrenos dirigidos para o Sul, contíguos às suas igrejas; (vii) não passearão os porcos nos bairros muçulmanos; (viii) albergarão os muçulmanos de passagem, três dias e três noites; (ix) guiarão os viajantes de cidade em cidade e irão colocá-los na boa direção; (x) fornecerão ajuda aos muçulmanos e não os trairão; (xi) não concluirão alianças com os inimigos dos muçulmanos; (xii) aqueles que violarem este acordo são passíveis da pena de morte e a sua mulher e filhos podem ser reduzidos à escravidão.” A semelhança com as regras que o ISIS pretende impor atualmente aos cristãos da Síria é muito óbvia. No contexto medieval, estas foram um avanço em relação às leis de guerra da Antiguidade: morte ou escravidão dos capturados. Permitiram, regra geral, ser mais tolerante com os vencidos do que no Ocidente cristão, ou noutras partes do mundo. Isto, numa época em que o moderno conceito de tolerância era inexistente. Mas pretender aplicá-lo no século XXI, negando a evolução civilizacional da humanidade e os Direitos Humanos universais, não é regressar a uma sociedade em harmonia com a vontade divina. É criar um totalitarismo disfarçado de Islão medieval.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes,  artigo originalmente publicado no Público, 13/03/2015. Última revisão 18/06/2015

domínio público Imagem: mapa (Wikipedia / domínio público) da composição étnico-religiosa da Síria (versão a preto e branco do autor)

O vírus informático stuxnet e o programa nuclear do Irão

 

Instalação Nuclear

 

Stuxnet é a designação dada a um vírus informático projetado para atacar o sistema de supervisão e aquisição de dados SCADA (em inglês: Supervisory Control and Data Acquisition). O sistema SCADA foi originalmente desenvolvido pelo fabricante alemão Siemens, para controlar equipamentos industriais. O software malicioso, de autoria oficialmente desconhecida – suspeita-se que os serviços secretos de Israel e/ou dos EUA poderão estar envolvidos… –, terá sido deliberadamente concebido para tornar, o mais possível, inoperacional o programa nuclear do Irão. Tem, segundo a empresa russa de segurança informática, Kaspersky, mais quatro variantes ativas. O seu efeito sobre o sistema de controle das centrífugadoras de enriquecimento de urânio foi fazê-las girar bastante mais rapidamente do que o normal, causando brechas no seu interior sem que os funcionários se percebessem de imediato do ocorrido. Teve o efeito de atrasar algumas semanas, eventualmente meses, o enriquecimento de urânio. Uma vez que as centrifugadoras das instalações nucleares iranianas não estão ligadas à Internet, o vírus terá sido introduzido através de um dispositivo com saída USB, como, exemplo, uma pendrive. Trata-se de um dos mais complexos e provavelmente do mais poderoso software malicioso até agora criado. A novidade resulta também do facto de comprovar, num caso bem real, como uma infraestrutura crítica pode ser efetivamente alvo de um ato de ciberguerra, confirmando novas possibilidades e riscos estratégicos. É consensual entre os especialistas não poder ter sido produzido por um vulgar hacker até porque eram necessárias informações privilegiadas sobre o funcionamento das instalações nucleares iranianas, o que escapa, certamente, às possibilidades de hackers atuando isoladamente.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, 7/01/2012

domínio público Imagem: sinal de instalação nuclear (domínio público)