O Al-Andalus no imaginário romântico de Chateaubriand

Les aventures du dernier Abencérage

 

1. Na transição do século XVIII para o século XIX, várias almas sensíveis atormentadas com os avanços do cosmopolitismo das Luzes, da Razão, dos Direitos Humanos universais, e, sobretudo, alarmadas com a Revolução Industrial e o crescente igualitarismo liberal, refugiaram-se num passado, real ou imaginado (a maior parte das vezes imaginado). Uma destas almas sensíveis, que empreendeu uma “fuga para trás” – e, por isso, é justamente considerada como fundadora do romantismo francês –, foi a de François-René, mais tarde visconde de Chateaubriand (1768-1848).
Em inícios do século XIX, após uma viagem a Espanha, Chateaubriand descobriu o paraíso perdido do Al-Andalus, sentindo uma enorme nostalgia da “brilhante civilização árabe”, ao fazer o grand tour na exótica Andaluzia. Por essa época, outros românticos descobriam também paraísos perdidos no exótico Próximo Oriente, dominado pelos turcos otomanos, quando faziam o grand tour mais em moda pelo Mediterrâneo oriental. Rapidamente a imaginação romântica de Chateaubriand engendrou um drama que sabe um pouco a um déjà vu Shakesperiano. Em Les aventures du dernier Abencérage, o cenário não foi a cidade italiana de Verona no Renascimento, e os amores impossíveis entre as famílias rivais dos Montéquios e dos Capuletos. O cenário foi a Granada do ex-Al-Andalus (a Península Ibérica muçulmana), após a reconquista cristã dos reis católicos Fernando de Aragão e Isabel de Castela, e a queda do último sultão muçulmano da dinastia Nasrida, Abu Abd Allah (mais conhecido por Boabdil), em 1492. No imaginário romântico de Chateaubriand, este deve ter sido um episódio doloroso que lhe partiu a alma quando deambulou por Granada. Pela pena do escritor-poeta surgiu então uma princesa cristã (Blanca) apaixonada por um nobre árabe, designado no conto por mouro, Aben-Hamet. Este era o último representante da família dos Abencerrages – nome que vem de “Beni Seraj”, uma tribo árabe que terá habitado Córdoba e depois Granada, desde os tempos da conquista do século VII, e rivalizava com a tribo dos Zegris. Os Abencerrages teriam sido dizimada por Boabdil, numa lendária versão mourisca que lembra a vendetta entre Montéquios e Capuletos. (Os confrontos étnico-religioso entre muçulmanos não são propriamente uma novidade da Palestina, do Iraque ou do Afeganistão de hoje.) Como é habitual, para dar intensidade dramática a este tipo de narrativas românticas de amores impossíveis, na família de Blanca corria nas veias o sangue cristão e católico de El Cid e na família de Aben-Hamet o sangue árabe e muçulmano, supõe-se sunita, dos nobres Abencerrages.
2. A estória, situada algures durante o século XVI, durante o reinado do Imperador Carlos V de Espanha, da casa real dos Habsburgos, inicia-se com Aben-Hamet em Tunis, perto de Cartago, para dar mais grandiosidade histórica ao romance. Este, apesar da sua juventude, já tinha a alma despedaçada por estórias das glórias da família em Granada e sobre a beleza do local. Assim, meteu-se ao mar resolvendo ver como era a terra dos seus antepassados na outra margem do Mediterrâneo. Mal chega a Granada cruzou-se na rua com Blanca, e é amor à primeira vista entre os dois. Amor impossível, obviamente, dado ela ser cristã e ele muçulmano, ela ser descendente do Cid e ele dos Abencerrages (na altura ainda não existia a Aliança de Civilizações de Zapatero-Erdoğan, pelo que estes dramas eram bem reais). O enredo decorre com os habituais episódios de passeios pelos amantes em palácios encantados (o inevitável Alhambra), excursões por jardins, fontes e recantos com ciprestes e buganvílias, visitas a cemitérios com inscrições em alfabetos exóticos e meio apagadas nas tumbas. No final, o leitor mais sujeito a comoções é poupado a um remake da tragédia de Romeu e Julieta: aqui os amantes apenas se separam, num doloroso e comovido adeus, seguindo cada um o seu caminho nas duas margens do Mediterrâneo.
3. A Literatura, incluindo a romântica, faz inquestionavelmente parte de um rico património cultural da humanidade e integra, de pleno direito, uma verdadeira cultura humanística. Sem esta, o ser humano seria bem mais pobre de imaginação e de pensamento criativo. O único problema é quando uma imaginação literária e romântica – emotiva e comovente, ou patética e lamechas, consoante os gostos estéticos e literários -, se começa a transformar, subtilmente, numa fonte de “factos históricos” e a influenciar a opinião pública como tal. É essa a sensação que fica quando lemos comentários políticos que apelam ao conhecimento histórico, como o de Miguel Sousa Tavares sobre “A Morte do Islão” (Expresso, 26/0172008) e percebemos o imaginário romântico que lhe está subjacente. Este transforma, sob a forma de uma escrita elegante, estórias (contos, narrativas) em História.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, 31/01/2008. última revisão 15/06/2015

© Imagem: capa do Livro de de François-René de Chateaubriand, “Les aventures du dernier Abencérage” (Gallimard, 2006)

 

O atentado terrorista ao Charlie Hebdo e os valores da República Francesa

Eugène Delacroix  La liberté guidantl le peuple, 1830 (museu do Louvre, Paris)

Este acontecimento, em si mesmo, traz um outro choque para a França. As ideologias políticas seculares e o conceito de esquerda e direita a que estamos habituados nas democracias ocidentais têm uma forte ligação à história do país e à sua cultura política. A Revolução Francesa de 1789 foi um momento chave no seu aparecimento e configuração.

1. Nesta altura, é ainda uma incógnita a dimensão das repercussões na sociedade francesa do atentado terrorista ao Charlie Hebdo, ocorrido em Paris, a 7/1. Seja qual for dimensão e forma que as repercussões adquirirem, vão ocorrer muito prováveis “ondas de choque” ao nível político, de segurança e de relações na sociedade. O atentado visou atingir o cerne dos valores que se alicerça a República Francesa – a liberdade de expressão incluindo o pluralismo, a democracia humanista e a “laïcité” (laicidade, laicismo). O facto de esse ataque ser feito a partir do interior da sociedade francesa expõe, por isso, uma realidade particularmente delicada. Mesmo nas interpretações mais benignas e ponderadas, é impossível não reconhecer que estamos perante uma situação política e socialmente complexa, tendencialmente traumática e de consequências que podem ser perigosas. Vejamos por que motivos isso ocorre.

2. O atentado, ao que tudo indica perpetrado pelos irmãos Kouachi de ascendência argelina, tornou evidente a não atração dos valores franceses da República – ou até a sua rejeição frontal –, por partes minoritárias mas ainda assim significativas da sua população. Nominalmente são cidadãos franceses como quaisquer outros. Todavia, para além dos símbolos formais que os ligam à República (bilhete de identidade e passaporte) não há identificação com os seus valores nucleares. As explicações para isso são muitas e sujeitas a matizes ideológicas, não cabendo aqui analisá-las. É observável que esta “desidentificação” não é um caso isolado, mas o culminar de uma tendência cada vez mais visível. Num outro registo, os acontecimentos de 2005 nos subúrbios de Paris, mostraram essa fractura da sociedade francesa, que pode ficar exposta a qualquer altura por um (im)previsível acontecimento detonador.

3. Para percebermos como tudo isto pode ser traumático para a França, importa lembrar que tem uma enorme tradição, e vocação, como centro difusor de ideias de vanguarda e de progresso. Foi em França que primeiro surgiu a ideia moderna de cidadania (a “citoyenneté”), com direitos e deveres, fazendo parte da nação. Isto por oposição ao absolutismo do Antigo Regime que era a tradição europeia da época, ao qual esta concepção revolucionária era absolutamente estranha. A cultura política francesa está imbuída, pelo menos desde o século das Luzes e da Revolução Francesa de 1789, de ideias universalistas. Por outras palavras, até um passado relativamente recente parecia inquestionável que a cultura francesa e os valores da República eram um modelo que orgulhava os franceses. Originava, também, atração no exterior e seduzi-a os que, por uma ou outra razão, procuravam a França para viver.

4. O atentado ao Charlie Hebdo representa, no mundo real e simbólico, um ataque aos valores nucleares da República Francesa. Não foi só liberdade de opinião, mas também um modo de vida pluralista e tolerante, bem como a “laïcité” que foram atacadas pelos perpetradores. “Nos vingamos o Profeta”, terão gritado ao cometerem a sua chacina em nome de uma ideologia sacralizada, vista como superior a qualquer outro valor da República Francesa, incluindo a vida humana. Importa aqui clarificar um aspecto. Trata-se de um ato de terror, o qual, sob uma fraseologia religiosa, esconde uma atuação ideológica própria ao Islamismo-jihadista, entendido como ideologia política totalitária de raiz não ocidental, que germina, se apropria e (re)interpreta o Islão. (Sobre as suas caraterísticas ver “O Islamismo-jihadista como ideologia totalitária”, Público, 27/09/2014).

5. Este acontecimento, em si mesmo, traz um outro choque para a França. As ideologias políticas seculares e o conceito de esquerda e direita a que estamos habituados nas democracias ocidentais têm uma forte ligação à história do país e à sua cultura política. A Revolução Francesa de 1789 foi um momento chave no seu aparecimento e configuração. O posicionamento das forças políticas na assembleia constituinte revolucionária marcou profundamente a linguagem política francesa e ocidental. Por isso, uma ideologia política não ocidental, não secular, não derivada desse momento fundador revolucionário de 1789, como o Islamismo-jihadista, a qual atrai cidadãos franceses dispostos a lutar por ela, fanaticamente, até às últimas consequências, em rejeição dos valores nucleares da República, é um fenómeno estranho e perturbador. Deixa confusa toda uma cultura política moderna de separação entre o religioso e o político que se sedimentou nos últimos duzentos anos.

6. Há uma lição que a França e as democracias ocidentais, bem como todas as sociedades livres, abertas, democráticas e respeitadoras dos direitos humanos no mundo devem tirar destes acontecimentos. Os seus valores não podem nunca ser dados como adquiridos. Os inimigos reemergem, em cada geração, sob outras formas, algumas mais familiares outras estranhas. No passado do século XX foram os totalitarismos nazi e estalinista os seus piores inimigos. Hoje é o totalitarismo Islamista-jihadista. Se as gerações atuais sentem que não têm uma causa onde dar o melhor de si, aqui têm uma pela qual vale a pena lutar. Essa luta, que é, simultaneamente, intelectual e política, não pode é ser feita através de vias que, sob uma outra forma – por exemplo através da reintrodução da pena de morte, ou da destruição da tolerância face à diferença cultural –, limitam a liberdade, a democracia, o pluralismo e os direitos humanos. Ou seja, tudo aquilo sobre o qual foi construída a forma de estar da qual a França se orgulha e de que somos herdeiros. Fazer isso é cair num retrocesso civilizacional.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes. Artigo originalmente publicado no Público, 9/01/2015

domínio público Imagem: foto (domínio público / Wikipédia),  quadro de Eugène Delacroix, La liberté guidantl le peuple, 1830 (museu do Louvre, Paris)

Os dez pecados de Chipre (para a União Europeia)

Vhils

 

1. Não ser too big to fail ou seja, não ser suficientemente grande para provocar danos graves noutras economias europeias, com a sua eventual bancarrota.

2. Não ser “bom aluno”, como os portugueses, que fazem tudo o que a UE lhes manda, ou até querem ir mais longe (os cipriotas parecem-se demasiado com os gregos).

3. Ter um Parlamento que julga ser soberano e pode aprovar medidas que espelham a vontade democrática da população.

4. Ter os maus hábitos dos países do Sul da Europa, de não se comportarem como alemães, holandeses ou finlandeses, em matéria de dívida pública e défice orçamental.

5. Ter “milionários”, com depósitos bancários inferiores 100.000 Euros, que não querem contribuir para pagar as perdas dos bancos.

6.  Ter amigos russos na política internacional e que fazem depósitos em bancos cipriotas, alguns com dinheiro de proveniência obscura e negócios pouco claros.

7. Ter a ousadia de ter taxas bancárias (e impostos sobre as empresas) baixas, fazendo concorrência aos bancos alemães, holandeses, luxemburgueses, etc. e retirando-lhes clientes.

8.  Ter tido, entre 2008 e 2013, um Presidente do AKEL (o Partido Comunista), que nem atuais membros da UE, oriundos da antiga Europa de Leste, ousaram eleger depois da sua reconversão ocidental.

9.  Ter uma Igreja Cristã Ortodoxa forte, que é uma referência para grande parte da população cipriota grega, e que a elite europeia vê como old-fashion.

10. Não ter aceite o plano Annan, de reunificação da ilha, em 2004, ainda que este fosse mais interessante para a Turquia e os cipriotas turcos.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes. Última revisão 16/06/2014

© Imagem: José Pedro Teixeira Fernandes, foto (em preto e branco) de uma pintura mural de Alexandre Farto, aka Vihls, Museu da Eletricidade, Lisboa, 2014