“É proibido proibir!” na era de Trump e Bolsonaro

Com um clima de guerra cultural e de insegurança instalado, o resvalar para o iliberalismo e para o autoritarismo está em marcha. Resta saber o que vai ficar da democracia tal como a conhecíamos.

1. Talvez os ocidentais —­ sobretudo os que se vêem, a si próprios, como liberais ou progressistas — pudessem perceber melhor o que está a ocorrer no Ocidente se observassem atentamente os fenómenos sociais e políticos em curso nas sociedades muçulmanas. Os valores seculares (e também, de alguma forma, liberais), que estavam aí em ascensão até aos anos 1960/1970, foram amplamente revertidos pela vaga islamista, ou seja, do “Islão político”. Nos últimos anos, a transformação da Turquia com Recep Tayyip Erdogan exemplifica esse rumo dos acontecimentos. Contraria a ideia ocidental de progresso e de crescente secularização da humanidade. Um aspecto maior dessa transformação é a adesão dos jovens ao islamismo. Mostra a direcção da dinâmica social. Em média, o eleitorado do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), o partido Recep Tayyip Erdogan, é um eleitorado mais jovem do que o eleitorado do secular Partido Republicano do Povo (CHP), herdeiro de Mustafa Kemal Atatürk. Ser islamista — que, grosso modo, é o equivalente a ser um radical de direita ou extrema-direita nas sociedades ocidentais — é algo que atrai muitos jovens de ambos os sexos em contexto muçulmano. As razões são complexas, mas, por exemplo, o comportamento de uma jovem que passa a cobrir a cabeça com um véu pode ser motivado por um acto de rebeldia juvenil face a uma mãe / família / sociedade onde isso tinha sido banido.

2. No Ocidente, a partir dos anos 1960, valores e causas que vinham das margens, de uma esquerda alternativa à hegemonia ideológica dos partidos comunistas ao estilo soviético, ganharam terreno político e visibilidade social (grosso modo, na mesma altura em que os islamistas começavam a reverter o secularismo liberal no Islão). Feministas, ambientalistas, sexualidades alternativas (gays, lésbicas e transsexuais), minorias étnicas e/ou religiosas entraram em força na agenda social e política de todos os países ocidentais. As suas causas afastaram-se, gradualmente, do proletariado e da lógica marxista clássica da luta de classes. Hoje são, em grande parte, o mainstream, social e político. Em muitos aspectos, alteraram radicalmente o sentido usual da moral e dos bons costumes. Este enorme sucesso trouxe novos padrões morais e de bom comportamento social. Fundamentalmente estão hoje já enraizados na população com escolarização mais elevada, sobretudo quando a sua formação teve predominância nas ciências sociais e humanidades. (Aí essas ideias operaram uma enorme transformação na forma de fazer teoria e nas temáticas estudadas, que passaram a incluir muitas das novas “causas”). Os media usualmente considerados “de referência”, ou seja, vistos como exemplos de bom jornalismo, são um outro agente crucial do processo de enraizamento dos valores pós-1960. Não é por acaso que são um alvo preferido dos que se lhes opõem no actual ambiente de guerra cultural.

3. “É proibido proibir” (“Il est interdit d’interdire!”) foi um dos slogans mais icónicos do Maio de 68. Captou particularmente bem o espírito de contestação à ordem social e política estabelecida e à moral e bons costumes (conservadores), tal como normalmente eram entendidos na época. Mas, como já notado, as causas dessa época e aquilo que era visto como uma transgressão nos anos 1960 em geral — e no Maio de 68 em particular — hoje são, em grande parte, comportamentos normais na sociedade e na política. Uma das consequências menos percebidas dessa transformação, nas suas mais profundas implicações, é que isso retira a essas ideias/causas o apelo da contestação, na sociedade e na política. Transformou-as, paradoxalmente, na moralidade e bons costumes de muitos dos mais velhos, na população mais urbana e com mais escolarização, retirando apelo aos mais jovens. Assim, o(a) jovem que hoje se afirme a favor da sexualidade fora do casamento, da emancipação feminina, da defesa do ambiente, dos direitos das minorias, etc. não transgride nada. Na realidade, apenas adere aos valores estabelecidos como bons — pelo menos nos já referidos meios urbanos e na classe média com mais educação. Vejamos melhor a dinâmica sociológico-política instalada.

4. Meio século depois, nas sociedades ocidentais, os jovens rebeldes dos anos 1960 são hoje sexagenários ou septuagenários. Mantêm uma (auto)imagem de rebeldia de progressismo e de defesa das boas causas dos mais fracos e excluídos. Todavia, como já notado, para os mais novos, como os actuais jovens millennials (ou geração Y), esses são já os valores da sociedade estabelecida em que nasceram. Não permitem actos de rebeldia e contestação para se demarcaram dos adultos das gerações anteriores. Assim, os sexagenários ou septuagenários que estiveram na origem do actual padrão moral e político usualmente aceite, por paradoxal que possa parecer, estão hoje mais próximos da imagem de guardiães do passado, ou seja, de conservadores, do que imaginam. Ironicamente, estão hoje numa situação similar à dos que suplantaram na função de guardiães da moralidade da era pré-1960. Como resultado dessa transformação, quem parece estar a captar / manipular o sentimento de rebeldia é outro movimento que veio também das margens da sociedade e do sistema político: a alt-right. Tal como os islamistas conseguiram reverter a questão geracional a seu favor no Islão, e transformar o tradicional em radical, incorporando o sentimento contestatário, um processo algo similar parece estar em curso no Ocidente com a direita radical.

5. Nas sociedades ocidentais e em outras que lhes são culturalmente próximas, a maior transgressão das normas morais, sociais e políticas estabelecidas é hoje é feita por indivíduos que se apresentam como anti-sistema e contestatários radicais. Numa lógica de (extrema)direita prosseguem a sua própria versão do “É proibido proibir” e da “normalidade” de transgredir — o sexismo, a homofobia, a xenofobia ou a islamofobia, são as suas transgressões favoritas. Donald Trump elogia a masculinidade viril de um político republicano do Montana com uma piada jocosa sobre agressão a um jornalista. Jair Bolsonaro usa similares técnicas de choque e transgressão nos seus frequentes ataques verbais a feministas e gays. Quanto a Rodrigo Duterte, o actual Presidente das Filipinas, cultiva um radicalismo ainda maior na linguagem e na transgressão de códigos de conduta moral. Dizer e/ou fazer coisas que transgridem a sensibilidade moral e política herdada dos anos 1960, vistas como politicamente incorrectas, parece ser a nova fórmula de sucesso que mobiliza a contestação e as massas.

6. As ideias filosófico-políticas (e técnicas) que serviram para atacar o status quo social e político nos anos 1960 estão agora a ser apropriadas e replicadas pela alt-right e outros movimentos similares. A plasticidade, o radicalismo e as contradições do pensamento do filósofo Friedrich Nietzsche — que já entusiasmou fascistas (Benito Mussolini) e nazis (Adolf Hitler), bem com a esquerda intelectual e política do Maio de 68 Michel Foucault, Jaques Derrida, etc.) — são um bom guia para perceber o radicalismo instalado nas sociedades democráticas e as suas contradições. Ao contrário do que acontecia no passado do século XX, a imagem de “revolucionário(a)”, de contestatário(a), ou de alguém irreverente está a afastar-se, cada vez mais, das feministas, ambientalistas, sexualidades alternativas (gays, lésbicas e transsexuais), ou da defesa das minorias étnicas e/ou religiosas. Esse é, ironicamente, o preço do sucesso das suas ideias. À medida que se transformaram nas ideias políticas e moralidade do establishment, tornaram-se, também, o rosto de um sistema que aos mais descontentes apetece atacar e transgredir, seja qual for o motivo. Ironicamente, às vezes até contra os seus próprios interesses económicos ou políticos.

7. Em sociedades onde se cultivou, durante décadas, a transformação e a desconstrução de valores e regras sociais — originalmente com proveniência da esquerda radical e das margens do sistema —, vive-se uma nova vaga que mimetiza essa lógica — oriunda igualmente das margens, mas agora da direita radical. (Não tem a sofisticação intelectual e política da esquerda radical, sendo, nesse aspecto, bastante grosseira e rudimentar.) Ao mesmo tempo, nas democracias liberais, um dos pilares do sistema moral e de valores erigido no pós-anos 1960, os media tradicionais, perdeu a hegemonia que detinha sobre a formação da opinião pública. Hoje a esfera pública é, cada vez mais, dominada pela Internet e redes socais, com as virtudes e problemas que daí decorrem. São o novo espaço público de contestação e radicalismo por excelência, com o predomínio do emocional sobre o racional, do instantâneo sobre o comprovadamente factual e profundo. O novo terreno do “É proibido proibir!”, agora numa lógica quase antitética da original. Com um clima de guerra cultural e de insegurança instalado, o resvalar para o iliberalismo e para o autoritarismo está em marcha. Resta saber o que vai ficar da democracia tal como a conhecíamos.

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Público, 22/10/2018

© Imagem: José Pedro Teixeira Fernandes

A guerra por outros meios EUA-China, ano I

A guerra comercial que eclodiu entre os EUA a China em inícios de 2018 é um episódio que não deve ser lido isoladamente, nem avaliado por apenas por lentes económicas e comerciais.

1. A China é um gigante com pés de barro, um guerreiro de terracota que se desfaz com a pressão comercial e política dos EUA? Um iminente colapso da China é objecto de previsões e profecias há muito tempo (ver, entre outros, Gordon Chang, The Coming Collapse of China, Random House, 2001). A verdade é que, até agora, o Estado chinês tem conseguido continuar em ascensão. Tem passado mais ou menos incólume pelas grandes crises financeiras e económicas internacionais, como a desencadeada pela falência do Lehman Brothers nos EUA, em 2008. Isto não significa que não tenha debilidades importantes. Estas existem no seu sistema financeiro e no crédito mal-parado, num excesso de capacidade produtiva em certos sectores onde a mão-de-obra já foi mais barata, ou devido aos problemas demográficos ligados à imposição política de filho único. Também o ritmo do seu extraordinário crescimento económico diminuiu. (Ver “China’s Economy Slows Sharply, in Challenge for Xi Jinping” in NYT, 14/12/2018).Todavia, ver nestas fragilidades traços similares aos da União Soviética — a qual se desagregou em 1991 —, que lembram o tipo de competição e rivalidade da Guerra-Fria, é uma analogia desadequada. Ao mesmo tempo, é erróneo pensar que a guerra comercial americano-chinesa é apenas resultado de um “efeito Trump”. E que após este deixar a presidência dos EUA, a mesma acabará. Há causas estruturais do sistema internacional e da política interna de ambos os Estados que apontam para um longo conflito de desgaste com múltiplas vertentes.

2. Importa ter em mente que uma analogia mal usada com circunstâncias do passado induz a ler de forma distorcida o mundo em que vivemos. Pode levar a cometer erros de apreciação e de actuação política. Pondo em paralelo a Rússia e a China, o problema emerge com nitidez. Para os europeus e os norte-americanos, a obsessão com a Rússia tem feito obscurecer uma tendência fundamental do século XXI: na actual competição pelo poder mundial é a China que disputa a supremacia com os EUA, não a Rússia. Quanto à competição político-militar, como nos “bons velhos tempos” da rivalidade americano-soviética, não é a dimensão fundamental dessa competição/rivalidade (pelo menos para já). Face a este contexto político novo, muitos não perceberam a amplitude da competição estratégica pela supremacia na Ásia-Pacífico e no mundo, nem as suas múltiplas ramificações em áreas que, aparentemente, não têm qualquer ligação. Por muito que oficialmente o Estado chinês negue tal ambição, como faz Xi Jinping — e se mostre contido, ou dissimule as suas intenções —, é já hoje um protagonista maior na política global (ver Oriana Skylar Mastro, “The Stealth Superpower. How China Hid Its Global Ambitions”in Foreign Affairs, Janeiro/Fevereiro 2019). Para os ocidentais, o longo prazo para concretização da ambição chinesa pode parecer demasiado longínquo, não valendo assim a pena preocuparem-se muito com isso. Mas para os chineses, enquanto herdeiros de um extraordinário império milenar, o sentido do tempo é diferente (e bem mais alargado) do que o sentido do tempo dos norte-americanos, com um Estado (apenas) nascido na modernidade Iluminista e que não vai além dos duzentos e cinquenta anos de história.

3. A guerra comercial que eclodiu entre os EUA a China em inícios de 2018 é um episódio que não deve ser lido isoladamente, nem avaliado apenas por lentes económicas e comerciais. Tudo indica ser bem mais do que isso. Provavelmente, é um sintoma de uma crescente e profunda rivalidade americano-chinesa, que tem, nesta altura, no comércio o seu principal terreno de disputa. Mas o comércio aqui é sobretudo algo instrumental para os objectivos mais vastos de poder, de norte-americanos e chineses. Para os chineses, os mercados mundiais abertos e as suas exportações são uma alavanca de bem-estar da sua população, mas também um instrumento de poder internacional, cada vez mais global. É flagrante o contraste com a estratégia soviética/russa. Na Guerra-Fria, os soviéticos procuravam, ostensivamente, afirmar a sua supremacia militar e modelo ideológico, fazendo até acreditar em capacidades que não tinham. Quanto aos chineses, fazem agora exactamente o contrário: ocultam, o mais possível, dos olhares do mundo — leia-se dos EUA e outros Estados ocidentais — as suas crescentes proezas tecnológico-militares. Procuram criar a ideia de serem apenas um país interessado no comércio, respeitador das regras multilaterais da Organização Mundial de Comércio (OMC) e que a sua ascensão não será feita à custa de outros Estados (ver “Xi Jinping says China ‘will not seek to dominate’”in BBC, 18/12/2018). Muitos no mundo exterior, incluindo entre nós, por ingenuidade ou por conveniência, parecem subscrever esta visão a qual não resiste, todavia, a um escrutínio mais aprofundado.

4. É sintomático que os EUA tenham invocado motivos de segurança nacional para aplicar direitos aduaneiros adicionais à importação de produtos como o alumínio e o aço. Desde os seus primórdios que o Acordo do GATT, o qual faz parte do acervo dos tratados de comércio da OMC, estabeleceu o seguinte (artigo XXI, alínea (b): “Nenhuma disposição do presente Acordo será interpretada […] como impedindo uma Parte Contratante de tomar todas as medidas que achar necessárias à protecção dos interesses essenciais da sua segurança” (ver Acordo Geral Sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio 1947 (GATT 47)). Uma questão naturalmente se levanta aqui: a aplicação de direitos aduaneiros, invocando razões de segurança nacional pelos EUA — a maior economia do mundo — é um precedente perigoso? Poderá abrir a porta a um aumento generalizado das restrições ao comércio, pela via do nacionalismo económico? Efectivamente, há fundados receios de que o sistema comercial multilateral da OMC possa sofrer sérios “danos colaterais” devido à guerra comercial entre os EUA e a China. Até agora, o artigo XXI do GATT, que permite, em certos casos, restrições excepcionais ao comércio por motivos de segurança nacional, tem sido pouco utilizado. Mas, para o órgão de resoluções de litígios da OMC, este é um terreno armadilhado se tiver de resolver esta disputa. Se decidir a favor da invocação do artigo XXI do GATT, para criar restrições à importação de alumínio e aço, cria um precedente que outros usarão certamente também. Se decidir contra os norte-americanos, considerando abusiva a invocação dessa cláusula, vai alimentar o sentimento anti-OMC favorável a um boicote ou até à saída da organização.

5. A empresa tecnológica chinesa Huawei está agora no centro da confrontação EUA-China. É outro sintoma das múltiplas e díspares facetas do conflito. Wanzhou Meng, filha do fundador da Huawei, Ren Zhengfei, e responsável pela área financeira da empresa, foi recentemente detida no Canadá a pedido das autoridades norte-americanas. A sua detenção e pedido de extradição para os EUA deve-se a suspeitas de violação das sanções impostas pelos norte-americanos ao Irão (ver “China, Meng Wanzhou and Canada — how Huawei CFO’s arrest is playing out behind the scenes” in Global News, 14/12/2018). Neste caso, cruzam-se, de forma particularmente intrincada, as sanções dos EUA ao Irão e a aplicação extraterritorial da legislação norte-americana, com a competição tecnológica e comercial, as suspeitas de espionagem cibernética e as rivalidades políticas pela supremacia mundial. É necessário lembrar que a Huawey está já há vários anos no meio da rivalidade crescente entre ambos os países. Em 2012 essa empresa tecnológica chinesa — que é o maior fabricante mundial de equipamento para redes sem fios e o terceiro maior fabricante de smartphones — esteve envolvida em diversas polémicas originadas pelas suas actividades em algumas das mais importantes economias ocidentais. Importa notar que o seu fundador, Ren Zhengfei, é um antigo oficial do Exército Popular de Libertação da China (ver “Who’s afraid of Huawei? The rise of a Chinese world-beater is stoking fears of cyber-espionage. Techno-nationalism is not the answer” in The Economist, 4/08/2012). A suspeita era — e continua a ser — que a empresa esteja a funcionar como um sofisticado instrumento de ciberespionagem, passando informações sensíveis ao Estado chinês.

6. O duplo uso da tecnologia, civil e militar, mostra a ubiquidade da competição empresarial. Mostra, também, como esta pode ser um importante instrumento de uma grande estratégia de poder estadual, alicerçada, numa primeira fase, na tecnologia civil, na economia e no comércio. A disputa pela supremacia na tecnologia 5G — a quinta geração das comunicações sem fios e da Internet móvel —, na qual a China, através de empresas como a Huawei, se procura posicionar como líder mundial, não é uma mera questão de mercado, ou apenas comercial. Não foi também por acaso que o governo dos EUA proibiu o uso de equipamentos da Huawei nos serviços públicos e em todas as agências estaduais pelos respectivos funcionários (ver “Who’s Afraid of Huawei? Security Worries Spread Beyond the U.S.” in WSJ, 20/03/2018). Tudo indica que o século XXI será marcado pela rivalidade americano-chinesa, em múltiplas frentes. Adaptando o pensamento de Carl von Clausewitz ao actual mundo globalizado, a tecnologia, a economia e o comércio são agora a continuação da guerra por outros meios. Com a abertura de uma frente de guerra comercial, 2018 é o ano I de uma longa disputa pela liderança mundial. Provavelmente durará longos anos, ou várias décadas, poderá ter períodos de acalmia, onde parecerá terminada, ressurgindo mais à frente, numa nova confrontação, na mesma ou noutras áreas. O maior risco é levar ao confronto militar, o que seria catastrófico para a humanidade.

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Público, 20/12/2018

© Imagem:  iStock Getty Images / José Pedro Teixeira Fernandes

“Os factos não existem, apenas interpretações…”: os media e a verdade

 

 

“Os factos não existem, apenas interpretações…”: os media e a verdade

1. Está em curso um assalto aos factos, um assalto à verdade. É essa a denúncia veemente que a imprensa de referência de bom jornalismo tem feito nos últimos anos, sobre as distorções e mentiras de Donald Trump e de outros políticos de perfil populista. Para a imprensa de referência, os factos e a verdade são vistos como intocáveis e não adulteráveis. “A verdade é um bem público” diz-nos o slogan do jornal Público. “O comentário é livre, mas os factos são sagrados” (“Comment is free, but facts are sacred”), declara, por sua vez, o slogan do jornal britânico Guardian, da autoria de CP Scott, editor do Manchester Guardian em 1921 (ver “CP Scott’s centenary essay” in Guardian, 23/10/2017). Na mesma linha, um jornalista do Washington Post indigna-se com a complacência de alguns media: “Incrivelmente, apesar de Trump ter feito mais de 5.000 declarações falsas ou enganosas como Presidente, as maiores organizações de informação e os feeds dos media sociais continuam a injectar as suas mentiras não adulteradas na corrente sanguínea política, sem informarem claramente os leitores que são apenas isso — mentiras.” (Ver Greg Sargent “Memo to the media: Stop spreading Trump’s fake news” in The Washington Post, 11/10/2018). Mas o que são factos e o que é a verdade da qual o bom jornalismo se afirma como garante?

2. Facto (do latim factum) significa “1. Coisa feita, acção realizada. 2. O que aconteceu em determinado tempo e lugar = acontecimento” (ver Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa). O termo “facto” evoluiu de coisa feita, acção realizada, ou seja, fazer (facere em latim), para significar aquilo ao qual corresponde uma afirmação verdadeira (factum). Por outras palavras, uma afirmação é verdadeira se, e só, quando corresponde aos factos, vistos como uma realidade exterior ao indivíduo. Foi nesta lógica de aferição dos factos/verdade que começaram a aparecer, um pouco por toda a imprensa internacional, como no New York Times, fact checks, ou seja, secções e dedicadas à “prova de factos” (por exemplo, ver NYT “Fact check / Fact checks of the day”; ver também “Trump diz que a imprensa não fala dos ataques terroristas. É verdade?” in Público 7/0272017). Face a este esforço do bom jornalismo, de confrontar com a realidade (os factos), as afirmações sem base factual de políticos como Donald Trump, já podemos estar mais descansados de que “A democracia não morre nas trevas” (democracy dies in darkness), como sugere o slogan do Washington Post, usado a partir de inícios de 2017? (Ver The Washington Post’s new slogan turns out to be an old saying” in WP, 24/02/2017). A questão não é assim tão simples. Os ataques aos factos e à verdade têm uma longa e complexa história. E a imprensa não é apenas vítima ou garante da verdade. Um dos problemas mais profundos, o qual aqui vou analisar, radica na influência do pós-modernismo, com origem nas humanidades e ciências sociais, a área “científica” dos estudos de comunicação e dos media. Facilitou o ambiente intelectual e político de criação de “realidades paralelas”, no qual se move Donald Trump.

3. Há cerca de doze anos, Ophelia Benson e Jeremy Stangroom publicaram um livro intitulado Why Truth Matters (Continuum, 2005). À primeira vista poderíamos pensar que é uma das muitas publicações que, nos dois ou três últimos anos, espelham uma crescente preocupação com os graves atropelos aos factos e à verdade. (Ver, entre outros, Michiko Kakutani, “A Morte da Verdade. A falsidade na era Trump”, trad. port, Ed. Presença, 2018). Mas não é esse o caso. No jornal britânico The Independent, Johann Hari fez uma recensão do livro de Ophelia Benson e de Jeremy Stangroom particularmente presciente. Vale a pena reproduzir aqui um excerto. Nele vemos como os efeitos perversos do pós-modernismo radical, aí denunciados, se tornaram demasiado evidentes no mundo em que hoje vivemos. “A academia pós-moderna apresenta isso [o ataque à ciência e à história] como uma batalha a favor dos povos oprimidos, mas, na verdade é uma profunda traição a estes. Tais grupos não precisam que a ciência e a história sejam distorcidas ou suspensas em seu nome. A verdade, a evidência [ou seja, os factos], a razão e a lógica, não são um feudo, um condomínio fechado ou um clube exclusivo. Pelo contrário. São propriedade de todos e a única maneira de refutar mentiras […].” (Ver Johann Hari, “Why Truth Matters by Ophelia Benson and Jeremy Stangroom. The truth? You can handle the truth” in The Independent, 14/05/2016).

4. “Depois de a razão e as evidências terem sido removidas pelos pós-modernistas, o que resta? A tradição, a religião, o instinto, o sangue e o solo, a nação e a pátria — os tropos da direita opressiva” (idem). A conclusão de Johann Hari é, também, particularmente útil para perceber como chegámos ao mundo de hoje. Mostra como há uma grande confusão intelectual instalada, a qual permite um desprezo aberto pelos factos sem grande problema para os que o fazem, seja na vida intelectual ou política. “Benson e Stangroom respondem às frases obscuras e impenetráveis dos pós-modernistas, com frases tão claras que não é preciso nadar nelas. Deveria haver uma lei exigindo que cada compra de um ‘livro’ de Jacques Derrida fosse acompanhada de uma cópia gratuita desta esclarecedora e brilhante resposta” (ibidem). Poderíamos pensar que o livro discute meras questiúnculas entre académicos, que se entretêm a esgrimir argumentos favor e contra o pós-modernismo, e que esse é um problema filosófico que só a eles diz respeito, sem qualquer interesse para a sociedade e a política. Mas não é assim. O pós-modernismo não está confinado à academia. Fez o seu caminho para a sociedade e o jornalismo, ainda que, muitas vezes, sem muitos perceberem bem o alcance suas ideias, nem as consequências sociais e políticas das mesmas a longo prazo, nomeadamente os seus efeitos nos factos, na verdade e nos próprios media. (Ver Julia M. Klein, “How postmodernism destroyed journalism. A review of Scott Timberg’s new book, Culture Crash” in Columbia Journalism Review, Janeiro-Fevereiro de 2015).

5. É possível fazer bom jornalismo à maneira clássica, com o objectivo de respeitar o já referido moto de CP Scott na sua plenitude — “O comentário é livre, mas os factos são sagrados” — estando, ao mesmo tempo, imbuído de um quadro intelectual pós-moderno, tal como foi descrito (e criticado) por Ophelia Benson e Jeremy Stangroom? É possível, por um lado, defender a verdade, como correspondência com os factos e uma realidade objectiva, e, por outro lado, estar imbuído de ideias de que todas as culturas têm o mesmo valor e de que não existe uma verdade objectiva? Impõe-se, assim, evidenciar uma contradição fundamental entre defender a verdade, como correspondência com os factos e uma realidade objectiva exterior ao indivíduo, a qual implica, tendencialmente, a irrelevância da cultura, do grupo e do género. (Isso ocorre, por exemplo, quando se denunciam as declarações de Donald Trump através de fact checks, no New York Times ou no Guardian.) E, paralelamente, usar critérios de “verdade” pós-modernos — para avaliar, por exemplo, islamistas ou feministas —, os quais sustentam que não existe uma verdade objectiva factual, mas “verdades”, no plural, condicionadas pela cultura, o género e o grupo a que o indivíduo pertence. Assim, na lógica pós-moderna, a verdade de Donald Trump, aferida pelos critérios do seu grupo (o Tea Party e a Alt-right), é igual à verdade da CNN ou do Washington Post, aferida pelos critérios de quem partilha a visão do mundo dos media (os liberais, no sentido social e político). Não há, por isso, motivo para nos preocuparmos com a “morte da verdade”. Já estava moribunda pelo ataque do pós-modernismo radical.

6. A resposta à questão formulada no ponto anterior é, ou devia ser, muito clara: não é possível fazer bom jornalismo à maneira clássica e estar, ao mesmo tempo, imbuído de uma visão do mundo e de valores pós-modernos. O pós-modernismo faz mal aos factos e os media estão a provar o veneno que, de forma consciente ou inconsciente, ajudaram a espalhar. Regressemos ao já referido moto do jornal britânico Guardian, os “factos são sagrados”. Pode ter a virtude de apontar um (bom) caminho jornalístico, como na época de CP Scott, o editor do Manchester Guardian dos anos 1920. Todavia, ao mesmo tempo, cria a ilusão de uma objectividade, no sentido clássico, da qual o próprio Guardian se afastou. Se formos às raízes intelectuais do problema, especialmente ao pensamento de Friedrich Nietzsche, que, a partir dos anos 1960, o pós-modernismo redescobriu e direccionou para as suas causas, vemos a questão de forma cristalina. Vemos como se criou um clima intelectual de cepticismo face aos factos, sem se antecipar o alcance pleno desse cepticismo face ao mundo em devir. “Contra esse positivismo que pára diante dos fenómenos, dizendo ‘só existem factos’, eu direi: não, são precisamente os factos que não existem, apenas [há] interpretações…” (ver The Portable Nietzsche, editado e traduzido por Walter Kaufmann, Penguin Books, 1954, p. 458). Um mundo onde os “factos não existem” e “apenas há interpretações” é o mundo onde habita Donald Trump, ainda que numa versão grotesca do pós-modernismo nascido na academia.

7. No Ocidente, pelo menos até aos anos 1960/1970, havia um largo consenso sobre a forma como se aferia a verdade, ou falsidade, de uma afirmação — confrontava-se essa afirmação com o “teste dos factos”. Aspecto crucial da questão: a verdade era vista como algo objectivo, não condicionado ou alterado pela cultura, pelo grupo, pelo género, ou pelos valores de cada um. O resto eram apenas opiniões, naturalmente livres em democracia. Essa era, também, a visão da esquerda intelectual e política. O pensamento marxista aceitava esses pressupostos, vendo-se, a si próprio, como científico e universalista. Mas nos anos 1960/1970 emergiu uma outra esquerda, cultural e pós-moderna, a qual difere substancialmente da tradicional esquerda marxista. Jacques Derrida, Michel Foucault ou Richard Rorty, são algumas das suas influências centrais. Pretendiam contestar o uso da ciência pelo poder e o establishment. Mas, para além dos seus eventuais méritos, a desconstrução, o relativismo e o cepticismo que promoveram corroem a ciência, os direitos humanos e a verdade factual. Assim, a objectividade e o esforço de distinção entre factos e interpretações (opiniões) foram postos em causa, ou abandonados, emergindo o culto da subjectividade e da emoção, contra a objectividade e a razão. O que não foi antecipado é que isso podia abrir caminho a outra contestação radical à direita, que hoje se está a instalar e da qual Donald Trump é apenas a expressão mais visível. A imprensa acordou agora, depois de um longo flirt com tais ideias, ainda que sob o pretexto de apoiar “boas causas”, ou de um sensacionalismo (o apelo à emoção). Está agora alarmada com o atropelo aos factos, e tem motivos para isso. Mas se continuarmos a ver o mundo com lentes pós-modernas radicais, não há “provas dos factos” que salvem o jornalismo e a verdade.

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Público, 28/11/2018

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