O Brexit está a destruir a democracia britânica?

O modelo constitucional-parlamentar britânico — uma referência fundamental das democracias modernas — está hoje desgastado e obsoleto?

1. Pode uma regra parlamentar datada de 1604, usada pela última vez em 1920, obstar à aprovação do acordo negociado por Theresa May para a saída do Reino Unido da União Europeia? Pode essa convenção alterar drasticamente o rumo do Brexit? O modelo constitucional-parlamentar britânico — uma referência clássica e incontornável das democracias modernas — está hoje desgastado e obsoleto? Nos últimos dias, o exuberante Presidente do Parlamento Britânico, John Bercow, surpreendeu ao afirmar que Theresa May não poderia apresentar nova moção para aprovação do seu acordo, após já o ter feito anteriormente, a 15 de Janeiro e a 12 de Março 2019, esta última com ligeiras alterações na declaração política anexa (foi derrotada em ambos os casos). Para justificar a sua oposição a uma terceira votação, John Bercow citou o tratado de Erskine May: “Uma moção ou emenda que seja a mesma, na sua essência, tal como uma questão que tenha sido decidida durante uma sessão, não poderá ser novamente apresentada durante a mesma sessão parlamentar”. Fez ainda notar que têm sido feitas tentativas “para evitar essa regra, apresentando, novamente, com alterações verbais, partes essenciais das moções que foram negadas.” Todavia, acrescentou, “saber se a segunda moção é substancialmente a mesma que a primeira é, em última instância, uma matéria para o julgamento do Presidente”. (Ver UK Parliament, “Speaker’s Statement, 18 March 2019 Volume 656”). Mas o que é o tratado de Erskine May? Como funcionam a Constituição e o Parlamento Britânico para se poder invocar uma convenção de 1604 numa questão política com a importância do Brexit em 2019?

2. Para uma análise do caso britânico, muitos extrapolam, de forma consciente ou inconsciente, a lógica constitucional-democrática portuguesa, que é mais ou menos usual na Europa continental, à excepção do semi-presidencialismo. Incorrem em múltiplos equívocos que distorcem a compreensão do sistema parlamentar e constitucional do Reino Unido. Primeiro, importa não perder de vista, uma constituição é sempre uma resposta política e jurídica a experiências históricas concretas de uma sociedade. No caso português isso é historicamente visível na Constituição de 1822 (feita após a revolução liberal de 1820); na Constituição de 1911 (criada após a instauração da I República em 1910); e na constituição de 1976 (surgida após a Revolução de 1974, que afastou o autoritarismo do Estado Novo e abriu caminho à democracia). Mas a Constituição do Reino Unido não emergiu assim. Não foi resultado de rupturas revolucionárias e/ou de cortes radicais com o passado. Isso aconteceu em França com a Revolução 1789, a qual levou à Constituição de 1791 (ver Conseil Constitutionnnel, “Les Constitutions de la France”). Aconteceu também com os Estados Unidos da América, onde a guerra e declaração de independência de 1776 está na origem da Constituição Federal de 1787. (Ver United States Senate, Constitution of the United States). Esta última é a mais antiga constituição em vigor no mundo. Todavia, entenda-se bem este aspecto, é a mais antiga na lógica de criação de documento político-jurídico, que é expressão da soberania de um povo, e contém as matérias fundamentais do funcionamento do Estado, incluindo os direitos e liberdades dos cidadãos

3. É na lógica do modelo constitucional francês e norte-americano de constituição, surgido em finais do século XVIII, que há supremacia hierárquica da constituição face à lei ordinária. Na Europa continental, é hoje também usual existir um tribunal constitucional. É uma instituição que surgiu pela primeira vez na República Austríaca (1919-1934), após o colapso do Império Austro-Húngaro na I Guerra Mundial. (Ver Constitutional Court of Austria, “The History of the Constitutional Court”). É uma inovação estranha à tradição legal britânica. A instituição de um tribunal constitucional expandiu-se na Europa continental devido aos traumas provocados pela subversão da Constituição da República de Weimar (1919-1933) na Alemanha e à barbárie dos nazis contra os judeus. Na Alemanha do pós-guerra foi instituído um Tribunal Constitucional Federal em 1949 que vigia a aplicação e respeito pela Lei Básica — nome da Constituição federal alemã —, aprovada nesse mesmo ano, com especial ênfase na questão dos direitos fundamentais e dignidade humana. (Ver The Federal Constitutional Court,  “Milestones in the History of the Federal Constitutional Court”). Nada disto emergiu assim no Reino Unido. As instituições constitucionais-parlamentares e democráticas não foram interrompidas pelas duas guerras mundiais, nem pela expansão de ideologias totalitárias. Uma constituição formal e rígida como na Europa continental, garantida por um tribunal constitucional, nunca foi vista como uma necessidade para os britânicos. Não existe supremacia da lei constitucional sobre a lei ordinária, nem existe uma fiscalização judicial da constitucionalidade das leis. Na tradicional formulação constitucional britânica o Parlamento — democraticamente eleito no caso da Câmara dos Comuns — é detentor, sem restrições, da soberania (legal). O exemplo clássico desta doutrina é do jurista britânico Ivor Jennings numa publicação dos anos 1950 intitulada “The Law and the Constitution”. Nela afirmava que “o Parlamento pode legislar a proibição de fumar nas ruas de Paris (Parliament can legislate to ban smoking on the streets of Paris.) Na altura, não se levantava a questão da primazia do Direito da União Europeia sobre o direito nacional dos Estados-membros, que tanto irrita os Brexiteers.

4. Tal como foi evidenciado, a democracia parlamentar britânica e a sua lógica constitucional não resultam de revoluções, nem de rupturas profundas com sistemas políticos anteriores. E isso faz toda a diferença. Houve uma gradual e pragmática configuração das suas instituições, combinando formas de governo monárquico e tradições, com ideias liberais e democráticas, as quais se foram enraizando ao longo do tempo. A bem conhecida Magna Carta, que data de inícios do século XIII, é a mais antiga fonte legal-constitucional britânica, embora hoje largamente simbólica. Limitou o poder do Monarca de Inglaterra e do seu governo através de um parlamento. (Ver UK Parliament, “Magna Carta”). A própria formação Reino Unido como entidade política estadual soberana foi um processo gradual e evolutivo. Primeiro ocorreu o Acto de União de Inglaterra e Gales com a Escócia em 1707; depois, o Acto de União com a Irlanda em 1800. Após a independência do Estado Livre da Irlanda, hoje República da Irlanda, em 1922, surgiu o actual Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte. Face a esta lógica constitucional muito diferente da europeia continental, pode compreender-se melhor o papel da convenção parlamentar de 1604. Está, como inicialmente notado, mencionada no guia de Thomas Erskine May — Secretário da Câmara dos Comuns no século XIX —, sendo este uma espécie de manual para a prática parlamentar (o título exacto é “Um Tratado sobre a Lei, Privilégios, Procedimentos e uso do Parlamento”). É geralmente considerado o texto com mais autoridade no procedimento parlamentar britânico. Originalmente publicado em 1844, está na 24.ª edição. (Ver UK Parliament, “Erskine May”). Para além deste, há uma outra colectânea importante das normas e práticas constitucionais britânicas, feita na óptica do Governo: o “Manual do Gabinete”, elaborado pela primeira vez em 2010. (Ver UK Government, Cabinet Manual). Assim, é equívoco falar de uma constituição não escrita, sem uma clarificação adicional. Tal designação sugere que apenas existem costumes constitucionais não escritos (direito consuetudinário), o que não é o caso, como já explicado.

5. A Constituição do Reino Unido é melhor definida como sendo não codificada, combinando convenções constitucionais que se foram enraizando ao longo do tempo com diversas normas legais escritas. Ao não estar contida num único texto constitucional, produto de uma assembleia constituinte e declarado como de valor superior, é mais flexível que as constituições europeias continentais. É relativamente mais fácil a sua adaptação a novas circunstâncias sociais e políticas. O mesmo ocorre com o seu modelo parlamentar representativo. A regra datada de 1604 invocada por John Bercow para obstaculizar uma terceira votação do acordo negociado Theresa May com a União Europeia, não é uma norma rígida, mas algo ajustável às circunstâncias políticas. Como o Parlamento é soberano, pode, por exemplo, se houver uma maioria nesse sentido, ultrapassá-la, através de uma primeira resolução — ou seja, alterando ou ajustando a regra — seguida de uma segunda, onde o Acordo de 14/11/2018 é novamente votado. (Outra solução é terminar antecipadamente o ano legislativo e iniciar um novo, implicando uma ida da Rainha no Parlamento para a sua reabertura.) Para além do referendo de 2016, o que tem funcionado fora dos moldes usuais é a inexistência de uma maioria parlamentar ampla que apoie o Governo. Tipicamente o sistema eleitoral britânico, uninominal maioritário a uma volta, produz amplas maiorias de deputados. Mas na eleição antecipada de 8 de Junho 2017, o Partido Conservador, apesar de aumentar em 4,6% a sua votação, perdeu 22 deputados e a maioria absoluta (sobretudo devido à subida ainda maior e inesperada do Partido Trabalhista, com Jeremy Corbyn.) Aí começou o grande problema do Governo da actual Primeira-Ministra para encontrar uma solução para o Brexit. Se o resultado tivesse sido uma ampla maioria parlamentar, como seria normal noutras circunstâncias, a cláusula de backstoprelativa à Irlanda do Norte e a oposição dos eurocépticos radicais do Partido Conservador seriam mais geríveis. Assim ficou na dependência dos radicais do seu próprio partido e da União Europeia. Neste contexto político, o Parlamento tem muito mais poder efectivo para bloquear o Governo em caso de divergência política, o que mostra vitalidade democrática, goste-se ou não do resultado. Quanto à União Europeia, tem beneficiado de tais circunstâncias para disfarçar as suas crónicas divisões, pelo menos até agora. Resta saber se o acordo de saída será aprovado na terceira votação parlamentar britânica, se esta for efectuada. Ou então se o Reino Unido vai sair da União Europeia a 12 de Abril, ou irá prolongar a permanência. Nenhum destes possíveis resultados será devido à regra de 1604 do tratado de Erskine May, ou a uma degeneração da democracia parlamentar britânica, mas à falta de apoio maioritário de Theresa May no Brexit.

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Público, 26/03/2019

© Imagem:  iStock Getty Images / José Pedro Teixeira Fernandes

O Tribunal Penal Internacional preso na teia do poder e da política

 

Ao deixar-se enredar na teia do poder e da política internacional, o TPI acaba por sair também seriamente afectado na sua própria credibilidade.

 

1. Se as denúncias da Amnistia Internacional estão correctas, a China está a proceder a violações em massa dos Direitos Humanos no Xinjinag (ver “China: Families of up to one million detained in mass “re-education” drive demand answers” in Amnesty International,https://www.amnesty.org/en/latest/news/2018/09/china-xinjiang-families-of-up-to-one-million-detained-demand-answers/). Podem os responsáveis políticos chineses por tais violações ser investigados — e eventualmente julgados e condenados —, pelo Tribunal Penal Internacional (TPI)? Entre os juristas europeus e ocidentais, o TPI tem tido maioritariamente um apoio entusiástico, sendo elogiado como um marco para uma ordem global mais justa. A nível Internacional, o Direito e a Justiça iriam, finalmente, prevalecer sobre a impunidade, de governantes, militares e outros autores dos “crimes mais graves que afectam a humanidade no seu conjunto” (artigo 5º, nº1, do Estatuto de Roma do TPI). À impunidade das violações de Direitos Humanos e das leis da guerra (Direito Internacional Humanitário) — ou à sua dependência exclusiva da actuação das jurisdições penais nacionais —, sucederia uma nova era de responsabilização internacional e de castigo dos infractores. Instituído no pós-Guerra Fria, nos anos 1990, no contexto da carnificina das guerras da Jugoslávia e do genocídio no Ruanda, o TPI surgiu sobretudo devido ao impulso político dos europeus da União Europeia. Estávamos numa era de optimismo quando à criação de instituições globais efectivas. Mas pode um tribunal do qual se afastaram as três maiores potências mundiais — EUA, China e Rússia —, cumprir tais expectativas?

2. Como todas as instituições internacionais assentes em tratados regulados pelo Direito Internacional, necessitam, para o comprometimento dos Estados com elas, de passar por um duplo processo. Primeiro, a assinatura do tratado, ou do instrumento instituidor. Em seguida, a ratificação deste segundo os mecanismos constitucionais internos (ver o artigo 125º nº2 do Estatuto de Roma do TPI). Numa instituição com o objectivo de ter “jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional”, como estabelece o artigo 1º do seu Estatuto —, a assinatura e ratificação pela grande maioria dos Estados do mundo é um aspecto fundamental. Mas também é importante para o seu sucesso que os Estados com mais população no mundo e as maiores potências, se comprometam com o mesmo. Dos 193 Estados membros da Organização das Nações Unidas (ONU), actualmente 123 são partes do Estatuto de Roma do TPI. Num primeiro olhar, este número sugere um grande sucesso pois quase 2/3 dos membros da ONU estão vinculados ao Estatuto de Roma, aceitando a competência do TPI. Mas um segundo olhar mostra que não é exactamente assim e que o seu alcance é bem mais limitado do que parece. Na Ásia-Pacífico, a região mais populosa do mundo, a adesão ao TPI é muito fraca. Nenhum dos dois Estados mais populosos do mundo (a China e a Índia), nem outros com grande dimensão populacional (Indonésia e Paquistão), se vinculou ao Estatuto. Em termos de poder, ou seja, de grandes potências, o panorama é ainda mais desolador: tal como já referido, nem os EUA, nem a China, nem a Rússia aceitam a jurisdição do TPI sobre os seus nacionais.

3. No caso dos EUA, seja com presidentes democratas (Bill Clinton e Barack Obama), seja com presidentes republicanos (George W. Bush e agora Donald Trump), nunca houve ratificação do Estatuto de Roma. Com os democratas a oposição ao TPI é discreta e algo envergonhada; com os republicanos é ostensiva e ruidosa (ver “John Bolton threatens ICC with US sanctions” in BBC, 11/09/2018, https://www.bbc.com/news/world-us-canada-45474864). Na prática, o resultado é idêntico. (Com Bill Clinton houve a assinatura do texto do Estatuto de Roma, provavelmente sem intenção de ratificação, competência que, aliás, cabe ao Congresso). Quanto à China prossegue a sua estratégia habitual: procura tirar o máximo partido do sistema internacional estabelecido, cultivando um low-profileque lhe permita ascender a potência global com um mínimo de anti-corpos. Assim, a posição de princípio do governo chinês é de não estar contra o TPI, mas, na prática, nada fez para se vincular, nem terá qualquer intenção de o fazer. Os problemas de Direitos Humanos existentes no Tibete e o já referido caso do Xinjiang (ver “Pequim diz que os ‘campos de reeducação‘ de muçulmanos lhes torna ‘a vida mais colorida‘ in Público, 16/10/2018, https://www.publico.pt/2018/10/16/mundo/noticia/pequim-diz-que-os-campos-de-reeducacao-de-muculmanos-lhes-torna-a-vida-mais-colorida-1847786), bem como a crescente ligação económica e política chinesa a Estados normalmente vistos como violadores destes, não deixam grandes dúvidas. No caso da Rússia, o seu regresso como grande potência, com Vladimir Putin, e o envolvimento nos conflitos da Geórgia, Ucrânia (incluindo a anexação da Crimeia), e Síria, levaram-na a retirar a sua assinatura do Estatuto de Roma, em 2016. (Tal como os EUA, a Rússia apenas tinha assinado o Estatuto, mas nunca o ratificou — ver “Russia withdraws signature from international criminal court statute” in Guardian, 16/11/2016, https://www.theguardian.com/world/2016/nov/16/russia-withdraws-signature-from-international-criminal-court-statute). Assim, dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, só os cada vez menos influentes europeus — França e Reino Unido —, se vincularam à sua jurisdição.

4. Muitos Estados africanos têm mostrado o seu descontentamento com o TPI. Acusam-no denão ser uma jurisdição imparcial e neutra e de prosseguir um número desproporcional de casos em África (ver “Is Africa on Trial?” in Global Policy Forum, https://www.globalpolicy.org/international-justice/the-international-criminal-court/general-documents-analysis-and-articles-on-the-icc/51455-is-afriica-on-trial.html). É denunciado, de forma ainda mais contundente, como sendo um instrumento do neocolonialismo europeu. Para além do passado colonial, a crítica de vários líderes africanos toca em dois pontos particularmente sensíveis. Um tem a ver com as relações de poder no sistema internacional. Como já vimos, políticos e militares de grandes potências estão praticamente fora do alcance da actuação do TPI. Isso implica que, na prática, só poderão ser julgados e condenados cidadãos de Estados fracos ou pouco poderosos. A outra questão envolve um reparo de fundo às soluções jurisdicionais em matérias que contêm uma inevitável dimensão política. Quando são julgados casos como o de Slobodan Milošević — o líder sérvio acusado de crimes de guerra —, os juízes estão a fazer uma justiça totalmente imparcial e neutra? Ou os juízes acabam por entrar, inevitavelmente, num terreno político, pela própria natureza do processo?  Na actualidade, é o caso da Venezuela poderá trazer de novo esse explosivo debate. Vários Estados da América Latina e o Canadá instaram o TPI a abrir um processo contra Nicolás Maduro e outras personalidades do seu regime por violações graves dos Direitos Humanos (ver “Venezuela: Six States Request ICC Investigation” in Human Rights Watch” 26/09/2018,  https://www.hrw.org/news/2018/09/26/venezuela-six-states-request-icc-investigation). Se processo avançar para julgamento, a politização do caso será inevitável.

5. Em teoria, um tribunal como o TPI, ao permitir investigar, julgar e condenar os responsáveis individuais por violações graves dos Direitos Humanos e/ou do Direito Internacional Humanitário foi um grande passo para fazer justiça no mundo. Todavia, com os constrangimentos que este enfrenta aqui discutidos, criados pelas grandes potências e pelos Estados mais populosos do mundo, bem como pela inevitabilidade de colocar juízes a decidir casos que nunca são só jurídicos, a realidade é bastante diferente. Na prática, a maior parte da humanidade acaba por estar fora do alcance do TPI. Na prática, provavelmente nenhum político ou chefe militar de uma grande potência será alguma vez julgado e condenado pelo TPI, em casos, por exemplo, como as já referidas perseguições e internamento dos uigures no Xinjiang (China), crimes de guerra no Afeganistão (EUA), ou a ocupação e anexação da Ucrânia (Rússia). Assim, o que fica para ser julgado e condenado, em situações de graves violações de Direitos Humanos, são cidadãos de Estados fracos, ainda que estes possam ser indivíduos poderosos para os padrões desses mesmos Estados. Essa é a realidade dura e crua: só nesses casos o TPI consegue efectivamente actuar e punir os eventuais infractores. Como resultado, por existir um manifesto tratamento desigual perante o poder dos Estados fortes, associado a uma inevitável politização do jurídico / judicial. Ao deixar-se enredar na teia do poder e da política internacional, o TPI acaba por sair também seriamente afectado na sua própria credibilidade.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes  30/10/2018

© Imagem: Wikimedia Commons

A defesa europeia entre a NATO, a neutralidade e o federalismo

 

 

Importa deixar bem claro à partida: o primeiro problema da defesa europeia resulta da própria complexidade e incoerência política da Europa. Ao contrário dos EUA, da Rússia e da China — entidades estaduais unificadas e dotadas de soberania — a Europa não tem essa coerência política.

 

1. No actual contexto político internacional, de divisões profundas na relação transatlântica, impõe-se pensar em alternativas para a defesa europeia. Como anteriormente notado (ver “O preço do ‘outsourcing‘ da defesa europeia” in Público 15/07/2018), é mais fácil identificar o problema do que apontar um outro caminho que seja coerente, credível e praticável. Não vou aqui abordar a questão das ameaças no espaço geopolítico europeu e no mundo envolvente, tais como a instabilidade no Mediterrâneo Sul e Oriental, a proliferação de armamento nuclear, químico e biológico, os ciber-ataques, o terrorismo, o islamismo-jihadista e outras. É sem dúvida uma questão fundamental, mas necessita de uma análise e discussão própria, até para avaliar em que medida tais ameaças necessitam de uma resposta militar, ou esta é desadequada. Neste texto vou analisar apenas, de forma tentativa, hipóteses alternativas ao modelo da NATO tal como actualmente está configurado, sendo o referencial da análise a União Europeia. As possibilidades que vou tratar são as seguintes: (i) a criação de uma política de defesa integrada numa União Europeia federal; (ii) a transformação da União Europeia numa entidade neutral; (iii) uma reconfiguração da NATO com a defesa europeia garantida por europeus. Por último, analisarei ainda as relações europeias com a China e a Rússia, sob o prisma da defesa.

2. Importa deixar bem claro à partida: o primeiro problema da defesa europeia resulta da própria complexidade e incoerência política da Europa. Ao contrário dos EUA, da Rússia e da China — entidades estaduais unificadas e dotadas de soberania — a Europa não tem essa coerência política. Nem a Europa (geográfica), nem mesmo a União Europeia — se simplificarmos a questão usando-a como referencial da discussão sobre a defesa europeia — têm subjacentes uma entidade política com competência abrangente similar a um Estado soberano. Na União Europeia as competências de segurança e defesa são fundamentalmente nacionais, apesar de existir uma política comum nesta área. Todavia, não há transferências de soberania em matéria de segurança e defesa, como, por exemplo, no comércio, ou na moeda (na zona euro).  Ao mesmo tempo, a União Europeia integra quatro Estados neutrais — Irlanda, Áustria, Finlândia e Suécia —que, pelo estatuto da neutralidade, não podem fazer parte de alianças militares.  Esta complexidade e diversidade é um primeiro obstáculo a uma abordagem coerente e credível face ao mundo exterior, nomeadamente na relação com as três maiores potências militares da actualidade: os EUA, a Rússia e a China.

3. No plano dos princípios, a melhor solução seria a criação de uma política de defesa integrada pela União Europeia. Teoricamente, as actuais circunstâncias, de divisões transatlânticas e de desinteresse do actual presidente dos EUA pela NATO, favorecem-na. Mas há um problema circular extraordinariamente difícil de romper (a não ser na teoria / utopia): sem federalismo político não é possível construir uma defesa europeia integrada, pois a soberania mantém-se nos Estados nacionais; ao mesmo tempo, uma defesa europeia integrada (um “exército europeu”) também nunca poderá existir sem federalismo. Na União Europeia, por razões de soberania na defesa nacional, não é possível usar todas as capacidades e recursos existentes como se estivéssemos dentro de um mesmo Estado europeu. Um usual argumento europeísta-federalista é o de que os Estados-membros da União Europeia, mesmo gastando quase todos abaixo de 2% do PIB, afectam já, no seu conjunto, um valor que supera o de grandes potências como a Rússia e China (em termos absolutos, não em relação ao PIB). Mas esse número é uma mera adição da totalidade das despesas nacionais. Como já explicado, os seus efeitos só poderiam ser comparáveis à despesa militar da Rússia ou da China numa lógica integrada de Estado (federal). Com esse argumento, os europeístas-federalistas incentivam, assim, os europeus a seguirem a via federalizadora. Mas a solução enfrenta um poderoso obstáculo democrático. Não existe uma Europa federal porque a grande maioria das populações europeias não quer essa solução. E em democracia a vontade das populações tem de ser respeitada. Não pode ser evadida por lógicas tecnocráticas, nem por uma “integração furtiva” como tem sido feito, alimentando a revolta populista. A solução para a defesa europeia terá então de ser encontrada fora do federalismo, pelo menos no futuro imediato.

4.  A solução da neutralidade atrai alguns espíritos mais idealistas e outros não tão idealistas. A neutralidade europeia seria a concretização última do ideal da “paz perpétua” kantiana. Estaria em plena coerência com ideia da União Europeia como um benévolo “soft power” — um novo tipo de actor político que rejeita o “hard power” das grandes potências tradicionais e a perfídia da “realpolitik”. A reforçar o argumento é normalmente apontado o caso dos já referidos quatro Estados neutrais da União Europeia. Ideais à parte, é fácil demonstrar que não é uma solução adequada para a defesa europeia. A neutralidade é um estatuto de Direito Internacional onde um Estado que se declara neutro se abstém de tomar partido em conflitos político-militares e participar em alianças. A sua política externa é a de manter a neutralidade diante de conflitos actuais e/ou futuros. Espera, naturalmente, que os outros Estados respeitem a sua neutralidade. Mas isso é a teoria. A história mostra que pode não ser assim se o seu território for um local adequado para manobras militares, ofensivas ou defensivas. Casos como o da Bélgica, durante a I Guerra Mundial, que, apesar da sua neutralidade, foi invadida, não deixam grandes dúvidas. (Ver Encyclopaedia Britannica, “Neutrality”). No mundo actual, transformar a União Europeia numa imensa Suíça — o caso maior sucesso de neutralidade — é apenas um ideal/utopia. Nem a geografia da União Europeia é a da Suíça (que está protegida por fronteiras naturais montanhosas e longe do mar), nem as ligações dos europeus ao resto do mundo permitem tal distanciamento/isolamento político-millitar, nem a pertença de Estados europeus ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, como membros permanentes (França e Reino Unido, apesar deste último estar de saída da União), são compatíveis com a neutralidade. Na prática, o apelo sedutor da neutralidade significaria enfraquecer e vulnerabilizar (ainda mais), a União Europeia.

5. Face à inadequação das alternativas anteriores, uma reconfiguração da NATO onde a defesa europeia é fundamentalmente garantida por Estados europeus (leia-se da União Europeia), reduzindo as necessidades de recurso a infraestruturas e equipamentos militares norte-americanos, é a única que parece viável no futuro imediato. A previsível saída do Reino Unido da União — o Estado europeu com mais capacidades militares — trouxe adicionais dificuldades a um problema já complexo. Ainda não é claro em que medida os britânicos vão continuar ligados ao resto da União Europeia. Em qualquer caso, importa ter em mente que é NATO é, cada vez menos, uma Organização do Tratado do Atlântico Norte. Não é uma questão de coerência, ou falta dela, face ao nome original, mas de perceber o impacto geopolítico dos seus alargamentos. Nos seus primórdios apenas a Itália — mais tarde a Grécia e também a Turquia — exorbitavam da área Atlântico Norte. No pós-Guerra Fria mais de uma dezena de Estados aderiu a esta. Todavia, dos novos membros, apenas a Polónia e os Estados Bálticos têm uma dimensão inequivocamente atlântica. Os restantes são do Centro e Leste europeu, com alguma preponderância dos Balcãs. É outra área geopolítica com as suas próprias questões de segurança e defesa. Para além destes desenvolvimentos no continente europeu, o mundo está a recentrar-se na Ásia-Pacífico. Um continuado interesse dos norte-americanos pela NATO provavelmente passará por reconfigurá-la também como uma aliança militar apoiando os EUA globalmente, em potenciais conflitos noutras partes do mundo, especialmente na Ásia-Pacífico. Resta saber se isso será do interesse dos europeus.

6. Há ainda a questão das relações com a China e a Rússia que é outra dimensão fundamental no actual mundo multipolar. No caso da China — e para além dos aspectos estritos de defesa —, esta parece ser vista, por muitos europeus, como possível aliada para garantir a globalização e a ordem liberal contra as investidas de Donald Trump. (Ver “EU and China edge closer in Trump’s ‘America First’ world” in EUObserver, 13/07/2018). Tal ideia mostra a confusão estratégica instalada entre os europeus na sequência das divisões transatlânticas. A China não é liberal em nenhum sentido da palavra. Pretender preservar a ordem liberal internacional aliando-se à maior potência capitalista autoritária do mundo é um absurdo. Ou então é uma cínica “realpolitik” que descredibiliza os valores democráticos-liberais europeus. A China usa instrumentalmente a ordem liberal internacional para robustecer a sua economia e aumentar o seu poder, incluindo militar. (Ver “How the West got China wrong” in The Economist, 1/05/2018). Beneficia de uma abertura desigual dos mercados que conseguiu na OMC, a partir de finais dos anos 1990, por miopia estratégica e ganância ocidental. Isso tem-lhe permitido aumentar, drasticamente, o poder económico-político-militar. Muitos europeus não se apercebem que existe uma estratégia chinesa de deliberado “low profile”, de esconder as suas capacidades, de não reclamar a liderança para não criar contrapoder, esperando o tempo certo para actuar. (Ver ?“Deng Xiaoping’s ‘24-Character Strategy’” in Global Security, 28/12/2013). Quanto mais o peso da China se fizer sentir no mundo mais os valores democráticos-liberais irão retroceder. E os interesses fundamentais de defesa chineses pouco ou nada têm a ver com os europeus. No pior cenário, poderão até estar em rota de colisão.

7. Por último o caso da Rússia. Na Europa/Ocidente as discussões sobre a Rússia adquirem facilmente um tom emotivo e polarizado. Russófobos e russófilos digladiam-se de forma extremada. Em grande parte isso explica-se pelo passado da Guerra-Fria onde esta era o principal inimigo da Europa/Ocidente, mas também por ter sido uma referência ideológica incontornável do socialismo-comunista. Tudo isso deixou marcas profundas. Mas a Guerra-Fria terminou na transição dos anos 1980 para os 1990. No entanto, por razões históricas e geográficas, na maioria do Leste europeu, em especial na Polónia e nos Estados Bálticos, a Rússia continua a ser vista com grande desconfiança e como um potencial inimigo. Em claro contraste, na maioria do Sul da Europa — Grécia, Chipre, Itália, etc.—, a Rússia é vista sobretudo como um parceiro. Por sua vez, na parte mais ocidental da Europa tende a prevalecer a visão de um competidor estratégico mitigada também com a ideia de um parceiro, como se vê na Alemanha. Ao mesmo tempo, nos países e/ou sectores da opinião pública que olham com mais suspeição para a Rússia, Vladimir Putin é uma espécie de arqui-inimigo. Procura destruir a ordem liberal internacional. (Ver Molly K. McKew e Mark Hertling “Putin’s attack on the US is new Pearl Harbor” in Politico, 17/07/2018, https://www.politico.eu/article/putins-pearl-harbor-attack-on-the-us-is-our/). Tal quadro mental obscurece que a estratégia russa é sobrevalorizar o seu poder, o qual tem limites maiores do que parece porque não é suportado pela sua demografia e economia. (Ver Banco Mundial, “Gross domestic product 2017”). Mas a grande discrepância de percepções europeias — e as emoções exaltadas que a Rússia desperta —, tornam muito difícil uma política coerente e equilibrada face a esta. Em qualquer caso, é impossível separar a Rússia do espaço geopolítico europeu. A sua presença impõe-se na equação da segurança da Europa. Por isso, assegurar os legítimos interesses de defesa do Leste europeu sem alimentar a lógica de inimigo russo é uma prioridade da defesa europeia. Não há manual de instruções para isso. Necessita de pragmatismo político e de uma hábil visão estratégica.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Público, 15/07/2018

© Imagem: União Europeia / A bandeira europeia