A Europa em Crise

europa em crise

A Europa é antiga e futura ao mesmo tempo. Foi batizada há vinte e cinco séculos e, no entanto, continua em fase de projeto. Poderá a velha Europa responder aos desafios do mundo moderno?

Jacques Le GOFF[1]

O século XXI começou mal para a Europa e o Ocidente. Em 2001, o 11/S marcou um rumo dos acontecimentos que poucos imaginariam no final do século anterior. O otimismo associado à queda do muro de Berlim (1989) e ao fim da Guerra-Fria, já abalado pelas guerras sangrentas que puseram fim à ex-Jugoslávia, dissipou-se rapidamente. A crise financeira iniciada em 2007/2008 nos EUA e que alastrou, em seguida, para a Europa, transformou-se na crise mais grave do pós-II Guerra Mundial, adensando, ainda mais, o clima de pessimismo. A União Europeia e zona euro ficaram no centro do turbilhão, de uma forma provavelmente surpreendente mesmo para os mais cépticos sobre as sua virtudes. Os europeus veem agora o seu nível de vida e regalias sociais em constante ameaça de retrocesso. Quase tudo o que era dado como certo pelas sucessivas gerações do pós-II Guerra Mundial, sobretudo a partir dos anos 60 do século XX, começou a ser posto em causa.

Como chegamos até aqui? Quais são as raízes mais profundas desta crise? Como será possível ultrapassá-la? Na reflexão sobre a atual situação importa distinguir causas estruturais – mais longínquas e, por vezes, não perceptíveis à primeira vista – e causas conjunturais. Como se verá em seguida, é uma particular conjugação de causas, estruturais e conjunturais, que dá uma dimensão especialmente aguda à crise financeira iniciada em 2007/2008. Esta acabou por ser um catalisador de situações latentes, as quais vão muito para além do domínio financeiro e económico. Na realidade, o modelo europeu desenhado no pós II-Guerra Mundial acaba por estar, de uma ou de outra forma, em causa. Pode parecer excessiva esta afirmação mas há sinais fortes que o welfare-state, o modelo de integração da União Europeia e o processo de transformação social e liberalização dos costumes simbolizado pelo Maio de 68, se esgotaram. Associados à crise económica e financeira, estão a arrastar a Europa para um retrocesso sem precedentes. Mais: visto retrospectivamente o passado europeu dos últimos vinte anos sugere a ideia de um progresso económico e social muito mais frágil do que parecia, se não mesmo de uma “fuga para a frente” num caminho que, mais tarde ou mais cedo, acabaria por levar a um beco sem saída.

Sobre a atual crise europeia, proponho, em seguida, uma reflexão alargada, estruturada em cinco tópicos fundamentais para a sua compreensão global. O primeiro tópico analisa o efeito de boomerang que o capitalismo globalizado está a ter sobre a Europa e os mais antigos países industrializados. Quando se iniciou a atual globalização, na transição dos anos 80 para os anos 90 do século XX, os europeus, norte-americanos e japoneses, viam-se, a si próprios, como ganhadores do processo de abertura dos mercados e liberalização do comércio internacional, que, aliás, lideraram. Tinham, nessa altura, um monopólio praticamente total das economias mais competitivas e de grande capacidade exportadora. Procuravam que as outras economias se abrissem aos seus produtos. Nesse contexto, para além do argumento tradicional a favor do livre comércio – anunciando ganhos de bem-estar generalizados –, desenvolveu-se uma crença dogmática nas virtudes da competição/competitividade. Se a década de 90 trouxe, genericamente, ganhos para os europeus, o início do século XXI mostrou uma nova realidade “imprevista”: a da crescente transferência dos ganhos da abertura dos mercados para a China, Índia, Brasil, etc., associada a uma desindustrialização e deslocalização generalizada de empresas dos antigos países desenvolvidos para as novas áreas de crescimento.

O segundo tópico é sobre as ambições contraditórias daquilo a que, simbolicamente, chamo o legado do Maio de 68. São evidenciadas as contradições intrínsecas às reivindicações desse movimento, mostrando-se como a transformação social e estilos de vida que promoveu, entraram, através de um processo de lento deslize, em colisão com a sustentabilidade sócio-demográfica. Esta é uma das causas estruturais profundas que atinge hoje as sociedade europeias e ocidentais, amplificando os efeitos da crise.

Um terceiro tópico questiona a cultura hedonista-materialista europeia e ocidental, o ethos relativista no qual está enraizada, e as consequências sócio-demográficas do primado absoluto do homo economicus. São postos em evidência os excessos e contradições de um capitalismo globalizado, o qual ultrapassou o “óptimo de Pareto” e ameaça, agora, tornar-se numa “paixão nociva”. Mostra-se como a obsessão com o crescimento, ligada à obsessão com uma expansão contínua do mercado para novas esferas da vida humana, corrói as bases da sustentabilidade societal de que a própria economia capitalista necessita para prosperar.

O quarto tópico é sobre o imperativo de as sociedades europeias encontrarem um novo caminho, o qual possa constituir uma alternativa aos modelos lançados no pós II Guerra Mundial. Estes respondem, cada vez menos satisfatoriamente, às exigências políticas, económicas e de bem-estar contemporâneas. Discute-se, em particular, o exemplo do Japão, um caso de extraordinário sucesso na economia internacional entre os anos 60 e 80 do século XX. O declínio económico japonês das últimas duas décadas é analisado em conexão com tendências demográficas do país, no qual se encontra uma das populações mais envelhecidas do mundo. Mostra-se, ainda, como uma análise estritamente económica pode ser redutora, ao considerar (ou ignorar) como meras externalidades os aspectos sócio-demográfico-culturais. A reflexão deixa uma questão em aberto: será que ao olharmos para o Japão de hoje estamos a ver o futuro próximo da Europa?

O quinto tópico aborda especificamente o caso português e a posição do país na União Europeia. É revisto, sucintamente, o percurso de Portugal no espaço europeu, desde a revolução de 1974 até à adesão às Comunidades em 1986, passando pela surpreendente participação, nos anos 90, como membro fundador da zona euro. Nesse contexto, são relembradas as interpretações flexíveis que prevaleceram na interpretação dos critérios de convergência nominal previstos no Tratado de Maastricht (sobre o défice orçamental, a dívida pública, a taxa de inflação, a taxa de juro e a taxa de câmbio) e cujos efeitos nefastos se estão hoje a sentir. Tal lógica política permitiu obter um “sucesso” aos países do “Club Med” (os atuais PIIGS – Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha), os quais surgiram como fundadores do euro, a par das economias do norte europeu. Tudo isto em nome do objectivo grandioso de uma união política que hoje se transformou numa necessidade imperiosa de salvação do euro. A possibilidade mais sugerida é a de um governo económico europeu, sob a forma de um federalismo económico, a qual parece ter um largo consenso na elite política e económica portuguesa. Todavia, face às circunstâncias económico-políticas, a reflexão equaciona em que medida um governo económico europeu, a ocorrer, não surgirá antes pela via da realpolitik, como um diretório de potências com nefastas consequências para o futuro do país e da Europa.

 

NOTAS

[1] Jacques Le Goff, A Velha Europa e a Nossa, Lisboa, Gradiva, 1995, p. 62.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes

© QuidNovi/Verso da História, 2012 (excerto, Introdução)

Islamismo e Multiculturalismo. As Ideologias Após o Fim da História

Islamismo e Multiculturalismo

É um facto que, tal como o liberalismo e o comunismo, o islamismo constitui uma ideologia sistemática e coerente, com um código próprio de moralidade e uma doutrina de justiça e política e social. O apelo do islamismo é potencialmente universal, chegando a todos os homens como homens, e não enquanto membros de um determinado grupo étnico e nacional. […] Apesar do poder demonstrado pelo islamismo, na sua actual renovação esta religião não exerce virtualmente nenhum fascínio fora das áreas de tradição cultural islâmica. Ao que parece, o tempo das conquistas culturais dos Islão chegou ao fim: poderá recuperar apóstatas, mas não encontra eco junto dos jovens de Berlim, Tóquio ou Moscovo […] De facto, é provável que, a longo prazo, o mundo islâmico de mostre mais vulnerável às ideias liberais do que o inverso, uma vez que essas ideias atraíram inúmeros e poderosos aderentes muçulmanos no último século e meio.

Francis FUKUYAMA(1992: 64-65)

 

Agora que já existe algum distanciamento histórico sobre os grandes acontecimentos que puseram fim ao conflito ideológico da Guerra-Fria em 1989-1991 – a queda do Muro de Berlim, a dissolução do Pacto de Varsóvia e a desagregação da União Soviética –, começam a existir mais condições para nos voltarmos a interrogar «a frio», sobre a questão do «fim da história», no sentido de fase final da evolução ideológica da humanidade; ou, numa outra formulação, para nos interrogarmos sobre aquilo que de forma irónica Russel Jacoby (1999:1) chamou «o fim do fim do fim da ideologia»[1], devido às sucessivas proclamações de «extinção das ideologias» feitas ao longo da segunda metade do século XX, primeiro por Raymond Aron[2] nos anos 50, depois por Daniel Bell[3] na transição para os anos 60 e mais recentemente por Francis Fukuyama[4], no final dos anos 80 e início dos anos 90. Na primeira década do século XXI, onde nos encontramos actualmente, começam a existir condições para avaliar, de forma mais distante do objecto de estudo, se o colapso do modelo soviético e a consequente descredibilização do seu principal rival ideológico – o socialismo-comunista – deixou, tal como foi sustentado pelo último dos já referidos pensadores, a democracia capitalista liberal sem concorrentes de relevo no terreno das ideologias políticas, ou, pelo menos, sem um adversário ideológico capaz de mobilizar as populações e se expandir a nível mundial.

Para um europeu e ocidental, falar de ideologias políticas é algo que remete essencialmente para a modernidade europeia e para acontecimentos políticos de grande impacto como a Revolução Americana (1776), a Revolução Francesa (1789), ou a Revolução Russa (1917). E é algo que remete também para ideários extremamente heterogéneos como o nacionalismo, o liberalismo, a social-democracia, o socialismo-comunista, o fascismo, o nacional-socialismo (nazismo) etc, onde se encontram concepções políticas bem diferenciadas ou até radicalmente opostas. Desta forma, a ideia de concepções díspares sobre a forma ideal de organização politica, económica e social de um Estado e das próprias relações internacionais, surge estreitamente associada à noção de ideologia. O automatismo desta associação faz normalmente esquecer que existe, pelo menos, um importante traço comum entre estas, geralmente não evidenciado: todas são, na sua essência, produtos da cultura europeia e ocidental, no sentido em que os seus pensadores e as suas raízes filosófico-políticas se encontram nesta. Assim, nomes tão díspares e com formas de pensamento próximas ou radicalmente opostas, como Karl Marx, Rosa Luxemburg, Antonio Gramsci, Friedrich Nietzsche, Martin Heidegger, John Stuart Mill ou Alexis de Tocqueville, entre muitos outros, correspondem, também, a diferentes facetas da cultura europeia e ocidental, independentemente de poderem ser motivo de exaltação ou da mais veemente rejeição. Por outro lado, algumas ideologias – os casos mais óbvios são liberalismo e o socialismo-comunista –, estão, desde a sua génese, claramente imbuídas de pretensões universalistas, no sentido em que vêm as suas ideias como projectáveis (e válidas) para toda humanidade, embora os seus principais pensadores estejam indubitavelmente enraizados na cultura europeia e ocidental. Uma outra característica das ideologias políticas e da luta ideológica tal como esta é tradicionalmente entendida na Europa e Ocidente, é que estas têm um campo de batalha privilegiado no terreno da economia política[5]. Esta imagem mental enraizou-se devido a uma longa e árdua competição ideológica, cujas raízes se encontram no século XIX, protagonizada, essencialmente, pelo liberalismo e pelo socialismo-comunista, e que marcou o campo da discussão política durante a quase totalidade século XX: à economia de mercado, baseada na lei da oferta e da procura, na livre iniciativa empresarial e na propriedade privada, articulada com a liberdade de comércio e de investimento no plano internacional, opunha-se a concepção diametralmente oposta de uma economia planificada de direcção central, que eliminava os mecanismos do mercado e a propriedade privada dos meios de produção, e, se não suprimia, pelo menos condicionava fortemente o comércio e o investimento internacional, que era feito numa lógica não capitalista e de relações entre Estados.

Se, tal como num passado que já vem do século XIX, continuarmos a ver (ou a entender que deve ser) a economia política o terreno privilegiado onde actuam as ideologias, acabamos por chegar a uma ideia relativamente próxima do «fim da história» (Francis Fukuyama) ou do «fim do fim do fim das ideologias» (Russel Jacoby), ou seja, que a luta ideológica se dissipou, ou, pelo menos, perdeu a grande importância que tinha no passado, devido sobretudo ao colapso do modelo soviético (o principal suporte da ideologia socialista-comunista no plano internacional e do seu modelo económico-social[6]). Todavia, esta visão da competição ideológica tendo como cerne da disputa a economia política – a qual, como já fizemos notar, foi herdada do século XIX e se alicerçou ao longo da maior parte século XX – não permite captar outras formas da competição ideológica que surgiram nos finais do século XX e início do século XXI, que não devem ser menosprezadas, particularmente enquanto objecto de estudo.[7] Assim, e alargando a grelha de leitura de forma a corrigir o estreitamento da perspectiva, a primeira hipótese que colocamos é a de que dentro das sociedades europeias e ocidentais se atravessa um período de transição e de reconfiguração. Neste processo, é possível observar-se que, ainda que lentamente, o cerne da disputa está a deslocar-se do terreno da economia política para a «cultura»[8] – a incógnita, à qual só o tempo permitirá responder, é saber se esta é apenas uma deslocação na actual conjuntura e sem grande relevância no longo prazo (uma moda efémera, como todas as modas, intelectuais ou materiais), ou vai ser uma tendência estruturante do confronto ideológico nas próximas décadas –, surgindo, associadas a esta deslocação e reconfiguração, novas teorias e/ou ideologias políticas[9] cujos contornos ainda não estão bem definidos. Isto por que estas ainda se encontram em fase formativa e não têm visibilidade política junto do cidadão comum da maneira tradicional, ou seja, sob a forma de um partido ou movimento político organizado como tal, pelo que não são percebidas como ideologias (políticas). No contexto desta reconfiguração do terreno ideológico que está a ocorrer dentro das sociedades europeias e ocidentais, provavelmente o principal conjunto de ideias que hoje tem a ambição de afirmar-se como uma ideologia (política) é o multiculturalismo – no sentido que Paul Kelly[10] dá aos conceitos de «multiculturalismo» e de «ideologia» –, o qual foi qualificado por Russel Jacoby (1999: 33), de forma bastante sugestiva mas também que não deixa de ser irónica, como a «ideologia de uma era sem ideologia».

Uma segunda hipótese que colocamos é a de que esta reconfiguração ideológica não está apenas a ocorrer no plano interno das sociedades europeias e ocidentais, mas que se estão também a verificar desenvolvimentos relevantes e que merecem particular atenção, no plano internacional. Aqui a dificuldade – também directamente relacionada com a perpetuação dos quadros mentais que vêm do século XIX – é a de que para o cidadão comum e para o próprio estudioso da Filosofia Política e da Ciência Política, normalmente é assumido, ainda que de forma implícita (e geralmente por omissão), que não existem ideologias políticas de relevo, que não sejam europeias e ocidentais. Foi com este quadro mental bem interiorizado que o final da Guerra-Fria e o desaparecimento da União Soviética foi amplamente percebido como o final do confronto ideológico, que deixou a democracia capitalista liberal sem um rival ideológico à altura. Mas será esta leitura da realidade inteiramente correcta, ou será que está a distorcer a nossa percepção do mundo do século XXI? Será que não existem mesmo ideologias políticas não ocidentais, com ambições de poderem ser abraçadas (ou impostas) a toda a humanidade, tal como o liberalismo ou o socialismo-comunista, e com potencial de expansão a nível mundial? Um olhar sobre o título curioso de um conjunto de ensaios do pensador iraniano Ali Shariati – Marxismo e outras falácias Ocidentais – publicado postumamente em língua inglesa em 1980, logo após o triunfo da revolução iraniana (1978-1979), pode dar-nos uma primeira pista: o marxismo, uma falácia ocidental? Qual o sentido desse título?! Mas o marxismo não era a ideologia do «Leste», do campo oriental, ou seja da União Soviética e seus aliados, e o ideário político do principal rival/inimigo do Ocidente? A compreensão para este título talvez se possa encontrar num livro precedente, publicado originalmente em 1949, em plena Guerra Fria, da autoria do egípcio Sayyid Qutb, Justiça Social no Islão – o principal teórico dos Irmãos Muçulmanos (ou Irmandade Muçulmana) –, onde este afirmava: «Não nos devemos deixar iludir pela aparentemente dura e amarga luta entre os campos oriental e ocidental. Nenhum deles tem mais do que uma filosofia materialista da vida e no seu pensamento estão bastante próximos». E acrescentava ainda: «não há diferença entre os seus princípios e as sua filosofias». A verdadeira luta é «entre o Islão por um lado, e os campos combinados do Oriente e do Ocidente, por outro lado. O Islão é o verdadeiro poder que se opõe à força da filosofia materialista professada igualmente pela Europa, América e Rússia» (1949 [2000]: 316). Assim, ao contrário da convicção expressa por Francis Fukuyama no final da Guerra-Fria e, alguns anos mais tarde, também por Gilles Kepel em Jihad: expansion et déclin de l´ islamisme/Jihad: Expansão e Declínio do Islamismo (2000) – o qual, entretanto, já reviu a sua posição[11] –, a hipótese é a de que o islamismo, enquanto fenómeno ideológico, continua a ter um significativo potencial de expansão a nível internacional – não só dentro dos países islâmicos como fora destes, incluindo nas sociedades europeias e ocidentais –, pelo que necessita de ser analisado na sua complexidade (em rigor, não há um islamismo, mas diversos islamismos, com diferenças que não são propriamente só de pormenor) evitando a tentação de leituras imediatistas e generalizações excessivas que, normalmente, originam previsões falaciosas[12] (as previsões têm-se mostrado um assunto perigoso nas Ciências Sociais…).

A apreensão da reconfiguração ideológica no plano internacional levanta um problema ainda mais difícil e melindroso do que dentro das sociedades europeias e ocidentais, que começa logo no facto do assunto nos obrigar a olhar para fora das nossas fronteiras culturais – no caso em análise para o Islão –, implicando um esforço fundamental em tentar perceber como é visto o «político» no seu interior, em conhecer os fundamentos e correntes da sua reflexão política e os principais pensadores que lhe estão associados, os quais, no essencial, são estranhos, ou, pelo menos, mal conhecidos da tradição de pensamento europeia e ocidental; e, tarefa que não é de menor importância, apreender as suas próprias categorias de pensamento e conceitos, que também não são os da Ciência Política com a qual estamos familiarizados. Estas induzem a tomar a parte com o todo, ou seja, a que qualquer ideia política e/ou ideologia política com proveniência no Islão acabe por ser quase automaticamente percebida na Europa e Ocidente apenas como «muçulmana» ou mais provavelmente, no actual contexto, como «fundamentalista muçulmana»; e, numa versão simétrica desta, que as ideias políticas e/ou ideologias políticas originárias da cultura europeia e ocidental sejam quase automaticamente rotuladas como «cristãs», ou eventualmente ocidentais. Estas leituras são incorrectas do ponto de vista do rigor analítico, pois entre outras imprecisões, sugerem uma uniformidade de ideias e de pontos de vista que, naturalmente não existem, nem dentro Ocidente, nem dentro do Islão. Por isso, são potencialmente negativas[13] do ponto de vista político, na medida em que tendem a gerar automatismos e estereótipos falaciosos na percepção da outra cultura, do género muçulmano = fundamentalista, do qual, por exemplo, uma imagem simétrica é secularista = cristão (ou, de uma forma ainda mais absurda para um ocidental, comunista = cristão). Assim, a questão da reconfiguração ideológica no plano internacional implica traçar uma distinção crucial, embora, como veremos ao longo deste trabalho, bastante complexa e difícil de efectuar, entre o Islão como religião e cultura (ou seja, a prática religiosa-cultural dos muçulmanos) e o Islão como política (o islamismo[14]) o qual, na nossa opinião, deve ser analisado teoricamente e tratado na prática como uma ideologia política. Todavia, a representação e o estudo do islamismo como uma ideologia política enfrenta, pelo menos, três poderosos obstáculos intelectuais: i) o islamismo é um movimento muito amplo e heterogéneo – onde se reflectem as próprias divisões entre o Islão sunita e xiita –, que adquire tonalidades locais nos diferentes países e que tem variantes importantes do ponto de vista dos objectivos e dos meios utilizados para a acção política, o que torna virtualmente impossível efectuar uma «teoria geral do islamismo»; ii) o islamismo deriva de uma matriz cultural que não é europeia nem ocidental o que dificulta muito o seu conhecimento, mesmo para as camadas da população mais instruídas da Europa e Ocidente e até com conhecimentos específicos na área da Filosofia Política e Ciência Política; iii) os princípios do islamismo são inspirados e/ou derivados, directa ou indirectamente, do livro sagrado dos muçulmanos – o Corão – e da Tradição ligada aos ditos e acções de Maomé – Suna/ahadith – os quais funcionam, ou, talvez de forma mais precisa, são objecto de re-apropriação como «manifesto político», o que induz, nas categorias de pensamento e linguagem ocidentais, o automatismo de representação e classificação desta realidade como um assunto de «religião» e não como um assunto de «política». Apenas um exemplo muito evidente deste problema, o qual se pode encontrar na Carta de 1988 do movimento palestiniano fundado pelo Xeique Ahmed Yassin, o HAMAS (cujo acrónimo significa literalmente «zelo» ou «fervor») – e que, actualmente, detém o poder executivo da Autoridade Palestiniana, através de um governo chefiado por Ismail Haniya. Este documento, no seu artigo 8º, clarifica que, em termos ideológicos, «Alá é o objectivo, o Profeta o modelo e o Corão a Constituição» (ver anexo 12)[15]. Devemos, por esse facto, tratar o HAMAS – ou, para utilizarmos outro exemplo bem conhecido do Islão xiita, o Hezbolá (Hezbollah/Hizbollah) do Líbano, o movimento liderado pelo Xeique Sayyid Hassan Nasrallah, literalmente o «Partido de Deus», que também participa no governo libanês – como um grupo religioso e considerar as críticas ao seu ideário (que é político, no sentido europeu e ocidental da palavra) como uma ofensa religiosa e aos valores sagrados do Islão, que este afirma defender, tal como o HAMAS?

Para a abordagem desta complexa temática apresentamos, em seguida, um trabalho que estruturamos em cinco capítulos, seguido de doze anexos com documentos e textos diversos. No primeiro capítulo analisamos o islamismo como uma ideologia política de raiz não ocidental com ambições universalistas, procurando traçar os seus contornos essenciais e captar a heterogeneidade das suas formas de pensamento e actuação, sem qualquer pretensão de exaustividade e, muito menos, com o intuito de apresentar uma espécie de «teoria geral do islamismo». Aqui, por simplificação e facilidade analítica agrupamos o islamismo que tem, ou pode vir a ter, uma relação com a realidade europeia – aquela que nos interessa mais directamente neste livro –, em três grandes variantes: i) o islamismo radical; ii) o islamismo «capitalista»; iii) o islamismo «multiculturalista». Num segundo capítulo, abordamos a questão da conexão cultural do islamismo na Europa e do potencial para a difusão das suas ideias constituído pela significativa diáspora muçulmana (países da Europa Ocidental) e populações muçulmanas autóctones (países dos Balcãs), para depois tentarmos ver em que medida os diferentes movimentos islamistas exploram esta conexão cultural, tentando mobilizar os muçulmanos religiosos e/ou sociológicos[16] para a sua causa política. Num terceiro capítulo, a abordagem incide sobre os desenvolvimentos ideológicos no interior das sociedades ocidentais, associado à deslocação da competição do terreno da economia política para o terreno da cultura. Desta forma, é analisado especificamente o caso do multiculturalismo e da sua ambição de moldar a actual agenda política de acordo com a sua ideologia da diferença, dando origem às chamadas «políticas da identidade». Neste contexto, é analisada a questão da perda de relevância da antiga ideia da luta de classes marxista (proletariado versus burguesia), que vem desde o século XIX, e do potencial de mobilização política da nova ideia multiculturalista da «luta pelo reconhecimento» (identidade oprimida versus cultura dominante) a qual, em grande parte, resulta da fragmentação e deslocação para o terreno da cultura da clássica luta ideológica sobre a economia política. Num quarto capítulo são passadas em revista as opções estratégias do islamismo nas sociedades ocidentais, nomeadamente ao nível das possíveis alianças que este pode tentar forjar com diversos movimentos sociais e políticos das sociedades europeias e ocidentais (por exemplo, com a Igreja Católica ou as diversas Igrejas Protestantes, em causas como o aborto, a crítica aos dogmas religiosos, ou a difusão do «criacionismo» contra a teoria da evolução das espécies de Charles Darwin; ou, numa outra via, com «ideologias fortes» de direita, explorando afinidades ideológicas como a concepção «totalizante» do político e interesses comuns – a democracia capitalista liberal como principal inimigo de ambas; ou ainda com a esquerda multiculturalista empenhada no «reconhecimento da identidade» e na «celebração da diferença», pela oportunidade de promover a islamização social e pela aliança contra um adversário comum: as sociedades ocidentais estruturadas pelos valores do liberalismo. No último capítulo do livro efectuamos um estudo de caso sobre o Andalus (a Península Ibérica muçulmana), onde analisamos a maneira como esta realidade histórica tem vindo a ser retratada em diversos livros e artigos de autores ocidentais e muçulmanos. Mais concretamente, analisamos a actual tendência para considerar o Andalus um modelo de «sociedade multicultural» e de convivência entre os «Povos de Livro», bem como para sustentar que o «processo do colonialismo europeu começou no mundo muçulmano com a reconquista». A nossa análise vai discutir em que medida isto se apoia em dados histórico-científicos novos, que estão a levar a um aperfeiçoamento do conhecimento que tínhamos do passado; ou, pelo contrário, se o passado conhecido é o mesmo, sendo o elemento novo a ideologia multiculturalista do presente, que induz uma reinterpretação «revisionista» do passado, funcionando como «imagem no espelho» da distorção nacionalista e eurocêntrica do século XIX.

 

NOTAS

[1] The end of the of the end of ideology/O fim do fim do fim da ideologia é o curioso título do primeiro capítulo do livro de Russel Jacoby, The End of Utopia. Politics and Culture in an Age of Apathy (1999).

[2] Ver Raymon Aron (1955), L’Opium des intellectuals, Paris: Calmann-Lévy.

[3] Ver Daniel Bell (1960), The End of Ideology: On the Political Exhaustion of Political Ideas in the Fifties, New York: The Free Press.

[4] Ver o artigo de Francis Fukyama The End of History? originalmente publicado em 1989 na revista The National Interest, bem como ao livro posteriormente publicado por este sob o título The End of History and the Last Man (1992), onde a ideia do ensaio inicial foi desenvolvida e aprofundada.

[5] O estudo da economia política preocupa-se com o significado e a importância da economia para a sociedade dentro do quadro fornecido pelo poder político do Estado. A sua análise combina o estudo dos factores económicos com o estudo dos factores políticos, centrando especialmente a atenção nas relações que se estabelecem, ou são susceptíveis de ser estabelecidas, entre a riqueza e o poder, quer dentro Estado (disciplina de Economia Política), quer ao no plano das relações internacionais (disciplina de Economia Política Internacional).

[6] Em relação a esta visão algo simplista da «falência» do socialismo-comunista importa notar que, para além da nebulosa constituída pelos movimentos anti-globalização/alterglobalização – os quais são alimentados, numa parte não despicienda, por concepções ideológicas derivadas dessa área política –, actualmente podem observar-se várias tentativas de recuperação, ainda que de forma parcial, deste ideário político na América Latina, como, por exemplo, no caso Venezuela e, aparentemente também, da Bolívia. Todavia, é ainda prematuro avaliar estes desenvolvimentos políticos e saber se são um tendência consistente e em afirmação, ou estamos apenas perante um mero fenómeno conjuntural desta região do mundo.

[7] Note-se que com isto não estamos a querer valorar positivamente esta «deslocalização» do terreno competição ideológica, mas apenas a constatar uma realidade que é observável no terreno social e político.

[8] Quando falamos em «cultura» estamos a utilizar o conceito não no sentido clássico mo mesmo – que é o da noção de cultura que emergiu com o Iluminismo, e que inclui «ideias sobre a educação, sobre cultivar-se e sobre o progresso» (Russel Jacoby, 1999: 35) – mas no sentido amplo do conceito de «cultura» que emergiu na sequência de vários trabalhos antropológicos influentes da primeira metade do século XX (Franz Boas, Margaret Mead, Ruth Benedict, etc.). Como explica Russel Jacoby (idem: 38) – que é um crítico deste alargamento excessivo do conceito de «cultura», que acabou por se impor ao longo da segunda metade do século XX – «a noção antropológica de cultura exclui um ethos liberal e igualitário; este é o seu apelo e a sua verdade. Assim, a cultura perdeu qualquer especificidade, tornando-se tudo e qualquer coisa. Quando a cultura é definida como um ‘conjunto de instrumentos, códigos, rituais, comportamentos‘, não apenas cada povo, mas cada grupo ou subgrupo tem a sua cultura […] A cultura deixou de se restringir ao ‘conjunto‘ das actividades de um povo, podendo qualquer actividade de qualquer grupo formar uma cultura ou subcultura».

[9] Mas que já começam a ser bastante identificadas como teorias e/ou ideologias políticas no campo académico, sobretudo nos meios anglo-saxónicos. Veja-se, entre outros, o manual editado em 2004 por Colin Farrelly sob o título Contemporary Political Thory/Teoria Política Contemporânea, onde existe um capítulo específico para o multiculturalismo, com artigos de Charles Taylor, Bhikku Parekh e Chandran Kukathas (e existem também um outro capítulo com uma temática de alguma maneira relacionada com o multiculturalismo, que é chamada «democracia deliberativa», com artigos de Iris Marion Young, Amy Gutmann e Dennis Thompson, e John S. Dryzek, sendo os dois primeiros autores bem conhecidos também pelos seus contributos para a teoria e o debate sobre o multiculturalismo).

[10] Paul Kelly na introdução livro Multiculturalism Reconsidered/Reconsiderar o Multiculturalismo (2002), editado com um conjunto de artigos que debatem as críticas de fundo anteriormente feitas por Brian Barry em Culture and Equality/Cultura e Igualdade (2001), explica o significado do multiculturalismo como ideologia: «But what does multiculturalism mean? If we stick to the ‘circumstances of multiculturalism‘, it seems to mean little more than the fact of societies with more than one culture in the public realm. The claims of these cultures may conflict the holders of one may find themselves subordinated to another culture, but the point is that merely that there is more than one. In this sense, multiculturalism is largely uncontroversial as it is a fact; but clearly that is not what is at stake […] To respond to these new circumstances, it is argued, we need rethink our categories and values and offer a new form of theoretical language or ideology. (By ideology, I simply mean a political theory that is rooted in political practice and experience and not any technical or philosophical claim about the cognitive or epistemological status of political concepts and discourse.) In this latter sense multiculturalism is a new ideology or form of political theory – it is the latest ‘ism‘. It is primarily in this sense that we will be discussing multiculturalism in this book. It is as a new ideology of form of political that multiculturalism has become the focus of such hated debate. That said, even within the respective camps of both theoretical or ideological multiculturalists there are also heated debates about which particular public policies are best suited to deal with the issues of group recognition, integration or accommodation» (Paul Kelly, 2002 [2005]: 4).

[11] Ver Gilles Kepel (2004).

[12] Tal como aconteceu com o trabalho de Francis Fukuyama (1989 e 1992), que foi objecto de inúmeras críticas e comentários bastante mordazes ao longo dos últimos anos devido à sua previsão do «fim da história» (a universalização da democracia capitalista liberal e o triunfo do american way of life), também a previsão de «declínio do islamismo» de Gilles Kepel, feita em 2000, lhe valeu várias críticas sarcásticas devido ao rumo dos acontecimentos internacionais após o 11 de Setembro de 2001 (anteriormente, em 1992, outro académico francês, Olivier Roy, tinha também previsto «o fracasso do Islão político» no seu livro L´ échec de l´ Islam politique…). Provavelmente por essa razão, nas edições mais recentes do livro de Gilles Kepel a «expansão e declínio do islamismo» desapareceu do título. Isto pode-se verificar quer nas actuais edições (edições de bolso) disponíveis no mercado, efectuadas em língua francesa, quer na edição actualizada em língua inglesa, publicada em 2003 já sob um título diferente (Jihad: The Trail of Political Islam/Jihad: O Rasto do Islão político).

[13] Essa confusão conceptual – que infelizmente é muito vulgar dentro e fora da literatura académica – pode detectar-se no excerto inicialmente citado do livro de Francis Fukuyama (1992: 64-65), onde «Islão» (que deveria designar uma religião e cultura) e o «islamismo» (que deveria designar especificamente uma ideologia politica) são utilizados de forma equivalente, quando, numa utilização com maior rigor analítico deveriam ter conteúdos conceptuais diferenciados (isto, ressalvando a hipótese de tal confusão se dever a uma tradução infeliz para língua portuguesa, o que só poderá ser confirmado através da comparação do texto com o original em língua inglesa, a qual não tivemos oportunidade de efectuar). Mais do que em Francis Fukuyama, é provavelmente no trabalho de Samuel P. Huntington (1993 e 1996), pelo seu grande impacto dentro e fora da academia (está na origem da actual vulgata do «choque de civilizações», uma expressão utilizada por muitos que nunca leram sequer os trabalhos de Huntington), que a não separação conceptual entre o «Islão» e o «islamismo» é mais lamentável e pode ter consequências políticas negativas, gerando imagens distorcidas destas duas realidades. Isto, apesar de existir algum mérito na chamada de atenção para a importância das questões «culturais» nas relações internacionais (Bassam Tibi, 1998: 16 e ss). Como teremos oportunidade de ver no desenvolvimento deste livro, esta confusão conceptual está longe de ocorrer apenas nos teóricos, nos media, e no público em geral das sociedades ocidentais. Também no mundo muçulmano se verifica, frequentemente, uma mistura, deliberada ou não, entre o Islão e o islamismo – basta lembrar os já citados casos de Sayyid Qutb e Ali Shariati –, a qual tem a ver, entre outras razões que aprofundaremos, com as estratégias políticas islamistas, os quais se pretendem apresentar a si próprios como os verdadeiros (e únicos) representantes do Islão, tentando abafar as correntes e os movimentos políticos que se lhe opõem.

[14] No sentido próximo do que Bruno Étienne (1997) e Antoine Sfeir et al. (2002), deram ao conceito de «islamismo», o qual será objecto uma análise detalhada no trabalho que a seguir apresentamos.

[15] A Carta do Hamas de 1988 pode ser também consultada numa tradução do texto integral, em língua inglesa, que está disponível no site da Cornell University/Middle East & Islamic Studies Collection em http://www.library.cornell.edu/colldev/mideast/hamas.htm

[16] Quando falamos em «muçulmano sociológico», estamos a referir-nos a uma identidade social que se pode aplicar a todos aqueles que descendem de pai(s) muçulmano(s), independentemente do seu grau de convicção e prática religiosa, que até pode ser muito baixa ou mesmo nula. Naturalmente que num estudo em profundidade sobre as comunidades muçulmanas na Europa, será necessário avaliar, entre outros aspectos importantes (como, por exemplo, o rito do Islão sunita e/ou xiita seguido, a origem nacional e étnica das populações, etc.), o grau de adesão à crença e prática religiosa dos «muçulmanos sociológicos».

 

© José Pedro Teixeira Fernandes

© Almedina, 2006 (excerto, Introdução)

 

Turquia: Metamorfoses de Identidade

Turquia Metamorfoses de Identidade

Dificilmente se encontrará outro povo mantendo durante tanto tempo relações tão conflituais e ambíguas com a Europa, formando um contencioso feito de invejas e ressentimentos, de fascinação e de terror, tudo isto depositado em sedimentos de preconceitos, onde se enterra toda a abordagem pouco racional do problema. Assim, uma vez cometida a imprudência da escolha de tal objecto de estudo, era sobretudo necessário fazer prova de humildade, não pretendendo fazer a história dos turcos e da sua relação com o Ocidente, enumerar os seus pretensos defeitos e qualidades, para acabar por lhe atribuir bons e maus pontos, ou, ainda, revestir-se duma objectividade condescendente esquecendo os milhares de volumes já escritos sobre este assunto.

Stéphane YERASIMOS (1994a: 9-10)

 

Encontrando-se no centro da problemática das Relações Internacionais, a questão da «identidade»[1] cultural/social/nacional só nos anos 90 do século XX adquiriu, especialmente sob o impulso dos conflitos da ex-União Soviética e da ex-Jugoslávia, uma merecida atenção nos estudos desta área académico-científica. Todavia, apesar do grande aumento de interesse por esta problemática no Mundo Ocidental, a generalidade das abordagens não conseguiu, ainda hoje, particularmente em Portugal, ultrapassar uma certa superficialidade, quer factual, quer analítica. Provavelmente, a este facto não são estranhos nem o carácter periférico do Estado português, face à Geografia e à História europeia, nem as exigências de uma análise académico-científica de tipo pluridisciplinar que esta temática requer.

Esta constatação não deixa de causar preocupações, sobretudo se tivermos em conta que, para o português e europeu do século XXI, a questão da «identidade» se reveste de uma especial importância, que se pode facilmente aferir pela observação das seguintes tendências histórico-sociológicas, e pelas interrogações que estas inevitavelmente projectam quanto aos seus desenvolvimentos futuros:

(i) o ideal de uma identidade (nacional[2]) relativamente homogénea e controlada pelo Estado, está, cada vez mais, a ser confrontado com uma realidade cultural-nacional muito mais heterogénea e pluralista, de tipo multicultural;

(ii) o processo de integração da União Europeia (UE) pode estar a produzir, ainda que lentamente, uma nova identidade – a europeia –, a qual, no futuro, poderá tender para uma sobreposição face à(s) identidade(s) nacionais;

(iii) os sucessivos alargamentos da UE aos países do Centro e Leste europeu, e, especialmente, o possível alargamento à República da Turquia, oriunda de uma matriz cultural-civilizacional com um grau de diferenciação mais evidente, colocam não só a interrogação de saber quais as consequências destes processos ao nível político e estratégico, mas, também, a questão da possibilidade, e dos limites, duma osmose cultural, ou seja, da possibilidade de integração de culturas claramente diferenciadas, numa identidade europeia que se pretende (minimamente) harmoniosa e consistente.

Estas últimas são as questão centrais da investigação que a seguir apresentamos, com particular incidência no problema identitário. Para a sua análise, propomo-nos explorar aquele que, na nossa opinião, é, muito provavelmente, o caso mais interessante, multifacetado e complexo de (re)construção de uma identidade cultural-nacional, em moldes radicalmente diferentes do passado, que se pode encontrar no mundo do século XX/XXI: a transformação do antigo Império Otomano na actual República da Turquia. Desde logo, porque envolveu um esforço de metamorfose cultural, percebido no exterior como «ocidentalizador», que pode ser considerada único no contexto Euro-Asiático, uma vez que se desenrola entre duas áreas civilizacionais bem diferenciadas e historicamente rivais: o Ocidente e o Islão. Mas também porque este processo teve, e tem, consequências sobre a Europa, cuja imagem de si própria também não é, propriamente, uma constante ao longo da história.

Um estudo académico-científico com o(s) objectivo(s) que nos propomos, levanta, naturalmente, dificuldades de tipo metodológico e epistemológico a qualquer investigador originário do Mundo Ocidental, especialmente em Portugal, pela reduzida dimensão da investigação existente nesta área específica das Ciências Sociais e Humanas. Desde logo, em termos metodológicos, levanta-se o problema de praticamente não existirem quaisquer documentos oficiais, ou mesmo fontes secundárias, em língua portuguesa. Há também o problema do acesso às fontes em língua turca, dificuldade essa que pode ser ultrapassada, pelo menos em parte, pelo recurso à informação oficial do governo da República da Turquia, publicada em língua inglesa, nos «sites» oficiais na Internet dos seus diferentes orgãos ministeriais e organismos associados.

Por outro lado, em termos epistemológicos, levanta-se aqui, e com especial intensidade, a questão do etnocentrismo uma vez que o tema em análise implica, frequentemente, o recurso às perspectivas do «outro», quer sobre si póprio, quer sobre nós «europeus» e «ocidentais», tudo isto num objecto de análise que implica conjugar conceitos, ideias e teorias oriundas de duas áreas culturais-civilizacionais, as quais, apesar das suas frequentes interacções, têm, paralelamente, as suas próprias matrizes culturais específicas profundamente enraizadas. Também aqui, a diversificação das fontes e a confrontação de perspectivas pareceu-nos ser a melhor maneira de tentar reduzir, o mais possível, o inevitável etnocentrismo subjacente a uma investigação particularmente complexa, onde o substracto cultural do investigador não é um mero fait-divers e a objectividade é um ideal nunca atingido.

 

NOTAS

[1] Conforme faz notar o antropólogo Bozkurt Güvenç (1997:2), a identidade permite responder a uma questão primordial: «quem és tu?». Muitas das respostas a essa questão podem ser qualificadas como escolhas pessoais; outras são modelos de identidades sociais (colectivas) que podem ser qualificadas como culturais (linguística, étnica, religiosa) ou de tipo nacional (oficial ou ideológica). A afiliação tende a ser identificada com um grupo social onde o voluntário, ou o imposto, leva um sujeito a demarcar-se do(s) outro(s), através de um processo de metacontraste, onde se acentuam aquelas características que o separam do(s) «outro(s)». Por outras palavras, a identidade social envolve, simultaneamente, um processo de inclusão e exclusão e está associada a uma categorização nós/eles. Para além disso, importa notar que as imagens nunca são congruentes ou similares na medida em que o conceito de «nós» é tendencialmente diferente das imagens externas que os outros têm «sobre nós».

[2] Para além das tradicionais categorias de identidade (individual, social e nacional), o sociólogo Manuel Castells (1997 [2003]: 4-5) fala na existência de outras categorias como a «identidade legitimadora», entendida como a identidade que «é introduzida pelas instituições dominantes na sociedade no intuito de expandir e racionalizar a sua dominação sobre os actores sociais» (por exemplo, a identidade nacional que é gerida e controlada pelas instituições do Estado); e na «identidade de resistência» que, por sua vez, este define como aquela que é «criada por actores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica de dominação, construíndo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos» (por exemplo, os grupos sociais, étnicos e/ou religiosos que não são reconhecidos pelo Estado).

 

© José Pedro Teixeira Fernandes

© Imprensa de Ciências Sociais, 2005 (excerto, Introdução)