A Questão de Chipre: Implicações para a União Europeia e a Adesão da Turquia

A Questao de Chipre

 

 

O problema de Chipre consiste não em uma mas em quatro questões relacionadas. A mais importante destas é a relação entre os cipriotas gregos e os cipriotas turcos, a qual configura a questão mais difícil: podem dois grupos nacionais amplamente separados encontrar uma coexistência pacífica envolvendo duas línguas, duas religiões e duas interpretações da história?

Christopher HITCHENS (1984 [1997], p. 158)

 

Situada no extremo oriental do mar Mediterrâneo, próxima da Turquia, da Síria e do Líbano, a ilha de Chipre (Kypros em grego e Kibris em turco) é o território da actual União Europeia (UE) geograficamente mais afastado de Portugal. A distância geográfica parece acompanhar de perto a distância histórica e o (des)conhecimento da actual realidade política, social, económica e cultural do país. Visto a partir deste extremo ocidental da Europa, Chipre normalmente só tem alguma visibilidade nos media quando as negociações de adesão da Turquia à União Europeia colidem com o problema da reunificação da ilha e as posições do governo cipriota. Todavia, várias dúvidas ocorrem: como é que se chegou a esta situação estranha e quase incompreensível para a actual island of peace europeia? Porque é que a ilha foi dividida, de uma maneira que faz lembrar a Alemanha durante a Guerra Fria? Qual a razão pela qual este novo Estado-membro da União Europeia entrou truncado de facto em mais de 1/3 do seu território e em cerca de 1/5 da sua população? Porque falhou, em 2004, o plano das Nações Unidas no seu objectivo de reunificar as duas partes da ilha? Será possível que, no quadro da União Europeia, e num horizonte temporal razoavelmente próximo, se possa alcançar este objectivo e dispensar definitivamente os serviços da mais antiga força de manutenção de paz das Nações Unidas ainda a actuar no terreno (a UNFICYP)?

Embora estes sejam problemas do presente, o estudo do actual conflito de Chipre acaba por nos reconduzir, de uma ou de outra forma, a um olhar sobre vários aspectos do passado como a Antiguidade Clássica greco-romana, o nascimento e expansão do Cristianismo, o reencontro traumático dos dois ramos desavindos da Cristandade sob as cruzadas, as relações problemáticas e de rivalidade com um Islão árabe (e turco) triunfante e a expansão colonial do Ocidente europeu. Mas, talvez mais do que sobre qualquer outro aspecto histórico, a ter de reflectir novamente sobre aquilo a que a historiografia europeia costumava chamar a «questão do Oriente»[1] e sobre os Estados que surgiram sob as cinzas do Império Otomano. Vale a pena ter em mente que esta questão diplomática mais ou menos obscura para o europeu e ocidental médio, ocupou não só as chancelarias europeias durante cerca de um século e meio, como foi marcada por várias crises graves[2] que colocaram as tradicionais potências (Rússia, Grã-Bretanha, França e Áustria e mais tarde também a Alemanha e a Itália unificadas) em situações de conflito político e militar. E que as principais áreas de instabilidade e conflitualidade actual na periferia interna ou externa da União Europeia têm em comum o facto de serem todas de territórios ex-otomanos (Chipre, Bósnia, Kosovo, Palestina/Israel, Líbano, Iraque…). Até há algum tempo atrás a «questão do Oriente» foi vista fazendo parte de um passado já bastante longínquo e sem qualquer interesse significativo para a compreensão dos conflitos do presente, pelo que foi amplamente esquecida pelos políticos e pela opinião pública europeia e ocidental e vista como um assunto de mera curiosidade histórica e académica. Os trágicos acontecimentos ocorridos no ex-território otomano de Chipre, no Verão de 1974, que levaram à partição de facto da ilha, não alteraram a percepção de que esse era um capítulo de um passado longínquo, encerrado e sem sequelas no presente. Pelo contrário, na época, os acontecimentos foram generalizadamente vistos como (mais) um episódio da clássica disputa ideológica soviético-americana pela primazia à escala mundial, através de actores locais interpostos (uma «guerra por procuração»), sem qualquer ligação especial com um passado pré-ideológico. Só com o final da Guerra-Fria, nos anos 1989-1991, e com os sangrentos acontecimentos que ocorreram nos Balcãs, se começou lentamente a alterar esta percepção, assistindo-se a um maior interesse por este passado na procura de explicações para os «incompreensíveis» conflitos que marcaram o fim da ex-Jugoslávia. Mais recentemente, a já referida integração de Chipre na União Europeia e o facto da Turquia ser também um país candidato à União, com negociações de adesão abertas em 2005, trouxeram algum interesse e adicional. Todavia, a questão de Chipre continua a ser vista (na nossa opinião erradamente, pela razões que vamos mostrar ao longo deste trabalho), como um assunto de importância menor para a política europeia e internacional.

Face à necessidade de contextualizarmos historicamente o problema objecto de estudo, vamos, nesta análise, dar alguma primazia aos aspectos histórico-diplomáticos, articulados com a realidade sociológico-política, que nos parecem ser a base mais sólida para um trabalho com as características do que nos propomos efectuar. Naturalmente que um estudo deste género – o qual se encontra no cruzamento da História com a Ciência Política e as Relações Internacionais –, levanta dificuldades de tipo metodológico e epistemológico a qualquer investigador, especialmente em Portugal, pela escassíssima produção científica existente sobre as questões históricas, políticas e de relações internacionais do Mediterrâneo Oriental (um área bastante longe dos tradicionais interesses portugueses, como as relações euro-atlânticas e os países lusófonos), e pelo frágil conhecimento dos seus povos e culturas. Em termos metodológicos, surge o problema de praticamente não existirem fontes documentais, ou mesmo fontes secundárias (livros e artigos científicos), em língua portuguesa. Há também a dificuldade do acesso às fontes em língua grega (clássica e actual) e turca (otomana e actual). Essa dificuldade, que não é menor, pode ser ultrapassada, pelo menos em parte, pelo recurso trabalhos anteriores de investigação científica, bem como pelo recurso à informação oficial publicada em língua inglesa pelo governo de Chipre (e da Grécia e Turquia, bem como naturalmente do Reino Unido). Em termos epistemológicos, levanta-se aqui, e com especial intensidade, o problema da equidistância face às partes envolvidas no conflito, pois há naturais sentimentos de empatia ou repulsa face às atitudes adoptadas pelos diversos protagonistas envolvidos (que, como veremos ao longo do livro, vão muito para além dos próprios cipriotas). A diversificação das fontes e a confrontação de perspectivas foi a maneira que encontrámos para tentar reduzir, o mais possível, as distorções e enviesamento de perspectiva de uma investigação sobre um problema particularmente intricado como este.

Ainda sobre o problema epistemológico, é inevitável reconhecer-se que o substrato cultural e a visão do mundo do investigador, bem como a influência, consciente ou inconsciente, das ideologias do presente sobre a interpretação do passado – nacionalismo e multiculturalismo –, não são um mero fait-divers. Até há algum tempo atrás, a dificuldade típica com que se confrontava quem quisesse analisar com alguma imparcialidade um problema como o de Chipre consistia no clássico problema de manter equidistância face às historiografias nacionalistas de cipriotas gregos (e da Grécia) e de cipriotas turcos (e da Turquia), e dos respectivos simpatizantes. Hoje, para além desta dificuldade que continua a persistir, surgiu uma nova (o que complica ainda mais a questão), que é a dos trabalhos, normalmente de perfil académico, imbuídos de uma ideologia pós-moderna[3] de tipo multiculturalista[4] e que já começam a constituir um acervo considerável. Estes geram, frequentemente, uma ilusória ideia de equidistância face aos actores do conflito e de um carácter progressista da solução avançada para o mesmo – tipicamente um multiculturalismo pós-nacional apresentado como inovador face aos nacionalismos retrógrados. Todavia, como teremos oportunidade de mostrar ao longo do trabalho, sob esta capa atractiva esconde-se, não invulgarmente, um superficial e distorcido conhecimento do passado não ocidental (por exemplo, ignorando a opressão exercida até uma fase avançada do século XIX pelo sistema de dominação «multicultural» dos millet/dhimmi, o qual marca ainda hoje a memória colectiva dos povos submetidos ao poder imperial e colonial otomano em todo o Sudeste europeu).

Assim, para abordarmos este difícil problema das actuais relações europeias e internacionais e tentarmos responder, com alguma consistência e profundidade, às interrogações que formulamos anteriormente, optamos por enquadrar o conflito de Chipre numa visão histórica e política abrangente. Isto levou-nos a considerar também diversos acontecimentos ocorridos na Grécia, no Império Otomano/Turquia e no Império Britânico/Grã-Bretanha/Reino Unido, como relevantes para o rumo dos acontecimentos em Chipre e a procurar enquadrá-los no ambiente político internacional da era colonial, da Guerra Fria e do actual período do pós-Guerra Fria. Para o efeito, estruturamos a nossa abordagem em cinco capítulos. Num primeiro é passado em revista, ainda que de uma forma necessariamente sintética, o passado mais longínquo, no qual abrangemos o longo período histórico que vai da Antiguidade Clássica até à governação veneziana da ilha, terminada na segunda metade do século XVI com a conquista otomana de 1571. No segundo capítulo, a análise vai incidir sobre o longo período de dominação otomana e de pertença da ilha ao devlet-i al-i Osman (o Estado e a casa de Osman), o qual se prolongou no tempo até ao último quartel do século XIX (1878), quando deu lugar aos britânicos, e nas profundas marcas que este deixou na sociedade e na política cipriota. O terceiro capítulo analisa o relativamente curto período da administração colonial britânica (82 anos), com um especial ênfase na forma como foi gerido o processo de descolonização e independência na década de 50 do século XX, e tratadas as pretensões contraditórias dos cristãos ortodoxos/cipriotas gregos de autodeterminação/enosis (união com a Grécia) e dos muçulmanos/cipriotas turcos de manutenção do statu quo ou de taksim (partição) da ilha. O quarto capítulo tem por objecto o curto e conturbado espaço temporal que decorreu entre a independência de 1960 e a partição da ilha em 1974, como resultado da intervenção militar directa da Turquia no conflito cipriota e da permanência das suas tropas no Norte do território, à margem das resoluções da Assembleia Geral e Conselho de Segurança das Nações Unidas. Num quinto e último capítulo a abordagem incidirá sobre as diversas tentativas de reunificação, até agora infrutíferas, com especial destaque para a mais recente destas – o plano do ex-Secretário Geral das Nações Unidas, Kofi Annan. São discutidas as razões do seu fracasso, bem como as implicações e oportunidades que decorrem da integração europeia da República de Chipre, nomeadamente a possibilidade de ser encontrada um solução que satisfaça as ambições das população cipriota grega e turca e os interesses das Potências Garantes (Grécia, Turquia e Reino Unido). Finalmente, são analisadas a consequências que podem advir para a União Europeia e o processo de negociações de adesão da Turquia actualmente em curso, se não for encontrada um solução satisfatória para o conflito cipriota no decurso dos próximos anos.

 

NOTAS

[1] A questão do Oriente esteve directamente ligada ao que normalmente é apresentado como tendo sido o processo de decadência do «homem doente da Europa» (a expressão foi celebrizada pelo czar russo Nicolau I nas vésperas da guerra da Crimeia, de 1853-1856, referindo-se ao Império Otomano). Os seus marcos convencionais são o tratado Tratado de Küçük-Kaijnardja, celebrado em 1774 entre a Rússia e o Império Otomano, após a derrota militar deste último pelos exércitos do czar, e o Tratado de Lausana de 1923, que regulou a dissolução do multissecular Império Otomano e a emergência da República da Turquia.

[2] Para uma panorâmica das sucessivas crises que marcaram a questão do Oriente ver o trabalho de A. L. Macfie, The Eastern Question 1774-1923 (1989).

[3] Tal como a universidade moderna, criada sob o modelo que Whilhelm von Humboldt instituiu em Berlim, na Alemanha do século XIX, tinha como missão principal ser repositório da cultura nacional (ou seja, estava imbuída de uma ideologia nacionalista), hoje é a universidade pós-moderna que está imbuída de uma ideologia e fervor multiculturalista (não assumida explicitamente para o grande público, que a julga ainda devotada à cultura nacional, à promoção da Razão e produção de Ciência, tal como no modelo Iluminista). Se, no passado, podíamos encontrar alguns dos mais fervorosos adeptos e prosélitos da cultura nacional nos departamentos de História e de Literatura, hoje, são os departamentos de Antropologia, Sociologia, Estudos Culturais e de Literatura (Pós-Colonial), que estão na linha da frente do zelo missionário.

[4] Esta ideologia tem as suas raízes na segunda metade do século passado e baseia-se, em termos ontológicos e epistemológicos, uma atitude de soupçon (desconfiança), face ao que chama as «grandes narrativas» da cultura ocidental – o nacionalismo é uma delas – denunciando o perigo de visões essencialistas e a necessidade da sua desconstrução (como se estivéssemos perante uma narrativa literária). Ou seja, no caso aqui em análise, sustenta que a Nação (e consequentemente o Estado-Nação) não é uma realidade primordial ou «essencial», mas uma mera construção social (uma «comunidade imaginada», na expressão celebrizada por Benedict Anderson). Para além do mais, e segundo esta mesma visão ideológica, a construção social da Nação e os movimentos nacionalistas a que esta deu origem, estão na génese das maiores tragédias do século XX. Assim, impõe-se a criação de entidades políticas (e de identidades nacionais) pós-nacionais que a superem. Como facilmente se compreende, estamos perante mais uma proposta ideológica com o seu próprio esquema de acção política e não perante uma solução neutral, nem propriamente uma «terceira via» ou meio termo face aos nacionalismos em disputa (como procura se apresentar), pelo que também necessita de uma vigilante crítica e equidistância.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes

© Almedina, 2009 (excerto, Introdução)

 

A contestação na Turquia em perspectiva: a era Erdoğan revisitada

Público 12-06-2013

São as diversas Turquias que se confrontam, mais uma vez. A dos defensores dos valores republicanos e secularistas  […] e a dos partidários de um regresso balanceado aos tradicionais valores islâmicos sunitas.

1. Desde a chegada ao poder nas eleições de 3 de Novembro de 2002 que o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) marcou decisivamente a Turquia. Nessas eleições, uma conjugação particular de resultados associada à barreira de 10% de votação para eleger deputados permitiu uma larga maioria absoluta, com apenas 34,3% dos sufrágios. Outra particularidade dessas eleições foi o facto de o partido ter sido oficialmente liderado por Abdullah Gül, o actual Presidente da República. Recep Tayyip Erdogan tinha sofrido uma condenação penal que o impedia de ocupar cargos públicos. Motivo? Em 1997, num comício na cidade de Siirt, no Leste do país, citara o trecho de um poema de Ziya Gökalp: “As mesquitas são os nossos quartéis, as cúpulas os nossos capacetes, os minaretes as nossas baionetas e os fiéis os nossos soldados”. Tal ato valeu-lhe uma condenação penal por incitamento ao ódio religioso, mas, nos meses seguintes à eleição, a proibição de ocupar cargos públicos foi levantada. A partir daí Erdogan ocupou o cargo de primeiro-ministro ininterruptamente, vencendo esmagadoramente mais dois actos eleitorais, em 2007 (46,6% dos votos) e 2011 (49,8% dos votos).

2. Até aos recentes acontecimentos do Parque Gezi em Istambul, Erdogan e o AKP eram retratados pela imprensa europeia e ocidental como um caso de sucesso, a vários níveis. Na frente interna fez reformas vistas como aproximando a Turquia aos valores europeus da liberdade, da democracia e dos direitos humanos. Não menos importante, obteve uma vitória diplomática ao conseguir a abertura de negociações de adesão à União Europeia, iniciadas em 2005. Ainda na frente interna, os anos do Governo do AKP foram marcados por um importante crescimento da economia. O seu sucesso contrastou flagrantemente com a recessão do início da década anterior, que ajudou a descredibilizar os seus principais oponentes políticos, nomeadamente o Partido Republicano do Povo (CHP), herdeiro directo de Atatürk. Contrastou e contrasta, ainda, com a forte crise que afecta a generalidade da União Europeia após 2008. Por sua vez, na frente internacional, aumentou a influência política, especialmente nos países árabe-islâmicos, reforçando as relações económicas em várias partes do mundo. Com o início da chamada Primavera Árabe, em 2011, a Turquia surgia como um atractivo modelo para as populações que, da Tunísia ao Egipto, derrubavam ditadores e aspiravam à democracia e à prosperidade económica. A sua combinação entre islão e democracia parecia irresistível. Oferecia um caminho de modernidade que agradava tanto no islão como no Ocidente.

3. Voltemos ao passado. Na altura da sua chegada poder, o AKP de Erdogan era usualmente rotulado como um partido pró-islamista, ou seja, próximo das correntes do islão político, ainda que não radicais. Mas as suas reformas internas e a aproximação à União Europeia foram interpretada como um sinal claro de abandono das suas raízes islamistas. Erdogan e o AKP surgiam, assim, como uma espécie de partido democrata-islâmico, à imagem das democracias-cristãs à europeia. Será essa leitura benigna consistente? Será que traduz bem a evolução política do AKP de Erdogan? Na realidade, há uma outra leitura dos factos que emerge da complexa história política do país. Vejamos como. A República da Turquia foi construída sob inspiração da laïcité francesa, por uma elite liderada por Atatürk nos anos 20 e 30 do século passado. Não foi um processo baseado no consentimento democrático. Enfrentou contestação e revoltas desde o início, nomeadamente dos curdos e da população do interior da Anatólia. Acabou por se afirmar ganhando raízes nos sectores da sociedade ligados ao funcionamento do Estado – o Exército, os tribunais, as universidades públicas, a máquina burocrática-administrativa. Mas os seus valores nunca penetraram profundamente na massa populacional da Anatólia, fora de grandes cidades como Istambul, Ancara ou Esmirna. Aí apenas chegou uma superficial secularização e construção da identidade turca moderna. Os tradicionais valores islâmicos sunitas mantiveram-se como marca identitária dominante. Esta sociologia religioso-política da Turquia foi, e é, claramente favorável a um partido conservador islamista como o AKP.

4. Em que se fundamentam as críticas a Erdogan? Não se tornou a Turquia, sob o seu Governo, mais democrática e se aproximou dos valores europeus? Não foram os militares subordinados ao poder político, como é normal nas democracias ocidentais? A resposta é essencialmente afirmativa. Há, todavia, outros aspectos relevantes que matizam a leitura benigna. Indubitavelmente, a aproximação à União Europeia permitiu a eliminação de mecanismos da Constituição de 1982 merecedores de objecções democráticas. (Esta foi o resultado do golpe militar de 1980, sendo feita sob tutela militar, ainda que aprovada depois por referendo). Mas estes mecanismos eram, também, favoráveis à manutenção da estrutura secular do Estado, no aparelho judiciário, no ensino, no Exército, etc. Por outras palavras, tais reformas constitucionais teriam sempre um duplo resultado: democratização e dessecularização. Assim, uma questão óbvia surge em mente: o que motivou verdadeiramente Erdogan? A adesão à União Europeia e a genuína democratização da Turquia – como geralmente foi interpretado na UE e EUA -, ou uma democratização instrumental, com vista à dessecularização do Estado e a abrir a porta ao islão na vida política e social – como os seus críticos têm sustentado? A propensão para os observadores externos acreditarem que Erdogan estava, genuinamente, a tentar democratizar a Turquia e a levá-la a ser membro da UE, explica-se, provavelmente, por duas razões. A primeira é a superficialidade do conhecimento da política turca e da história do país. A segunda é a aproximação de Erdogan aos valores do capitalismo.

5. Ideologicamente, o AKP faz uma espécie de simbiose entre o islamismo (islão político) e o capitalismo de mercado de tipo neoliberal. Este islamismo capitalista caracteriza-se por uma vontade de enriquecimento através do mercado e de reislamizar o social e o político. O seu surgimento na Turquia deve-se a uma conjugação peculiar de factores internos e externos. Os internos é que o Estado tendia a excluir os cidadãos mais religiosos e os movimentos sociais e políticos islamistas da máquina burocrático-administrativa e das suas benesses. Assim, a tradicional classe média secularista manteve-se ligada ao Estado beneficiando dessa ligação. Com a globalização neoliberal e com o Governo Erdogan adoptando medidas favoráveis ao mercado e à iniciativa privada – iniciadas por Turgut Özal na década de 80 -, esta ficou em desvantagem.

Há, neste processo, uma profunda ironia. A população mais religiosa e/ou com simpatias pró-islamistas, por ter o acesso a empregos e cargos públicos dificultado, foi obrigada a procurar o seu espaço nas actividades empresariais privadas, onde se enraizou (é o caso do movimento Gülen, com as suas escolas, jornais, estações de TV e rádio). O triunfo internacional do modelo capitalista de mercado acabou por favorecê-la, bem como as políticas do Governo Erdogan. Esta nova classe média, com origem na “Turquia profunda”, é bastante mais conservadora social e religiosamente. Mistura os benefícios de uma prosperidade material capitalista com um proselitismo religioso muçulmano-sunita vigoroso. Embora não sendo intrinsecamente anti-democrática, não se revê, também, nos valores liberais à ocidental, nomeadamente na plena liberdade de expressão, no pluralismo social-religioso igualitário, nem na aceitação de estilos de vida não islâmicos.

6. A contestação iniciada em Maio, no Parque Gezi de Istambul, cidade da qual Erdogan foi presidente da câmara na década de 90, transcende a luta pela preservação de um espaço verde. São as diversas Turquias que se confrontam, mais uma vez. A dos defensores dos valores republicanos e secularistas – o projecto urbanístico prevê a demolição do Centro Cultural Atatürk, a construção de uma mesquita e a reconstrução de um quartel otomano – e a dos partidários de um regresso balanceado aos tradicionais valores islâmicos sunitas. A da minoria religiosa alevita – 15% a 20% da população -, fortes apoiantes de Atatürk, do CHP e do Estado secular, que reivindica um tratamento igualitário e reconhecimento, e a do Islão sunita maioritário que os discrimina. (Em paralelo decorre uma contestação ao nome “Sultão Selim I” para a nova ponte sobre o Bósforo). A dos ganhadores da recente expansão capitalista – a obra do Parque Gezi será executada pelo grupo Kalyon, próximo do Governo – e os que não beneficiaram dela, ou rejeitam o capitalismo neoliberal. A da população urbana e cosmopolita, que pretende um pluralismo social e de estilos de vida, incluindo plena liberdade de expressão, e a da grande massa populacional da Anatólia e dos subúrbios das grandes cidades, que os menospreza e rejeita, apreciando o estilo autoritário de Erdogan. O resultado deste confronto, seja ele qual for, vai marcar decisivamente o futuro da Turquia.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes. Artigo originalmente publicado no Público, 12/06/2013

© Imagem: foto de capa do jornal Público de 12/06/2013, mostrando a batalha campal entre os manifestantes e a polícia de choque, no parque Gezi, em Istambul

Grécia: uma esquerda radical fora de tempo? (o “timing” desfavorável do Syriza)

Grécia

 

Há mais neste timing que joga contra o Syriza. Se, na Grécia, o voto de protesto foi sobretudo captado pela esquerda radical, noutros países do Norte da Europa o voto de protesto está a ser essencialmente captado pela direita nacionalista e populista. Estes processos, à primeira vista desligados, alimentam-se.

 

1. Até às eleições legislativas de 2012, ocorridas em plena crise do Euro, a história política da Grécia democrática, que emergiu após a queda da ditadura dos coronéis (1967-1974), era basicamente uma história de alternância entre o PASOK e a Nova Democracia – sem coligações e representando ambos 77,5% a 87,5% dos votos. Nesse ano, mas com raízes anteriores, que mergulham na crise iniciada em 2007/2008, tudo mudou. Assistiu-se a uma implosão do PASOK e à crescente fragmentação do sistema político. Uma força política emergiu em crescendo, obtendo votações próximas dos partidos de poder tradicionais – o Syriza. A vitória eleitoral nas legislativas do passado dia 25/01/2015, no limiar da maioria absoluta de deputados, insere-se nessa tendência anterior. Ao contrário do PASOK (e da Nova Democracia), o Syriza de Alexis Tsipras não pretende ser um partido de esquerda do “business as usual”, como a União Europeia está habituada. Rejeita ideologicamente as orientações de política económica (de austeridade) da Comissão, Banco Central Europeu (BCE) e Fundo Monetário Internacional (FMI). Rejeita também politicamente a atitude de “bom aluno” similar à dos  governos português, irlandês, ou espanhol e um seguidismo do governo alemão de Angela Merkel. Por outro lado, tem um ambicioso programa de governo – o programa de Salónica –, direccionado para a correção das múltiplas injustiças sociais económicas geradas pela crise e políticas de austeridade. No entanto, para ser exequível, tal programa pressupõe, de alguma forma, o envolvimento das instituições da União Europeia e da Zona Euro e o uso dos seus recursos, ou, se isso não for possível, encontrar alternativas a nível internacional.  Entre as várias questões que aqui se levantam, há uma que tem sido pouco analisada mas é crucial: o timing de chegada ao poder do Syriza é-lhe favorável, ou, pelo contrário, terá chegado “fora de tempo” ao poder?

2. Em termos democráticos, a vitória eleitoral do Syriza tem um mérito inquestionável. Mostra como é possível uma escolha que vai além dos partidos do tradicional consenso europeísta, os quais têm governado a Grécia e a generalidade da União Europeia, desde há longos anos. Estes têm, por isso mesmo, inevitáveis responsabilidades políticas pela atual crise. Mostra também como os eleitores, pelo menos os gregos, estão fartos de escolher partidos e governos que se vêm mais executores – frequentemente até entusiastas, de ordens dos tecnocratas da União Europeia e FMI. Não é pouco. Agora vem, contudo, a parte mais difícil. Como passar de um partido de protesto a um partido de poder? Como impor um rumo substancialmente diferente à Grécia, quando a sua economia está profundamente integrada na União Europeia e na Zona Euro, ambas moldadas por lógicas económicas e financeira de tipo neoliberal? Que efeitos têm eventuais concessões à Grécia, em termos de redução dos prazos dos empréstimos, baixa das taxas de juro ou até perdão parcial da dívida, nos restantes Estados-membros da União? Que interrelações se podem estabelecer entre os partidos de protesto à esquerda (como o Syriza na Grécia e o Podemos, em Espanha), e os partidos de protesto à direita (com a Frente nacional em França, ou Partido dos Verdadeiros Finlandeses, na Finlândia)?  Em que medida o calendário de eleições legislativas em diferentes Estados-membros da União Europeia, em 2015, facilita ou dificulta a tarefa negocial do Syriza?

3. Olhando para o calendário – as datas são aproximativas – das eleições parlamentares em vários Estados-Membros em 2015, vemos um problema que se pode facilmente antecipar. Finlândia (abril); Reino Unido (maio); Dinamarca (setembro); Portugal (outubro); Polónia (outubro); Espanha (dezembro). Nos Estados onde há governos de direita ou centro-direita no poder que vão a eleições, as pretensões negociais do Syriza vão enfrentar forte resistência dos seus governos na União Europeia. A Espanha é o caso mais óbvio, onde o governo de direita do Partido Popular enfrenta já internamente um fenómeno político parecido com o do Syriza (o Podemos). Assim, é previsível que o governo espanhol, tal como o português, o irlandês, ou o finlandês, entre outros, alinhem – se não mesmo promovam – posições de pouca flexibilidade, ou até intransigência negocial face à Grécia, próximas Alemanha e de outros Estados do núcleo duro da Zona Euro. A alternativa seria conceder a todos os países endividados concessões similares às da Grécia…. Em ano eleitoral, o sucesso ou fracasso do governo do Syriza vai potenciar ou descredibilizar partidos de oposição e/ou de protesto noutros Estados-membros. A questão vai assumir, por isso, contornos de luta político-ideológica. Aqui o timing parece pouco favorável para o Syriza. Até final de fevereiro terá de obter uma extensão do apoio à compra de dívida do BCE. Em julho e agosto terá de pagar tranches importantes dos empréstimos aos credores. A partir de meados de março vai começar um período crítico. Para obter o financiamento que urgentemente necessita tem, necessariamente, de negociar a nível europeu e obter o acordo dos governos dos Estados que vão a eleições…. Alguém imagina que os governos de centro-direita vão querer que o Syriza mostre resultados positivos de melhoria da economia e do bem-estar da população, pela sua atitude contestatária? Como explicariam depois estes governos aos seus eleitores que ser “bom aluno”  e  “fazer sacrifícios” é que dava resultados?

4. Há mais neste timing que joga contra o Syriza. Se, na Grécia, o voto de protesto foi sobretudo captado pela esquerda radical, noutros países do Norte da Europa o voto de protesto está a ser essencialmente captado pela direita nacionalista e populista. Estes processos, à primeira vista desligados, alimentam-se. As razões são várias, mas a mais óbvia é que tipicamente esses partidos são anti-União Europeia, ou muito críticos desta. Entre outros males, atribuem-lhe um desbaratar de recursos financeiros feito à custa do trabalho dos seus próprios cidadãos contribuintes. Com mais ou menos fundamento, invocam uso indevido e/ou fraudes com os fundos estruturais, resgates dos países do “Club Med/PIGS” que podem por em causa o seu bem-estar etc.. Este argumento tem particular ressonância nos Estados que são contribuintes líquidos para o orçamento da União Europeia, como a Alemanha, Holanda ou a Finlândia. Mais concessões à Grécia, vão, por isso, provavelmente alimentar o voto de protesto à direita. Para além desse problema político, já nem o poder negocial e de pressão que resulta de uma ameaça de provocar “danos colaterais” pela saída do Euro, tem hoje o mesmo impacto. O efeito negativo de contágio a outras economias parece hoje bem menor do que em 2012, no pico da crise. Por último, poderíamos pensar nas alternativas de financiamento gregas e apoios políticos fora da União Europeia. Mas nem aí o timing é muito favorável. A Rússia poderia ser um parceiro e aliado natural. Embora por diferentes razões, tem simpatias na Grécia à esquerda (mais ideológicas e nostálgicas do passado soviético) e à direita (mais religiosas e nacionalistas). O governo do Syriza já jogou a cartada russa na entrada na cena política europeia, ao opor-se a mais sanções económicas. Resta saber se isso lhe vai aumentar a margem de manobra política, ou ter efeito “boomerang”, incrementando a hostilidade dentro da União Europeia a concessões substanciais sobre a dívida grega. Se tivesse chegado ao poder nas eleições de 2012, até seria plausível a opção russa. Hoje, a Rússia começa também a estar sufocada pela quebra do preço do petróleo e gás natural. Os títulos da dívida pública russos estão, como os da Grécia, ao nível “junk” (lixo). Tal como na mitologia grega da Antiguidade, adivinha-se uma luta titânica do Syriza para por em prática um programa “fora de tempo”.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, 30/01/2015. Última revisão 15/06/2015

© Imagem: bandeira da República Helénica