O fim do Império Otomano e a troca de populações entre a Grécia e a Turquia

Twice A Stranger

A consequência desta solução diplomática sui generis foi que entre 1,2 milhões a 1,4 milhões de «gregos» tiveram de abandonar as suas casas e propriedades na recém fundada República da Turquia, deslocando-se para o território da Grécia, que teve de gerir um incremento de 22% a 25% da sua população. Por seu lado, cerca de 400.000 «turcos» (sobretudo populações dos territórios da parte Norte da Grécia, conquistados nas guerras balcânicas de 1912-1913, mas também de Creta) tiveram deixar as suas casas e propriedades na Grécia e a deslocar-se para a Turquia […].

1. É no longo processo histórico que levou à dissolução do Império Otomano e à criação dos Estados-Nação nos Balcãs e na Anatólia, entre os inícios século XIX e as primeiras décadas do século XX, que se encontram as raízes do problema que vamos abordar: a troca de populações entre a Grécia e a Turquia, no quadro da Convenção e Tratado de Lausana, assinados em 30 de Janeiro e 23 Julho de 1923, respectivamente, sendo a Convenção o texto diplomático fundamental para este assunto[1]. Ironicamente, esta ferida traumática da memória colectiva de gregos e turcos pode voltar a adquirir uma inesperada actualidade, com a perspectiva de adesão da Turquia à União Europeia, pelas razões que veremos mais à frente. Para a correcta compreensão desta questão é necessário efectuar uma retrospectiva histórica, ainda que breve, sobre a formação da Grécia e da Turquia modernas. Em ambos os casos, estamos a falar de processos históricos complexos e mal conhecidos pelo europeu médio, o que não deixa de ser curioso, especialmente no caso da Grécia, dada a enorme influência da cultura grega da Antiguidade Clássica na formação da Europa e Ocidente.

2. A existência de um Estado grego moderno pode parecer uma evidência que não necessita de qualquer explicação, pois falar na Grécia evoca, automaticamente uma ligação mental à Antiguidade Clássica, à Atenas de Péricles e da democracia, à Esparta guerreira a autocrática, ao oráculo de Delfos, aos deuses no Monte Olimpo, à Macedónia de Alexandre o Grande, etc. Todavia, basta pensar um pouco mais para se perceber o enorme hiato histórico entre a Grécia da Antiguidade e a Grécia moderna, uma realidade estadual que só surgiu no século XIX. Não cabe neste pequeno artigo reconstituir todos esses períodos históricos, mas apenas analisar brevemente a Grécia à qual foi reconhecida a independência face ao Império Otomano, que surgiu como Estado soberano pelo Tratado celebrado em Londres, em Maio de 1832. Importa recordar que o Estado grego moderno surgiu com menos de metade do território actual (basicamente era constituída pelo Peloponeso/Moreia, a Ática, a Eubeia e algumas ilhas próximas como as ilhas Argo-Sarónicas e as Cíclades). A configuração territorial[2] actual foi adquirida lentamente, ao longo do século XIX e início do século XX, através dos seguintes incrementos territoriais: i) em 1864, as ilhas Jónicas, incluindo Corfu[3] – onde nasceu o primeiro Presidente/Governador, Ioannis Kapodistrias –, por cedência da Grã-Bretanha (a única parte do território grego que nunca esteve submetida ao Império Otomano); ii) em 1881, o Norte da Grécia continental, passando a Tessália a fazer também parte do Estado grego; iii) já no século XX, nas guerras balcânicas de 1912-1913, foi conquista e anexada uma parte da Macedónia, incluindo a cidade de Salónica, anexado o Sul do Epiro junto à Albânia, e foi ainda efectuada a enosis (união) da ilha de Creta com a Grécia (o que fez praticamente duplicar o território inicial de 1832); iv) os últimos ganhos territoriais foram, respectivamente, a Tessália, em 1923 (conquistado pela Bulgária aos otomanos em 1912), e as ilhas do Dodecaneso, literalmente «doze ilhas» (conquistadas pela Itália aos otomanos em 1911), as quais passaram a fazer parte do território grego após a derrota das pretensões imperiais de Mussolini no Mediterrâneo oriental e a celebração do Tratado de Paz com a Itália, assinado em Paris (1947).

Sendo o Estado grego moderno formado na guerra contra o multiétnico e multireligioso Império Otomano – o opressor imperial/colonial, cujo período de dominação de quatro séculos foi a «idade das trevas» –, que critério foi utilizado para saber quem era grego? Isto leva-nos, naturalmente, ao processo de formação da identidade nacional. Na Europa Ocidental, as instituições pré-modernas que mais contribuíram para a formação de uma identidade nacional foram o Estado, o Exército e a Igreja. Todavia, no caso da Grécia, como não existia nem exército pré-moderno, nem Estado pré-moderno, devido o passado imperial otomano (séculos XV a XIX), o peso da instituição Igreja (Ortodoxa) acabou por ser determinante. Desta forma, a identidade grega moderna surgiu, a partir do século XIX, como um esforço de fusão entre o passado Helénico da Antiguidade Clássica e o Cristianismo Ortodoxo – originando o heleno-cristianismo –, que forneceu o critério de demarcação nacional face ao Império Otomano e as populações balcânicas e eslavas envolventes. Foi desta forma que o nacionalismo grego conseguiu concretizar, com sucesso, duas realizações fundamentais: por um lado, ao enfatizar o elemento helénico da identidade grega, efectuou a diferenciação face a outros povos cristãos ortodoxos (macedónios, sérvios, búlgaros, etc.); por outro lado, as concepções «helenizadas» da Nação não eram capazes de comunicar com as massas. Estas estavam divididas «em grupos étnicos e linguísticos fragmentados, muito poucos dos quais conseguiam entender a ‘linguagem de Platão‘, apesar da maior parte usar dialectos helénicos»[4]. Por isso, a o Cristianismo Ortodoxo foi utilizado com um recurso cultural que estas podiam facilmente identificar, ou, pelo menos, mais facilmente do que a Grécia da Antiguidade Clássica.

3.  A actual Turquia é herdeira e sucessora do Império Otomano pelo Tratado assinado em Lausana, a 23 de Julho de 1923. Mas que significa exactamente isso? Como surgiu o Estado turco moderno a partir de um Império que era multiétnico, multirreligioso e multilinguístico? Qual o seu território nacional? Quem podia ser considerado turco? À semelhança do que já vimos com a Grécia, a resposta é difícil e levanta questões bastante mais complexas do que poderia parecer à primeira vista. A República da Turquia proclamada por Mustafa Kemal (mais tarde Atatürk) a 29 de Outubro 1923, foi inspirada no ideário da Revolução Francesa e no ideário nacionalista típico do século XIX. O objectivo era romper com a tradição anacrónica do Império Otomano, acusada de estar na origem da decadência da «nação» turca. Apesar do enorme prestígio político granjeado por Mustafa Kemal, interna e externamente, pela sua vitória naquilo que a historiografia turca chama a guerra da independência (1919-1922) e pelo seu projecto de Estado-Nação que, na Europa e Ocidente, foi percebido (algo simplisticamente), como simultaneamente modernizador e ocidentalizador, este deparou-se com um delicado problema de legitimação da Turquia no solo da Anatólia. Porquê uma República da Turquia na Anatólia, quando o território tinha importantes populações curdas, arménias e gregas, e estas últimas até viviam aí desde a Antiguidade? Como facilmente se percebe, esta é uma questão revestida de complexidade histórica e de importância geopolítica. Note-se ainda que o desmembramento do Império, nos anos subsequentes ao final da I Guerra Mundial, originou diversos outros Estados no Médio Oriente, como a Síria, o Líbano, o Iraque, a Jordânia e Israel/Palestina. Mas quais eram os limites dos territórios turcos e dos territórios árabes? Como é frequente em zonas de transição, onde as populações se encontram misturadas, a questão não é obviamente clara. Sequelas desse problema encontram-se, ainda hoje, no caso do sandjak (distrito especial) de Alexandreta, um região reclamada pela Síria como seu território, mas anexada numa manobra hábil pela Turquia, em 1938, com a complacência da administração colonial francesa (numa altura em que a França já estava pressionada na Europa, pela ameaça de expansão militar da Alemanha nazi). E nas actuais revindicações diplomáticas da Turquia sustentando que, se houver fragmentação do Iraque, tem um direito histórico sobre o território do Norte desse país até à região de Mosul… Se o território sobre o qual se constituiu o Estado turco levantava estas interrogações, «ser turco», conforme já referimos, estava também longe de ser uma coisa evidente, no início dos anos 20 do século XX. Para termos uma ideia dos problemas que se colocavam ao novo Estado para a afirmar a sua identidade nacional, basta reflectirmos um pouco sobre a dificuldade de resposta à questão, que acabamos de formular, ou seja, de saber quem podia ser considerado turco. «Seria o cidadão nativo do território turco? Em nome de quê, foram, então, expulsas as minorias? Seria o turco ‘étnico‘ descendente dos ‘turcos‘, ou melhor, dos turcomanos? Mas a maior parte dos turcos são descendentes das populações anatolianas (gregos, arménios, ‘romanos‘, etc.) islamizadas, dos restos do Império Otomano. E que fazer dos curdos, dos lazes do mar Negro, de todos os muçulmanos não turcos, dos árabes? Será este o muçulmano da Turquia? Mas é um critério que não pode satisfazer uma jovem República laica. E depois seria preciso distinguir entre os sunitas e os alevis, e expulsar os curdos ocidentais, menos sunitas que os de Leste? E que fazer da grande massa da população saída da mistura destas diversas nações muçulmanas e, por vezes, mesmo da mistura com as minorias cristãs, as quais, durante muito tempo, em Constantinopla/Istambul e noutras regiões foram praticamente maioritárias? E se a língua turca é o critério, que fazer de todos aqueles que não a falam, mas, apesar disso, são muçulmanos? E que fazer dos gregos turcófonos que lêem o Evangelho em turco, escrito em caracteres gregos?»[5] Foi a estas múltiplas dúvidas, sobre que é turco (e quem é grego), que a Convenção Relativa à Troca de Populações Gregas e Turcas e Protocolo, assinada em Lausana, na Suíça, a 30 de Janeiro de 1923, teve de responder, definindo um critério legal para a troca de populações «nacionais».

4. Conforme já fizemos notar inicialmente, esta questão só pode ser correctamente entendida no contexto histórico de formação dos dois Estados-Nação e das circunstâncias político-militares subsequentes ao final da I Guerra Mundial e ao desmembramento do Império Otomano. A formação da Grécia e da Turquia, tal como aconteceu nos restantes Estados dos Balcãs, originou sucessivas vagas migrações, de refugiados e de deportados[6], pelo menos desde os anos 20 do século XIX até aos anos 20 do século XX, ou seja, grosso modo durante um século. Estes movimentos populacionais mais ou menos involuntários intensificaram-se nas primeiras décadas do século XX, primeiro com as duas guerras balcânicas (1912-1913), e depois com a guerra de independência da Turquia (1919-1922) e a consequente troca de populações decidida em 1923. Importa recordar que, para o Império Otomano, o saldo das guerras balcânicas foi bastante duro, tendo resultado na perda de cerca de 80% do território no Sudeste europeu (a excepção foi a retenção da Trácia oriental, recuperada na segunda guerra balcânica e que hoje faz parte da República da Turquia, sendo a parcela geograficamente europeia do país) e de mais de 4,2 milhões de habitantes (cerca de 16% da população total do Império). A perda das províncias balcânicas teve também forte impacto económico e simbólico: não só eram as regiões mais ricas e mais desenvolvidas, como boa parte da elite dirigente otomana era originária dos Balcãs. A este propósito importa recordar que Mustafa Kemal, o fundador da República da Turquia, ironicamente nasceu em Salónica, na antiga Macedónia otomana, que se tornou cidade grega em finais de 1912. Mas o principal fluxo de refugiados e/ou deportados ocorreu quando o projecto de Estado-Nação grego e o projecto de Estado-Nação turco entraram em colisão frontal na Ásia Menor (Anatólia ocidental), após o fim da I Guerra Mundial, quando os Aliados discutiam a questão da partilha dos territórios do derrotado Império Otomano e das esferas de influência na região.

Importa recordar que longo do século XIX germinou na Grécia a megali idea, ou seja, a ideia de «uma Grécia em dois continentes e quatro mares»[7] que pretendia formar um Estado grego moderno, correspondendo, grosso modo, aos territórios helénicos da Antiguidade Clássica. Esta ideia nacionalista acabou por levar à «grande catástofre» que foi a derrota do exército grego pelo movimento nacionalista turco de Mustafa Kemal em 1922. Este, por sua vez, proclamou toda a Anatólia como o «lar nacional» turco, conseguindo, através de sucessivas acções, mobilizar turcos e curdos, em nome de um misto de sentimentos proto-nacionalistas e solidariedade islâmica, contra os gâvur («infiéis») gregos e seus aliados ocidentais (sobretudo a Grã Bretanha liderada por Lloyd-George, que apoiava as pretensões territoriais da Grécia na Ásia Menor, como compensação da entrada da Grécia na I Guerra Mundial ao lado dos Aliados, por decisão do governo liberal de Eleftherios Venizelos, em 1917). Um dos episódios mais dramáticos do final da guerra na Anatólia foi o incêndio da gâvur Izmir[8] (literalmente «Esmirna, a infiel», como era conhecida pelos turcos, dado as populações serem maioritariamente cristãs, sobretudo gregas, mas também arménias), após a entrada das tropas turcas na cidade, a 9 de Setembro de 1922, o que provocou uma fuga em massa dos seus habitantes não muçulmanos, sendo a sua única saída possível por via marítima, o que acabou em tragédia. Num contexto em que a guerra assolou continuamente os Balcãs e a Anatólia, entre 1912 e 1992 e com projectos nacionalistas em clara rota de colisão, a co-existência entre as populações muçulmanas (turcos e curdos) e as populações cristãs (gregos e arménios mas também assírio-caldeus) ficou gravemente deteriorada originado uma enorme crise humanitária e sucessivas vagas de refugiados. Tal como acontece na actualidade com a Organização das Nações Unidas (ONU), as atenções da opinião pública internacional viraram-se na época para a recém criada Sociedade das Nações (SdN), a organização precursora das Nações Unidas. A solução diplomática encontrada para este delicadíssimo problema foi a troca de populações a Grécia e a Turquia. É difícil saber exactamente de onde proveio esta ideia de uma troca populacional (na realidade uma deportação recíproca e que hoje certamente indignaria e provocaria repulsa na comunidade internacional), se do lado grego, se do lado turco, se das potências Aliadas vencedoras da I Guerra Mundial, se de Fridtjof Nansen, o prestigiado cientista e explorador norueguês que, na época, desempenhava o cargo de Alto Comissário da SdN para os Refugiados. Ao contrário de outras ideias onde os louros são frequentemente disputados, esta é uma daquelas onde ninguém parece querer assumir claramente a sua «paternidade»…[9] Independentemente da sua autoria, a realidade histórica é que acabou por ter a concordância das partes envolvidas nas negociações de paz de Lausana. A consequência desta solução diplomática sui generis foi que entre 1,2 milhões a 1,4 milhões de «gregos» tiveram de abandonar as suas casas e propriedades na recém fundada República da Turquia, deslocando-se para o território da Grécia, que teve de gerir um incremento de 22% a 25% da sua população[10]. Por seu lado, cerca de 400.000 «turcos» (sobretudo populações dos territórios da parte Norte da Grécia, conquistados nas guerras balcânicas de 1912-1913, mas também de Creta) tiveram deixar as suas casas e propriedades na Grécia e a deslocar-se para a Turquia, num fluxo que, apesar de tudo, teve um peso relativo bastante inferior, representando cerca de 3% da sua população da época. Quando se olha para o teor do dispositivo da já referida Convenção Relativa à Troca de Populações Gregas e Turcas e Protocolo, há vários aspectos que chamam à atenção e que não deixam de causar alguma surpresa, mesmo tendo em conta as circunstâncias históricas em que esta foi feita. «Em primeiro lugar, o critério foi exclusivamente religioso. Não houve referência a categorias linguísticas ou étnicas. A maioria dos muçulmanos da Macedónia falavam grego e uma proporção considerável dos gregos ortodoxos da Anatólia Central falava turco. Não obstante, esses grupos foram marcados para a migração com base na sua religião. Em segundo lugar, foi o carácter retroactivo da convenção: não foi apenas limitada às migrações iniciadas em 1922, mas legitimadas todas as – largamente forçadas – migrações causadas pelas guerras, que tiveram lugar desde 1912. Em terceiro lugar, foi a natureza involuntária da migração. Foi a primeira vez que uma migração compulsória, ou – para dar um nome mais honesto – deportação, foi legalizada pelo Direito Internacional Público»[11]. As excepções a esta troca foram os cristãos ortodoxos gregos de Constantinopla/Istambul (na altura mais de 50.000, hoje cerca de 2.000), por razões ligadas ao simbolismo de Constantinopla e do seu Patriarcado, e os muçulmanos da Trácia ocidental, na Grécia (que se mantêm estáveis entre 120.000 a 140.000), tendo esta sido a compensação exigida pela Turquia para essa excepção. Como se pode imaginar, esta troca compulsiva de populações deixou profundas marcas nas sociedades helénica e turca, que não desaparecem facilmente. Por exemplo, na Turquia podemos encontrar populações que foram reinstaladas em Ayvalik, na região de Esmirna, oriundas de Rethymnon, em Creta. Por sua vez, na Grécia podemos encontrar populações oriundas de Sansun, no Mar Negro, que foram reinstaladas em Mavrovatos e Drama, na Macedónia grega. No caso da Grécia, provavelmente devido à maior dimensão do fluxo populacional de 1923 e 1924, esses sinais são, ainda hoje, bem visíveis, através da criação de novas cidades com o nome nostálgico das abandonadas na Ásia Menor (por exemplo, Nova Esmirna nos arredores de Atenas), na fundação de clubes (por exemplo, o Clube Atlético de Constantinopla, internacionalmente conhecido nas competições desportivas como AEK de Atenas). Em termos mais frios, e abstraindo do imenso drama humano, constata-se que surgiu também uma nova classe de comerciantes e industriais bem sucedidos, sendo o caso mais célebre e emblemático o do milionário Aristóteles Onassis, também ele nascido em Esmirna (Izmir), ainda como súbdito otomano. Na lógica amoral da realpolitik, poderá dizer-se que Grécia e a Turquia adquiriram também uma estabilidade territorial e populacional que poderiam hoje não ter, se a história tivesse seguido outro curso. Por último, face às feridas deste passado histórico não assim tão distante, hoje, com a perspectiva de adesão da Turquia à União Europeia, coloca-se uma interrogação interessante. Será que esta vai funcionar como o impulso que faltava para reconciliação heleno-turca, à maneira franco-alemã nos anos 50 do século XX, ou, pelo contrário, será que esta não irá reavivar memórias dolorosas do passado e a tentação de reabrir a «questão do Oriente», oficialmente encerrada pelo Tratado de Paz de Lausana, a 24 de Julho de 1923?

 

[1] Ver Renée Hirschon (ed.), Crossing the Aegean. An Appraisal of the 1923 Compulsory Exchange Between Greece and Turkey, Nova Iorque, Berghahn Books, 2003.

[2] C. M. Woodhouse, Modern Greece. A Short History, Londres, Faber & Faber, 1968, 5ª edição 1991. Ver em especial o mapa da página 174, onde são mostrados os incrementos territoriais do território da Grécia, desde 1832 até 1947.

[3] Ioannis Kapodistrias (Capo d´Istria), nasceu em 1776, na ilha jónica de Corfu, que na altura era uma possessão da República de Veneza. Foi o primeiro Presidente da Grécia moderna (1827-1831), tendo assumido essas funções após a derrota da frota otomana em Navarino, imposta pela acção conjunta da marinha britânica, francesa e russa, que deixaram a Grécia numa situação de independência de facto.

[4] Nikos Chrysolaras, Orthodoxy and Greek National Identity. An analysis of Greek Nationalism in light of A. D. Smith´s Theoretical Framework, texto do artigo disponível on-line em http://www.ksg.harvard.edu/kokkalis/GSW7/GSW%206/Nikos%20Chrysoloras%20Paper.pdf, pp. 13- 14.

[5] Olivier Abel, «La mémoire blessée» in Stéphane Yerasimos [dir.] Les Turcs. Orient et Occident, Islam et Laïcité, Série Monde HS (76), Paris: Éditions Autrement, 1994, pp. 183-184.

[6] Sobre os sofrimentos do muçulmanos otomanos com o retrocesso do Império nos Balcãs ver o livro de Justin McCarthy Death and Exile. The Ethnic Cleansing of Ottoman Muslims, 1821-1922, Princeton-Nova Jersey, The Darwin Press, 1995.

[7] Ver Michael Llewellyn Smith, Ionian Vision. Greeece in Asia Minor 1919-1922, Londres, Hurst & Company, 1973, 2ª edição 1998.

[8] Sobre o incêndio de Esmirna (Izmir) ver o trabalho de Marjorie Housepian Dobkin, Smyrna 1922. The Destruction of a City, Nova Iorque, Newmark Press, 1971, 3ª ed. 1998.

[9] Ver o livro de Bruce Clark, Twice a Stranger. How Mass Expulsion Forged Modern Greece and Turkey, Londres, Granta Books, 2006.

[10] Em relação ao impacto da troca de populações na Grécia ver o livro de Dimitri Pentzopoulos, The Balkan Exchange of Minorities ans its Impcat on Greece, Londres, Hurst & Company, 1962, 2ª edição 2002.

[11] Erik-Jan Zürcher, Greek and Turkish refugees and deportees 1912-1924, www.let.leidenuniv.nl/tcimo/tulp/Research/ejz18.htm

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, “O Fim do Império Otomano e a Troca de Populações entre a Grécia e a Turquia” artigo originalmente publicado in História nº 97, maio (2007): 36-41. Última revisão 14/06/2015

© Imagem: capa do Livro de Bruce Clark, “Twice a Stranger. Greece, Turkey and the Minorities they Expelled” (Granta Books, 2006)

A Europa e o Islão: regresso ao passado?

L'islam - Politique et croyance

 

Os muçulmanos nem sempre têm consciência mas impuseram-se primeiro na Europa como concorrentes, com aspirações dominadoras. A maior parte dos países muçulmanos actuais eram então cristãos – o Egipto, a Síria, a Turquia… durante muito tempo os muçulmanos foram os mais fortes, os mais ricos, os mais civilizados.” Após vários séculos, o Ocidente acabou por levar a melhor, “pela força, mas também pelas ideias e pelo comércio”.

Maxime RODINSON

 

1. Em Março de 1989 o antigo ministro do interior trabalhista e ex-Presidente da Comissão Europeia, Roy Jenkins afirmava, numa entrevista ao jornal britânico The Independent, que os muçulmanos na sociedade britânica “não tinham evidentemente conseguido fundir aí a sua própria cultura e menos ainda a sua própria religião” e que o multiculturalismo lhe parecia “estar a ter principalmente efeitos perversos”. O pano de fundo desta entrevista foi o “auto-de-fé” dos muçulmanos britânicos de Bradford – que queimaram publicamente centenas de exemplares do livro Os Versículos Satânicos do escritor britânico de origem indiana, Salman Rushdie – seguido da fatwa (opinião legal sobre a interpretação da lei islâmica) do Ayatollah Khomeini, que se pronunciava no sentido da morte do escritor apóstata[1] Mais recentemente, em Outubro de 2001, após os atentados terroristas de 11 de Setembro em Nova Iorque e Washington, nos EUA, o historiador do Islão de formação marxista, Maxime Rodinson, foi entrevistado pela revista francesa Le Point sobre esses acontecimentos. Questionado sobre as razões do ódio ao Ocidente, este começou por se interrogar: “O que é o Ocidente para os muçulmanos? Um mundo cristão, por isso um mundo de infiéis, de não crentes, de pessoas que dizem horrores do profeta Maomé. Eles devem ser combatidos pela palavra se possível, se não, em certas circunstâncias, pela força. Em relação à questão de saber se os ressentimentos dos muçulmanos estão ligados à colonização, este afirmou o seguinte: “Isso começou bastante antes… Desde o século VII. Os muçulmanos nem sempre têm consciência mas impuseram-se primeiro na Europa como concorrentes, com aspirações dominadoras. A maior parte dos países muçulmanos actuais eram então cristãos – o Egipto, a Síria, a Turquia… durante muito tempo os muçulmanos foram os mais fortes, os mais ricos, os mais civilizados”. Após vários séculos, o Ocidente acabou por levar a melhor, “pela força, mas também pelas ideias e pelo comércio”. Interrogado sobre a grande divergência de opiniões face ao Islão, quanto ao facto de este pregar a paz ou conter em si o germe da violência, Maxime Rodinson chamou à atenção para a diversidade de leituras que os textos religiosos permitem: “Nenhuma religião é totalmente pacífica ou totalmente belicosa. Encontram-se no Alcorão suratas que pregam o amor, outras a violência. Os predicadores citam esta ou aquela passagem do Alcorão, consoante as suas preferências e as necessidades do momento. O texto contém coisas de facto contraditórias. Entre os versos mais antigos do Alcorão é indicado, por exemplo, que se pode beber vinho, outros, em seguida, proíbem-no. É por isso que as obras clássicas muçulmanas elaboraram a doutrina dita do «ab-rogante e do ab-rogado». Há aí uma contradição? Foi Deus que mudou de opinião.”[2] Em Novembro de 2004, pouco depois do atentado mortal da autoria de um muçulmano holandês, de origem marroquina, contra o realizador Theo van Gogh, em Amesterdão, e da turbulência que se seguiu, Helmut Schmidt, o antigo líder do Partido Social Democrata da Alemanha e ex-chanceler da República Federal afirmava, numa entrevista ao jornal alemão Hamburger Abendblatt, que “trazer milhões de gastarbeiter (trabalhadores-convidados) turcos para a Alemanha tinha sido um erro”, acrescentando, ainda, que “o conceito de multiculturalismo é difícil de pôr a funcionar numa sociedade democrática”. Segundo este, “os problemas que resultaram do influxo dos gastarbeiter turcos foi negligenciado na Alemanha e no resto da Europa. Estes só podem ser ultrapassados pôr governos autoritários”, como, por exemplo, Singapura”[3]. Entretanto, alguns meses antes, o historiador anglo-americano do Islão, Bernard Lewis, professor emérito da Universidade de Princeton, numa entrevista dada a um outro jornal alemão, o Die Welt, tinha afirmado que “a Al-Qaeda tem muitos aliados no Ocidente, nem todos conhecidos” e que entre os aliados conhecidos se contavam “as crescentes minorias islâmicas e convertidos na Europa”. Acrescentava ainda que o Islão radical tinha uma força atractiva parecida com aquela que o comunismo tivera no passado, pois “comunica às pessoas convicções e certezas” dando-lhes “um sentido de missão”: os seus “seguidores parecem unidos enquanto as democracias parecem profundamente divididas”. Ainda na mesma entrevista, e em resposta a questão sobre se a Europa formaria um contrapeso global aos EUA, Bernard Lewis afirmou: “Não. Próximos dos EUA, os futuros actores globais serão a China, a Índia e possivelmente uma Rússia próspera. Com segurança, ninguém sabe o que vai ser o regime dominante em Moscovo, mas certamente não vai ser comunista. A Europa vai ser parte do Ocidente arábico. As migrações e a demografia apontam nessa direcção. Os europeus casam-se tarde e têm poucos filhos, se é que têm algum. Mas permitem uma forte emigração: turcos na Alemanha, árabes em França, paquistaneses no Reino Unido. Essas pessoas casam-se cedo e têm muitos filhos. De acordo com as tendências actuais, a população europeia vai conter maiorias muçulmanas no final do século XXI, o mais tardar.”[4] Que pensar de todas estas afirmações verdadeiramente surpreendentes e até algo alarmantes? Estamos perante opiniões exageradas e desprovidas de qualquer sentido útil? Será que tudo isto se pode explicar como uma tendência para o racismo e a “islamofobia” das actuais sociedades europeias?

2. Até há algum tempo atrás os europeus tinham-se praticamente esquecido da existência do mundo árabe e islâmico. Nas últimas décadas, acontecimentos extremamente mediatizados como, por exemplo, a guerra israelo-árabe do Yom Kippur, em 1973, que provocou um choque petrolífero, a revolução iraniana de 1978-1979 que levou ao poder o Ayatollah Khomeini e provocou um segundo choque petrolífero, a guerra do golfo de 1991 para libertação do Koweit anexado pelo Iraque, os atentados terroristas de Nova Iorque e Washington em 11 de Setembro de 2001 e a guerra do Iraque de 2003, que levou à queda do regime de Saddam Hussein, lembraram aos europeus a sua existência bem real. Todavia, estes foram acontecimentos essencialmente longínquos, ocorridos no Médio-Oriente ou na América do Norte, e que, na percepção da maioria da opinião pública europeia, tenderam a ser vistos, para além da simpatia ou antipatia pelos protagonistas, como uma questão entre norte-americanos e árabes. Mais recentemente, em 11 de Março de 2001, um atentado terrorista em Madrid executado por extremistas muçulmanos, fez cerca de 200 vítimas mortais; e, em 7 de Julho de 2005, um outro atentado em Londres, também executado por radicais muçulmanos, provocou mais de 50 mortes. Estes dois últimos atentados trouxeram dois dados novos: ocorreram em solo europeu e não no longínquo Médio Oriente ou na América do Norte e a sua autoria directa deveu-se, não a cidadãos estrangeiros, como no 11 de Setembro nos EUA, mas essencialmente a cidadãos nacionais, respectivamente espanhóis e britânicos, oriundos das comunidades muçulmanas da emigração. Esta deslocação dos acontecimentos para o solo europeu, com protagonistas europeus, levanta, naturalmente, inúmeras interrogações ao nível das causas que estão na sua origem e das consequências que daí podem resultar. Numerosíssimas análises já foram feitas sobre estes dois atentados terroristas, ligando-os ou desligando-os da situação no Iraque ou na Palestina, só para referirmos os dois mais conhecidos pontos de conflitualidade no Médio Oriente. O que aqui me proponho fazer não é entrar directamente nesse debate, mas analisar a deslocação dos acontecimentos para solo europeu à luz de uma perspectiva histórica e política alargada. A hipótese que coloco é que estes podem ser o prenúncio de um novo tipo de relacionamento da Europa com o Islão, endógeno e exógeno, que vai ter consequências sobre o próprio funcionamento das sociedades europeias e a cidadania dentro do “Estado-Nação”. Para analisar a consistência desta possibilidade, impõe-se enunciar os principais traços que marcaram o relacionamento dos europeus com o Islão nos últimos dois séculos e meio, mais concretamente desde o final do século XVIII, que marcou um decisivo ponto de viragem nas relações de poder, a partir daí claramente favoráveis às potências europeias, imbuídas de um zelo colonial-civilizacional.

3. A expansão das potências europeias – Rússia, Grã-Bretanha, França, Áustria e Itália –, entre os finais do século XVIII e as primeiras décadas do século XX, que se dirigiu para os territórios do dar al-islam (a “terra do Islão”) no Sudeste da Europa geográfica (Balcãs, Crimeia e Cáucaso) e na margem Sul e Leste do Mediterrâneo (Argélia, Tunísia, Líbia, Egipto, Palestina e Síria), foi feita essencialmente à custa do poder imperial/“colonial” que dominava o Mediterrâneo e o Mar Negro desde o século XVI – os turcos otomanos. Na historiografia clássica europeia o marco simbólico da viragem decisiva nas relações de poder, ocorrida no século XVIII, é o tratado celebrado entre a Rússia e o Império Otomano, em 1774, após a derrota militar deste último – Tratado de Küçük-Kaijnardja, na actual Bulgária. Este tratado, pelo qual czar russo adquiriu o título de protector dos cristãos do Império Otomano, marcou o início da “questão do Oriente”, associada à decadência do “homem doente da Europa” – o Império Otomano, na designação do czar Nicolau I, nas vésperas da guerra da Crimeia (1853-1856). Várias crises marcaram o lento declínio do “homem doente da Europa”, as quais ocuparam a diplomacia europeia durante um século e meio. Em 1923, a celebração do Tratado de Lausana, que regulou a dissolução Império Otomano e a emergência da República da Turquia na Península da Anatólia marcou, convencionalmente, o encerramento diplomático da questão do Oriente. Se este foi, em grandes linhas, o quadro geral, vale a pena olhar, com um pouco mais de detalhe, para a situação no Sudeste da Europa (Balcãs), o principal ponto de embate entre as potências europeias e o dar al-islam, na margem Norte do Mediterrâneo. Para além da força das armas e da superioridade tecnológica, a demografia e as ideias desempenharam um papel importante nesse embate. Mas, com que instituições políticas e sociais se confrontou o ideário da Revolução Francesa e Americana, assente na soberania da Nação, nos Direitos do Homem e na cidadania laica, quando chegou ao Sudeste europeu – o Próximo Oriente, na designação do século XIX? Porque é que este ideário, associado à força das armas e da demografia, se revelou fatal para a o dar al-islam otomano que persistia na Europa do século XIX? (O dar al-islam árabe já tinha sido erradicado da Península Ibérica no final do século XV).

4. Os povos dos Balcãs, tal como os outros povos do Império, do Norte de África ao Médio Oriente e ao Cáucaso, foram governados segundo um sistema fundado na Xária, a lei islâmica, com vocação para regular todas as esferas da vida humana. Sob a chefia suprema do sultão-califa – que juntava ao poder político absoluto o poder religioso de liderança da umma, a “comunidade dos crentes” –, foi instituído o sistema do millet e aplicado o estatuto do dhimmi (ou zimmi) a todos os que não eram muçulmanos e que professavam “as religiões do Livro” (uma expressão da teologia muçulmana que abrangia cristãos, judeus e persas zoroastrianos, os primeiros povos a serem dominados pelo Islão triunfante do século VII e seguintes). Esta forma de governação marcou profundamente a realidade sociológica e política dos povos balcânicos, submetidos ao poder otomano a partir do século XIV, e subsistiu, em várias regiões, até uma fase tardia do século XIX. Este sistema, provavelmente pelo pouco conhecimento existente sobre o mesmo, tem-se prestado a diversas vulgatas e distorções, naïfs ou deliberadas, que falam da sua “originalidade histórica” e tendem a elogiar o carácter ímpar da sua “tolerância”. A mais recente vulgata pode encontrar-se nos teóricos do multiculturalismo empenhados na procura de modelos históricos para a sua nova forma de “cidadania diferenciada” e para as “políticas do reconhecimento” da identidade que pretendem promover. Por exemplo, o filósofo canadiano Will Kymlicka afirma que “na medida em que se pode considerar que o sistema do millet constituiu um precedente importante e um modelo para os direitos das minorias, importa examiná-lo em detalhe”, descrevendo-o como um sistema onde “em todo o império se respeitavam as tradições e práticas jurídicas de cada grupo religioso” e no qual “a sua liberdade de culto era garantida”[5]. Quanto ao sociólogo britânico Tariq Modood, um dos mais entusiásticos proponentes do multiculturalismo no Reino Unido, diz que “o sistema do millet do Império Otomano, que remonta à Constituição de Medina do Profeta Maomé no século VII, foi chamado a primeira sociedade plural da história”[6] Mas vejamos, em concreto, como é que funcionava este “modelo para os direitos das minorias” no âmbito da “primeirasociedade plural da história”. Tomemos como exemplo os Balcãs, onde se calcula que durante o período de governação otomana, os dhimmi constituídos por populações cristãs, essencialmente ortodoxas, ou judaicas, representariam mais de 80% da população total da região. Cada uma destas populações foi agrupada num millet, ou seja, numa comunidade religiosa reconhecida pelo poder otomano que, sob a responsabilidade da sua chefia, “se auto-administra nos domínios que relevam da sua teologia e da sua moral, mas que se conforma com as leis do império para tudo o resto.”[7] A consequência desta forma de governação é que só os muçulmanos “podiam ser membros de parte inteira deste Estado”, enquanto que os não-muçulmanos que aí viviam eram designados, de uma forma eufemística, como “protegidos” (dhimmi), tendo um estatuto constitutivamente inferior (por exemplo, em tribunal o testemunho de um não-muçulmano não valia contra um muçulmano, estavam proibidos de usar armas e de utilizar montadas nobres como cavalos, estavam sujeitos aodevxirme, ou seja, o tributo de sangue para o serviço imperial, constituído por crianças e jovens do sexo masculino subtraídos às suas famílias, etc.). “Em termos jurídicos os dhimmi só existiam pela graça dos conquistadores que os podiam mandar matar, o que se exprimia pelo pagamento da capitação (jizya), taxa de compra da vida; naturalmente que não pretendiam exercer um papel político ou administrativo num organismo fundado sobre uma lei que eles não reconheciam. A conversão ao Islão era o único meio de ultrapassar esta barreira”[8]. Como se pode verificar, a visão romântica e idealizada da governação otomana sugerida pela qualificação “a primeira sociedade plural da história” e “modelo para os direitos das minorias” de alguns teóricos do multiculturalismo, pouco tem a ver com a realidade histórica das estratégias de dominação imperial postas em prática pelos conquistadores otomanos (aliás, copiadas de outros impérios mais antigos como o persa). Para além disso, a utilização de conceitos como “tolerância” e “minoria religiosa” é uma óbvia fonte de distorções, pois induz os significados que as palavras têm hoje na cultura laica europeia e ocidental, o que não é o da realidade histórica do millet e dos dhimmi. Esta só pode ser correctamente apreendida no contexto da teologia muçulmana, algo que os referidos teóricos do multiculturalismo não fizeram.

5.  As ideias da Revolução Francesa e Americana, da soberania da Nação, dos Direitos do Homem, da cidadania laica e igualitária levadas da Europa para o Império Otomano produziram o seu primeiro grande resultado com a revolução grega iniciada em Março de 1821, que acabou por levar à formação da Grécia moderna, após a destruição da marinha otomana por uma esquadra anglo-franco-russa na baía de Navarino, no Peloponeso (1827). Aos olhos dos muçulmanos otomanos as sucessivas revoltas sangrentas dos dhimmi cristãos ortodoxos – gregos, sérvios, montenegrinos, búlgaros, valacos, moldavos, etc. –, durante todo o século XIX e início do século XX, foram uma espécie de “conflito civilizacional” avant la lettre. As rebeliões que levaram à subversão da pax otomana e ao fim do sistema teocrático do millet, invocavam um ideário político até então completamente desconhecido, que não se fundava nos textos religiosos e falava, não em Alá, nem sequer no Deus dos cristãos, mas na soberania da “Nação”: quem se poderia lembrar de combater em nome de tal heresia? (A surpresa que tiveram os muçulmanos otomanos no início do século XIX, impregnados por um pensamento religioso, ao confrontarem-se com combatentes dispostos a morrer por uma ideia “irreligiosa”, provavelmente só é comparável à surpresa que europeus e ocidentais, moldados por um pensamento laico, tiveram nas últimas décadas do século XX, quando viram muçulmanos dispostos a morrer por um ideário religioso, em atentados suicidas em Israel, na Palestina, na Chechénia ou no Iraque). Ao contrário dos muçulmanos otomanos, para os dhimmi revoltosos o novo ideário da soberania da nação e da cidadania laica e igualitária tendeu a ser visto como libertador. Dentro dos povos submetidos ao poder otomano, foi entre os cristãos dos Balcãs, e mais tarde da Ásia Menor e das províncias árabes do Império, que este ideário laico teve uma mais rápida e entusiástica difusão (mais tarde, também entre os muçulmanos não turcos, árabes e curdos). As razões são de vária ordem e têm a ver quer com os contactos comerciais que estes mantinham frequentemente com os europeus – o comércio otomano era sobretudo efectuado por dhimmis gregos, arménios e judeus, dado o menosprezo que a tradicional elite dirigente otomana tinha pelo exercício das actividades comerciais e industriais (o que, ironicamente, com a expansão do capitalismo industrial, até acabou por ser favorável aos dhimmis) –, a maior proximidade cultural, e, talvez mais importante do que tudo isto, a possibilidade de acabar com o estatuto de sujeição que implicava o sistema do millet. Se entre finais do século XV e meados do século XVII esse sistema foi, quando genericamente considerado, provavelmente um mal menor, sobretudo se o compararmos com o clima de guerras religiosas que a Europa viveu e com a inquisição que levou, por exemplo, à expulsão dos judeus da Península Ibérica. A questão é que a situação se alterou drasticamente a partir dessa altura. O Estado liberal que começou a emergir da paz de Vestefália (1648), do Iluminismo e das Revoluções Francesa e Americana, estabeleceu novos direitos igualitários de cidadania e colocou a nação como detentora do poder soberano. Isto fez com que com que a teocracia dos millet e o próprio Império Otomano que assentava nesta (apesar de reformas como as Tanzimat que pretenderam introduzir uma espécie de “cidadania otomana”), se tornasse, cada vez mais, um sistema arcaico e opressivo aos olhos dos que viveram no século XIX e nas primeiras duas décadas do século XX. Após o fim do Império Otomano, o período entre as duas guerras foi marcado por um ilusório apogeu colonial das potências europeias nos territórios do dar al-islam, com os novos protectorados franceses (Síria e Líbano) e britânicos (Iraque, Koweit, Jordânia, Palestina) no Médio Oriente, que sucederam ao antigo poder imperial/”colonial”, derrotado na I Guerra Mundial. De um ponto de vista histórico, este foi um período bastante curto, se o compararmos com os vários séculos de dominação otomana da região. De facto, no imediato pós-II Guerra Mundial as potências coloniais europeias já estavam a braços com um imparável processo de descolonização: o ciclo iniciou-se com a independência do antigo Império Britânico da Índia, em 1947 (que deu origem à Índia e ao Paquistão e mais tarde, em 1971, também ao Bangladesh) e fechou-se com o fim do império colonial português, em 1975. É este processo de descolonização que está na origem de uma nova fase de relações com o Islão: no plano externo, as antigas relações coloniais deram lugar a relações entre Estados independentes; no plano interno, os tradicionais movimentos migratórios de populações europeias para o resto do mundo (colónias e ex-colónias) começaram a inverter-se. De grande exportadora de população devido ao seu dinamismo demográfico (e aos conflitos militares), das décadas e séculos anteriores, a Europa começou progressivamente a ser o destino de grandes fluxos de populações extra-europeias (emigrantes voluntários e refugiados). Foi neste contexto histórico que se começaram a desenhar os contornos do que actualmente podemos designar como o novo Islão da Europa Ocidental, por contraposição ao antigo Islão da “Turquia da Europa” – nome dado aos territórios otomanos no Sudeste europeu –, que hoje continua a ter uma presença significativa (Bósnia, Macedónia, Chipre e Bulgária) e nalguns casos até maioritária (Albânia e Kosovo) de populações muçulmanas.

6. Visto retrospectivamente, o ano de 1989 não só marcou o final da Guerra Fria com a queda do muro de Berlim, como também nele ocorreram outros eventos – na altura percebidos como de importância menor – que já prenunciavam rumos importantes do Islão da Europa. De facto, sendo agora conhecida a sequência dos acontecimentos, podemos verificar que já nessa altura este dava os primeiros sinais públicos de afirmação. Dois acontecimentos sustentam esta re-leitura a posteriori: o caso Salman Rushdie no Reino Unido e a controvérsia sobre o uso do véu na escola pública em França. No caso britânico, os acontecimentos ligados ao “auto-de-fé” dos muçulmanos de Bradford e à fatwa Ayatollah Khomeini foram seguidos de um outro evento simbólico relevante: a criação de um “Parlamento Muçulmano”, por Kalim Siddiqui, antigo sub-editor do jornal britânico Guardian, ao lado do Parlamento de Westminster. No caso francês, o despertar simbólico do Islão ocorreu também em 1989 – precisamente na altura das comemorações dos duzentos anos da Revolução de 1789, com todo o simbolismo do evento sobre a laïcité –, quando a questão do uso do véu islâmico (foulard) em locais públicos foi desencadeada por três alunas de uma escola da cidade de Creil, que insistiam no seu uso durante as aulas, lançando uma onda de polémica na sociedade francesa e entre a classe política. Se estes foram os desenvolvimentos mais importantes do lado ocidental da Europa, no lado oriental da Europa – o “Próximo Oriente” na designação do século XIX – a aceitação da candidatura da Turquia à União Europeia e a abertura oficial de negociações de adesão em 2005 trouxe, aquilo que, numa analogia histórica, pode ser qualificado como a “questão do Oriente” do século XXI. Nesta nova versão, o antigo “homem doente da Europa” do século XIX está recuperado das enfermidades do passado. Agora, propõe-se até tratar das maleitas que afligem a Europa neste início do século XXI – o envelhecimento e a quebra demográfica, a falta de população activa que suporte o crescimento da economia e sustente o Estado-Providência, e o infame “conflito de civilizações” diagnosticado por Bernard Lewis[9] e Samuel P. Huntington – com o seu dinamismo demográfico (71 milhões contra 13,5 milhões nos anos 20 do século XX) e a sua experiência de séculos de “pluralismo” otomano (leia-se do sistema teocrático dos millet derivado da Xária) seguida de décadas de secularismo nacionalista “democrático” (onde a minoria curda foi inexistente e deu lugar aos “turcos da montanha”). Esta tranquilizante imagem dada pelo governo dos conservadores-islamistas do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), de Recep Tayyip Erdogan, parece ter impressionado favoravelmente líderes europeus como o Primeiro-Ministro britânico, Tony Blair, que, aparentemente, acreditam nela. Todavia, nem todos têm uma percepção tão optimista e crédula quanto a esta terapêutica, talvez por conhecerem bem os seus efeitos secundários. Nos actuais Estados soberanos dos Balcãs e Médio Oriente, formados a partir da decomposição do dar al-islam otomano, a ambição europeia da Turquia enfrenta bastante cepticismo e desconfiança. É esse o caso da Grécia, apesar da sua recente atitude mais flexível face à adesão turca, motivada, muito provavelmente, por cálculos estratégicos de vantagens na multilateralização do conflito heleno-turco, e de alguns países árabes, como, por exemplo, a Líbia do sempre imprevisível Muammar Kadafi, que já qualificou a adesão da Turquia como um “cavalo de Tróia”[10] para a União Europeia. As razões são relativamente óbvias, se tentarmos olhar para as ambições europeias desse país, a partir de um olhar grego, ou até árabe. A sua re-entrada europeia tende a ser vista como uma espécie de “regresso ao passado”, onde o antigo poder imperial/“colonial” tem ambições sobre a “Turquia da Europa”, os ex-territórios otomanos do Sudeste europeu, pelo menos ao nível da influência cultural, religiosa e política. Antecipando um pouco mais essa (im)previsível ambição estratégica da Turquia, esta procurará, através dos mecanismos institucionais da União Europeia, sempre zelosa com os direitos das minorias, tornar-se, de iure ou de facto, no Estado protector da identidade e do “direito à diferença” dos antigos muçulmanos religiosos e sociológicos do Sudeste europeu (cerca de 8 milhões), bem como dos novos muçulmanos religiosos e sociológicos da Europa Ocidental (12 a 15 milhões), dos quais mais de 3,5 milhões são de origem turca (e curda). Se a isto juntarmos as revindicações comunitaristas já existentes em países oficialmente multiculturais, como o Reino Unido – bem simbolizadas pelo Parlamento Muçulmano de Kalim Siddiqui –, facilmente percebemos que se está a abrir a porta a formas arcaizantes de “cidadania diferenciada” onde a pertença comunitária, étnica e religiosa, corrompe a cidadania igualitária e universalista herdada das Revoluções Francesa e Americana. Será este multiculturalismo um progresso social e político, ou será que estamos no limiar de um retrocesso civilizacional da Europa do século XXI?

 

NOTAS

[1] Gilles Kepel, À l Ouest d’Allah, Paris, Éditions du Seuil, pp. 218-219.
[2] Jerôme Cordelier e Marie-Sandrine-Saherri (entrevista a Maxime Rodinson), “Ce qui s´est passé à New York n´est pas isolable de la lutte Orient-Occident” in Le Point (5 de Outubro de 2001).
[3] Hannah Cleaver, Turkish workers a mistake, claims Schmidt, http://www.telegraph.co.uk/news/main.jhtml?xml=/news/2004/11/25/wturk25.xml&sSheet=/news/2004/11/25/ixworld.html
[4] Wolfgang Schwanitz (entrevista a Bernard Lewis), “Europa wird am Ende des Jahrunderts islamisch sein”, in Die Welt (28 de Julho de 2004).
[5] Will Kymlicka, La citoyenneté multiculturelle: une théorie libérale du droit des minorities (trad. fr. de Multicultural Citizenship: a Liberal Theory of Minority Rights, 1995), Paris, Éditions La Découverte, 2001, pp. 222-223.
[6] Tariq Modood, Multicultural Politics. Racism, Ethnicity and Muslims in Britain, Edinburgh, Edinburgh University Press, 2005, pag. 139.
[7] Georges Castellan, Histoire des Balkans. XIVe – XXe siècle, Paris, Fayard, 1991, pp. 118-119.
[8] Georges Castellan, op. cit. ant., pag. 108.
[9]Bernard Lewis, “The Roots of Muslim Rage” in Atlantic Monthly (Setembro de 1990).
[10] “Gadhafi warns Turkey threatens EU” in CNN International on-line (16 de Dezembro de 2004).

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Expresso nº 1737 (Atual, 11 fevereiro de 2006, pp. 20-23). Última revisão 14/06/2014

©  Imagem: capa do Livro de Maxime Rodinson, L’Islam: Politique et Croyance (Fayard, 1993)

A Grécia entre a Região Intermédia e o Ocidente

A Região Intermédia segundo Dimitri Kitsikis

Em todos os meus escritos, e de uma maneira sistemática depois de 1967, esforcei-me por provar que a Grécia fazia parte da grande família dos países não ocidentais. Com este fim criei os conceitos de «região intermédia» (região de civilização, incluindo a Grécia, na Eurásia, entre o Ocidente e o Oriente), de «partido oriental», opondo-se desde 1081, na Grécia, ao «partido ocidental» e de «helenoturquismo», ideologia do partido oriental desde o século XV, que exprimia a sua preferência pelo elemento turco, face ao inimigo absoluto que representava o elemento franco, a saber o Ocidente. Não obstante, uma característica comum une hoje os intelectuais dos dois partidos: o helenocentrismo.

Dimitri KITSIKIS[1]

 

1. Na perspectiva habitualmente difundida na Europa a Grécia moderna é um país europeu e ocidental sem margem para grandes hesitações quanto à sua qualificação como tal. Se, nesta matéria, a tradição escolar portuguesa for, tal como nos parece, minimamente representativa do que se aprende sobre «história universal», um pouco por todos os países da União Europeia, não é difícil compreender as razões que sustentam a referida percepção generalizada sobre o carácter europeu/ocidental da Grécia. Tomando como modelo o caso português, o estudo mais ligeiro ou mais profundo da Antiguidade Clássica grega é (ou, pelo menos, era num passado recente), uma componente formativa de base do sistema de ensino, ao nível da escolaridade obrigatória. Assim, a herança da Grécia Clássica nos domínio das artes e da estética (arquitectura, escultura, literatura, teatro etc.), do pensamento racional e reflexão filosófica (Sócrates, Platão, Aristóteles, etc.), da mitologia (Zeus, Neptuno, Afrodite, etc.), das realizações políticas (democracia de Atenas, autocracia de Esparta) e até dos conflitos militares (rivalidade entre as cidades-estado, especialmente Atenas e Esparta, guerras dos gregos com os persas, o «inimigo asiático» do mundo helénico) faz parte da formação escolar do europeu medianamente culto, para os quais esta herança cultural é familiar. Em flagrante contraste com este conhecimento que nos parece estar bem difundido um pouco por toda a Europa (e Ocidente) sobre a Antiguidade Clássica grega, existe, paralelamente, um desconhecimento muito grande sobre a evolução posterior da Grécia. Pelo menos no caso português é fácil constatar que, se exceptuarmos os historiadores e alguns estudiosos de outras disciplinas próximas, a evolução posterior é basicamente um «livro em branco», onde, na melhor das hipóteses, existem algumas (muito breves) páginas escritas sobre o Império Bizantino e o cisma da Cristandade, voltando a Grécia a reaparecer, agora na sua versão moderna, a partir do início do século XIX, na era das revoluções liberais[2] e da autodeterminação nacional, como mais uma nação emancipada, à semelhança, por exemplo, de belgas, italianos, alemães ou checos. Por último, já mais conhecido até porque se trata de factos da história contemporânea, a Grécia volta a reaparecer em 1981, na altura da sua adesão às Comunidades Europeias, agora despida de todo o seu esplendor da Antiguidade Clássica. Nesta versão contemporânea, a imagem difundida é a de um país pobre e desorganizado do Sul da Europa, o qual apesar de ter entrado para as Comunidades/União Europeia um pouco antes de outros países pobres do Sul da Europa (Portugal e Espanha), e de ter beneficiado de apoios estruturais significativos, continua na «cauda da Europa». Para além disso, tem em comum com estes o seu atraso económico – a Espanha já descolou desta imagem – e no plano político uma ditadura algo similar à de Salazar e de Franco, que ficou conhecida como a «ditadura dos coronéis» (1967-1974).

Dotados deste background histórico manifestamente lacunar, a generalidade da opinião pública e os dirigentes políticos europeus/ocidentais mostraram surpresa e incompreensão face ao desalinhamento da Grécia relativamente às posições da generalidade dos países da UE, da NATO e da «comunidade internacional», na altura do desencadear das diversas crises e sucessivas guerras que levaram à desintegração da Jugoslávia. Não eram, afinal, os sérvios os principais agressores? E não eram os croatas e os muçulmanos bósnios e/ou albaneses as vítimas dessa agressão perpetrada pelos sérvios? Então porque é que a Grécia se recusava a condenar a Sérvia e o regime de Slodoban Milošević e a participar na ajuda a croatas e a muçulmanos bósnios e/ou albaneses? Estes acontecimentos de um passado recente associados ao final da Guerra Fria e à sua consequência mais dolorosa na Europa – a já referida desintegração violenta da Jugoslávia – sugerem-nos a existência de um carácter singular da percepção grega sobre os conflitos dos Balcãs que, naturalmente, a existir, influenciou a sua política externa. Assim, neste artigo, propomo-nos analisar, ainda que de uma forma sumária, os principais aspectos de identidade nacional e geopolíticos que têm contribuído para influenciar o rumo da política externa da Grécia em duas questões centrais do pós-Guerra Fria: a evolução política na Península Balcânica e o esforço de aproximação/adesão da Turquia à União Europeia. Para efeitos desta análise optámos deliberadamente por seguir uma perspectiva essencialmente histórica, de modo a estabelecermos um necessário contraponto face à tendência generalizada dos media, dos políticos e até dos próprios académicos das Relações Internacionais[3], de efectuarem análises a-históricas. Note-se que com isto não queremos absolutizar a perspectiva histórica na análise das questões de política internacional, mas antes chamar à atenção para a sua importância em qualquer estudo e análise equilibrada destas questões.

2. Pelas razões já apontadas (o «livro em branco»), um europeu médio provavelmente não é assaltado pela dúvida (certeza?) do historiador greco-canadiano da Universidade de Otava, Dimitri Kitsikis, de que a Grécia não seja um país da Europa (Ocidental), quer dizer, do Ocidente, parecendo-lhe, pelo menos face aos ensinamentos tradicionais da historiografia europeia, no mínimo estranho que um historiador, ainda por cima de origens gregas, se esforce por provar que a Grécia faz parte da «grande família dos países não ocidentais». Provavelmente, a sua surpresa ainda aumentará mais se ler o livro bastante singular do mesmo autor L´ Empire Ottoman/O Império Otomano que, curiosamente, dentro da imensa bibliografia nas língua inglesa e francesa sobre este assunto, é um dos escassos trabalhos traduzidos para português. Nesse texto, Dimitri Kitsikis afirma que «o continente da Eurásia, de que a Europa é apenas uma das penínsulas, divide-se, devido aos milhares de anos de história, em três grandes áreas de civilização: a) o Ocidente, ou Europa Ocidental, que compreende hoje, além do mais, a América do Norte e do Sul, a Austrália e a Nova Zelândia; b) o Oriente, ou extremo Oriente, que compreende três penínsulas: a Índia, o Sudeste Asiático (que inclui a Indonésia) e a China (a que se juntam a Coreia e o Japão); c) a Região Intermédia, que abrange simultaneamente parte do Ocidente e do Oriente»[4] e na qual de inserem a Rússia, as antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central, os países muçulmanos da Mauritânia ao Paquistão, os países balcânicos, incluindo a Grécia, e a península da Anatólia na qual se situa a Turquia.

Para o politólogo francês Gilles Bertrand, que estudou recentemente o conflito greco-turco, a ideia de Região Intermédia onde se situam a Grécia e a Turquia é uma das «análises geopolíticas mais interessantes relativamente às relações heleno-turcas» por contraposição à conhecida tese do «choque de civilizações» divulgada pelo norte-americano Samuel P. Huntington, que este denuncia como sendo «não científica» e qualifica como essencialmente «ideológica»[5] Mas o que é mais interessante nesta apreciação (positiva) do pensamento de Kitsikis e (negativa) de Huntington é que Gilles Bertrand sugere, pelo menos aos leitores que não conheçam os trabalhos de ambos, que estamos perante dois autores com pensamentos diametralmente opostos, o que não é exactamente o caso. Uma análise mais atenta mostra que existem paradoxais pontos de contacto, pelo menos num assunto importante como é a ideia que a Grécia não é um país ocidental. Atente-se nas razões históricas e culturais pelas quais Samuel P. Huntington[6] aponta para a ideia que a Grécia deveria ser excluída da União Europeia e da própria Aliança Atlântica:

A Grécia não é parte da civilização ocidental, mas é o berço da civilização clássica, que é uma fonte importante da civilização ocidental. Na sua oposição aos turcos, os gregos têm-se considerado, historicamente, representantes da cristandade. A sua história está intimamente ligada à do Ocidente, contrariamente à dos sérvios, romenos ou búlgaros. Além disso, a Grécia é também uma anomalia – o estranho ortodoxo nas organizações ocidentais. Nunca foi um membro fácil da União Europeia nem da NATO e tem-lhe sido difícil adaptar-se aos princípios e aos costumes de ambas.

Tanto quanto parece, estes pontos de contacto do pensamento de ambos não são meramente fortuitos. Segundo refere o próprio Dimitri Kitsikis, este foi acusado pelos «ocidentalistas» do seu país de origem de ter sido o difusor na América do Norte da ideia da não pertença da Grécia à civilização ocidental, sendo, por isso, indirectamente responsável pelo que Samuel P. Huntington escreveu sobre esta questão[7]. No que Kitsikis e Huntington divergem notoriamente é na percepção sobre o passado otomano da Grécia e as suas relações com a actual Turquia. Veremos melhor as razões desta divergência mais à frente, à medida que formos analisando o pensamento de Kitsikis. Para já é interessante analisarmos como o final da Guerra Fria e a queda dos regimes comunistas no Balcãs e na Europa de Leste foi percebida na Grécia. É bem conhecido que na perspectiva ocidental o final da Guerra-Fria foi interpretado como sendo o triunfo das democracias liberais e do capitalismo sobre as «democracias populares» e a economia planificada de direcção central. É também bastante consensual o entendimento, normalmente positivo, sobre o papel do Papa de origem polaca, Carol Voitila (João Paulo II), que pela sua acção e influência espiritual (e política) contribui para a derrocada dos regimes comunistas na Europa. Mas será que na Grécia a interpretação que prevaleceu foi a mesma? Veja-se como Dimitri Kitsikis[8] retrata a percepção popular grega sobre os mesmos acontecimentos:

O objectivo do Papa João Paulo II foi interpretado na Grécia, não somente como tendo consistido em derrotar o comunismo na Europa de Leste, mas como querendo, na sequência do colapso deste, «reunificar a Europa no plano religioso», dito de outra forma, «catolicizar» a Europa de Leste Ortodoxa. Com este fim, o Papa procedeu – segundo os gregos –, de duas maneiras: primeiro encorajando a acção dos Uniatas contra os Ortodoxos; depois através da política cristã-democrática da Alemanha na Jugoslávia, aumentar a influência Católica nos Balcãs, em detrimento da presença Ortodoxa, aliando-se momentaneamente com o adversário de amanhã, o Muçulmano. O cinismo desta política presumida do Papa apoiada pelas potências católico-protestantes do Ocidente indignou o conjunto da população grega e teve um impacto ainda mais profundo do que a intervenção ocidental no Iraque tinha tido sobre a população árabe.

Se a imagem dada por Kitsikis da opinião pública da Grécia estiver essencialmente correcta, podemos constatar que os gregos interpretaram a actuação da UE e dos EUA nos Balcãs como uma aliança oportunista entre Católicos/Protestantes e Muçulmanos, contra a Ortodoxia, cercando e punindo a Sérvia pela sua resistência às tentativas ocidentais de «reunificar a Europa no plano religioso». Esta interpretação, que é bastante estranha e sui generis quando vista sob um olhar ocidental, tem implícita a percepção da existência de duas ameaças para a Ortodoxia: de um lado, a ameaça das actuais potências ocidentais (UE e EUA), que reincarnam o velho inimigo histórico do Cristianismo Latino, representado (espiritualmente) pelo Papa e (militarmente) pelos conquistadores francos (incluindo neste rótulo, genoveses, venezianos, etc.); do outro lado, a ameaça dos Muçulmanos dos Balcãs e da Turquia, que são a face moderna dos conquistadores otomanos que sujeitaram a Grécia a uma «idade das trevas» de quase quatro séculos de duração. Neste contexto de ameaças e de «cerco» à Ortodoxia, Kitsikis prefere dar continuidade à tradicional opção religiosa (e política) do «partido oriental» de Georgios Yennádhios (Genádios), o prelado bizantino que no século XV foi instituído pelo sultão otomano Mehmed II, poucos meses após a conquista de Constantinopla em 1453, como Patriarca de Constantinopla e chefe do rum millet, ou seja do millet «grego»[9]. Ao contrário do que acontece com a grande maioria dos intelectuais gregos, a sujeição à supremacia da umma/ümmet e da Xária e o estatuto de subordinação/inferioridade do rum millet, não parece perturbar a visão quase romântica de Kitsikis, sobre a governação otomana. Pelo contrário, o que o perturba é o que este considera ter sido a ocidentalização forçada (não democrática), que as potências europeias impuseram ao povo grego, desde a sua independência no século XIX. Atente-se nas suas criticas[10] ao liberal e «ocidentalista» Eleftherios (Eleutherios) Venizelos, o mais notável homem de Estado grego da primeira metade do século XX:

A história da Grécia mostra que, depois de 1831, a ocidentalização do país foi imposta pela Europa e isto sistematicamente duma forma não democrática. O próprio Venizelos chegou ao poder na sequencia do golpe de Estado militar de 1909. Em Setembro de 1916, com a ajuda dos militares, fez um segundo golpe de Estado e instalou em Salónica, sob a protecção do general Sarrail, chefe das forças da Entente na cidade, um governo rival do governo legítimo de Atenas […] É por consequência bastante irónico ver hoje Atenas e a Grécia ornadas de numerosas estátuas do «grande democrata» Venizelos – e mesmo, diante do Parlamento, uma estátua que lhe foi erigida em 1989 – enquanto que as estátuas do seu adversário do partido oriental, Metaxas, culpado de um único golpe de Estado, o de 1936, foram deitadas por terra em todo o território.

Quer dizer, o «inimigo» absoluto, tal como no passado histórico, continua a ser hoje o Ocidente, seja na sua versão secular-materialista, seja na sua versão religiosa Católico-Protestante, pelo que, para este adepto do «partido orientalista» e «nostálgico do Império Otomano»[11], como se este auto-qualifica, é não só desejável como realizável um entendimento com a Turquia, para um condominium heleno-turco sobre os Balcãs e a Anatólia, que afaste a influência negativa ocidental na «Região Intermédia»:

A 3 de Março de 1924, o califado foi abolido. A Turquia, último Estado sucessor do império (após a fundação dos Estados balcânicos no século XIX, e árabes no século XX), acabava de nascer. Mais tarde, unicamente entre os turcos e os gregos, surgiram alguns nostálgicos do Império Otomano, isto é, no seio dos dois povos que dele mais se aproveitaram.

Como se pode já imaginar, a história deliberadamente selectiva do passado otomano feita por Kitsikis, associada à sua posição ideológico-política em prol do «heleno-turquismo», mesmo para os padrões gregos onde a polémica entre «ocidentalistas» e «orientalistas» sobre a identidade nacional grega e as opções de política externa está bem enraizada, não deixa de ter o seu carácter sui generis e de gerar amplas reacções de rejeição. Onde parece ter mais adeptos é nos países ocidentais, onde alguns académicos – veja-se o já referido caso de Gilles Bertrand –, se sentem atraídos pelo carácter «inovador» da Região Intermédia e da solução multiculturalista do heleno-turquismo, que parece fornecer o antídoto perfeito para contrariar o «retrógrado» conflito de civilizacional de Huntington.

Um outro aspecto importante nesta análise é o da influência da religião (o Cristianismo Ortodoxo), na identidade nacional grega. Num interessante artigo sobre esta temática, Nikos Chrysolaras da , descreve da seguinte maneira o processo específico de construção dessa identidade na Grécia:

3. Um outro aspecto importante nesta análise é o da influência da religião (o Cristianismo Ortodoxo), na identidade nacional grega. Num interessante artigo sobre esta temática, Nikos Chrysolaras[12] da London School of Economics, descreve da seguinte maneira o processo específico de construção dessa identidade na Grécia:

A identidade nacional é constituída com base em diferentes critérios por diferentes tipos de nacionalismo. No caso da Grécia, a identidade nacional foi construída de acordo com a lógica do nacionalismo cultural, o qual enfatiza a importância da unidade orgânica da Nação e o carácter único da sua cultura. Para ser mais específico, a Igreja Ortodoxa na Grécia deu lugar a uma religião nacional, significando uma religião que promove uma identidade nacional e legitima um projecto nacionalista. A Igreja manteve-se como a única instituição pré-moderna que reteve a sua importância através da era moderna na Grécia. Como resultado, isto gerou a «relocação» do material cultural pré-moderno, no moderno ambiente do Estado-Nação, reforçando a identidade nacional.

As instituições pré-modernas que um pouco por toda a Europa (Ocidental), mais contribuíram para a formação de uma identidade nacional foram o Estado, o exército e a Igreja. No caso da Grécia, o peso da instituição «Igreja» (Ortodoxa) foi comparativamente muito mais elevado pelo simples facto de não existir um nem um exército pré-moderno, nem um Estado pré-moderno, que competissem com essa instituição para gerar a identidade grega moderna. Importa ainda notar que do ponto de vista dominante na Psicologia Social, a identidade nacional, tal como todas as identidades, é, por natureza, relacional e construída socialmente o que leva a que os antagonismos e a fronteira entre «nós» e «eles» tenham um papel determinante nessa construção. Em sintonia com esta explicação do processo de criação de uma identidade nacional, Nikos Chrysolaras evidencia também as razões do sucesso do chamado «heleno-cristianismo», na formação da identidade grega[13]:

[Uma] das razões porque o «heleno-cristianismo» tem sido tão bem sucedido é que este conseguiu estabelecer uma relação antagónica entre a identidade grega e os «outsiders constitutivos», o Império Otomano/Turquia, as populações balcânicas e eslavas envolventes e a Europa. O nacionalismo heleno-cristão foi capaz de construir fronteiras rígidas entre insiders e outsiders gregos e não gregos e desta forma dotar a Nação recém-nascida de uma sólida identidade colectiva.

Quer dizer, o nacionalismo heleno-cristão conseguiu traçar com sucesso duas distinções fundamentais para o «ser grego» (greekness): por um lado, ao enfatizar o elemento «helénico» da identidade grega, efectuou a diferenciação com sucesso dos gregos face a outros povos cristãos ortodoxos (macedónios, sérvios, búlgaros, etc.); por outro lado, como refere o mesmo autor, as concepções «helenizadas» da Nação eram incapazes de comunicar com as massas que formavam a Nação grega. «Essas massas estavam divididas em grupos étnicos e linguísticos fragmentados, muito poucos dos quais conseguiam entender a ‘linguagem de Platão‘, apesar do facto de a maior parte usar dialectos helénicos. Por isso, a Ortodoxia foi um recurso cultural que estes podiam facilmente identificar (pelo menos mais facilmente do que podiam identificar a Grécia Clássica)»[14]. E não se pense que a presença da Ortodoxia na identidade nacional grega foi apenas marcante nos primeiros tempos do pós-independência e que, entretanto, ao longo do século XX e neste início de século XXI a sociedade grega evoluiu para um estágio de secularização similar ao que se pode encontrar nas sociedades da Europa (Ocidental). Importa notar que a secularização pode assumir várias formas, o que tem por consequência que a palavra pode ser usa em sentidos variáveis. Entre estes destacam-se os seguintes: i) secularização como diferenciação das esferas seculares face às instituições e normas religiosas; ii) secularização como um declínio das convicções e práticas religiosas; iii) secularização como afastamento da religião para a esfera privada[15]. Ora, acontece que, como faz notar Chrysolaras, nenhuma destas formas de secularização parece ter tido, nem é previsível que venha a ter no futuro que se avizinha, grande impacto na Grécia: «Desde a restauração da democracia liberal na Grécia (1974), o Estado tentou mudar o estatuto legal da Igreja e a posição ideológica da Ortodoxia na sociedade grega. Apesar das previsões serem um assunto perigoso nas Ciências Sociais, ousaria dizer que a deslocação da equivalência Igreja-Estado-Nação na Grécia não parece provável num futuro próximo»[16].

Este ponto de vista é plenamente confirmado pela actual Constituição da Grécia[17], que entrou em vigor em 1975 e teve a sua última revisão em 2001. Antes do dispositivo legal propriamente dito, e logo a após o título «A Constituição da Grécia», encontra-se a seguinte frase como subtítulo: «Em nome da Sagrada, Consubstancial e Indivisível Trindade». Mais à frente, no artigo 3º, pode encontrar-se o seguinte dispositivo, que regula as relações do Estado com a Igreja Ortodoxa:

  1. A religião que prevalece na Grécia é a Igreja Ortodoxa Oriental de Cristo. A Igreja Ortodoxa da Grécia, reconhecendo Nosso Senhor Jesus Cristo à sua cabeça, está inseparavelmente unida em doutrina com a Grande Igreja de Cristo em Constantinopla e com qualquer outra Igreja de Cristo da mesma doutrina, observando resolutamente, tal como estas fazem, os sagrados cânones apostólicos e sinodais e as tradições sagradas. É autocéfala é administrada pelo Santo Sínodo dos Bispos que a servem e pelo Permanente Santo Sínodo daí originário e reunido especificamente pela Carta Estatutária da Igreja de acordo com as provisões do Tomo Patriarcal de 29 de Junho de 1850 e o Acto Sinodal de 4 de Junho de 1928.
  2. O regime eclesiástico que existe em certos distritos do Estado não deve ser julgado contrário às provisões do parágrafo precedente,
  3. O texto da Sagrada Escritura deve ser mantido inalterado. A tradução oficial do texto noutra forma de linguagem, sem a prévia autorização da Igreja Autocéfala da Grécia e da Grande Igreja de Cristo em Constantinopla é proibida.

Para além deste dispositivo bastante invulgar para uma Constituição da Europa/Ocidente, onde normalmente prevalece uma atitude de «neutralidade» do Estado face à religião, no artigo 13º é estabelecida uma liberdade de religião, mas o seu nº 2 enuncia alguns limites ao exercício dessa liberdade, estipulando, nomeadamente, que «não é permitida a prática de ritos de culto que ofendam a ordem pública e os bons costumes» e que o proselitismo, ou seja, que as actividades de expansão da fé por conversão de outros crentes são proibidas. Neste contexto, importa acrescentar que até há pouco tempo atrás os bilhetes de identidade dos cidadãos gregos indicavam a religião do seu titular, situação que na generalidade dos países da Europa (Ocidental) seria provavelmente considerada discriminatória, senão mesmo inconstitucional. Ainda a este propósito vale a pena notar que este dispositivo constitucional-legal não está propriamente desfasado da realidade sociológica grega. Segundo dados do Eurobarómetro de 2002, a juventude grega é, logo a seguir à irlandesa, a mais religiosa da União Europeia[18]; e segundo o World Factbook de 2005 da Central Intelligence Agency (CIA), a sua população auto-identifica-se esmagadoramente com o Cristianismo Ortodoxo (98%)[19]. Por tudo isto não é grande surpresa verificar-se que Christodoulos Paraskevaides, o carismático Arcebispo de Atenas e de toda a Grécia, nascido em Xanthi – uma cidade da Trácia grega com uma minoria Muçulmana significativa, onde as relações desta com o Estado grego e os Ortodoxos não invulgarmente conflituam – e que chefia a Igreja Autocéfala grega desde 1998, tenha sido não só um dos críticos mais cáusticos da intervenção da NATO no Kosovo (1999), como seja também uma das personalidades mais respeitadas e influentes de todo o país.

4. Para se compreender as actuais relações de cooperação/competição/conflito da Grécia com os países balcânicos vizinhos e a Turquia é fundamental ter em conta o processo histórico que levou à dissolução do Império Otomano e à criação dos «Estados-Nação» (ou se quisermos, Estados vestefalianos à ocidental), nos Balcãs pós-otomanos. Neste contexto, a Península Balcânica apresenta uma similitude notória com a Península Ibérica, que resulta do facto de ambos os territórios do Sul da Europa terem estado integrados na dar-al Islam durante períodos históricos bastante prolongados: entre o século VII e o final do século XV, no caso da Península Ibérica; e entre o século XIV e o início do século XX, no caso da Península Balcânica. Embora esta comparação esteja praticamente esquecida na Europa Ocidental – e até possa parecer bastante estranha dada a visão e linguagem secular, que prevalece na História e Ciência Politica ocidentais –, ela é bastante familiar nos Balcãs e mais ainda na Turquia. Veja-se como Étienne Copeaux[20], investigador francês associado ao Centre National de Recherche Scientifique, descreve a representação cartográfica habitualmente feita nos manuais escolares desse país:

Não é por uma acaso que a Península dos Balcãs e a Península Ibérica se encontram aqui para colocar o mesmo problema de classificação: o lugar das duas regiões é particular na percepção turca da Europa, daí que se tenha sentido necessidade, nos manuais, de lhe atribuir uma representação cartográfica privilegiada, embora em graus diferentes. Na origem está a pertença das duas regiões ao Islão, durante um longo período histórico. O tratamento cartográfico sublinha o que é um ponto comum entre as duas penínsulas e uma singularidade em relação ao resto da Europa.

No caso da Grécia, outro aspecto importante a ter em conta é o da evolução territorial do Estado grego moderno. Importa notar que a Grécia à qual foi reconhecida a independência como Estado soberano, sob a garantia das potências europeias (Grã-Bretanha, Rússia e França), pelo Tratado celebrado em Londres, em Maio de 1832, tinha menos de metade do território actual (basicamente era constituída pelo Peloponeso/Moreia, a Ática, a Eubeia e algumas ilhas próximas como, por exemplo, as ilhas Argo-Sarónicas e as Cíclades), só tendo adquirido a configuração territorial[21] actual no decurso da primeira metade do século XX: as ilhas Jónicas, incluindo Corfu[22] – onde nasceu o primeiro Presidente/Governador da Grécia moderna, Ioannis Kapodistrias –, só em 1864 passaram a integrar a Grécia, por cedência da Grã-Bretanha, sendo a única parte do território grego que nunca esteve submetida ao Império Otomano; em 1881 ocorreu um novo alargamento territorial, a Norte da Grécia continental, passando a Tessália a fazer também parte do Estado grego; já no século XX, nas guerras balcânicas de 1912-1913, foi conquista e anexada uma parte da Macedónia, incluindo a cidade de Salónica, anexado o Sul do Epiro junto à Albânia, e foi ainda efectuada a enosis (união) da ilha de Creta com a Grécia, tendo o Estado grego tido o maior incremento territorial do pós-independência, o qual fez praticamente duplicar o seu território inicial. Por último, os restantes ganhos territoriais foram a Tessália em 1923 (que tinha sido conquistado pela Bulgária aos otomanos, em 1912); e as ilhas do Dodecaneso, literalmente «doze ilhas» (que, por sua vez, tinham sido conquistadas pela Itália aos otomanos, em 1911), as quais passaram a fazer parte do território grego após a derrota das pretensões imperiais de Mussolini no Mediterrâneo oriental e a celebração do Tratado de Paz com a Itália, assinado em Paris (1947).

Estabelecendo, mais uma vez, uma comparação com a Península Ibérica, verificamos que a expansão/estabilização territorial de Portugal ocorreu entre os séculos XII-XIII e a de Castela/Espanha prolongou-se até ao final século XV. Isto significa que em relação à actualidade qualquer um dos Estados ibéricos tem, pelo menos, mais de meio milénio de consolidação territorial (no caso de Portugal até mais alguns séculos), face ao seu passado islâmico o que o torna um memória histórica longínqua. Já no caso da Península Balcânica a situação é substancialmente diferente, pois a retirada final da dar-al Islam apenas ocorreu no início do século XX (1912-1913), ou seja, há menos de um século (isto para não falarmos das substanciais comunidades Muçulmanas que permaneceram, e permanecem, na Albânia, na Bósnia, no Kosovo, na Macedónia e na Bulgária). Este carácter de pertença/perda histórica «recente» da dar-al Islam é em si mesmo um facto muito importante na perpetuação da memória colectiva, pela transmissão oral entre vivos: basta pensarmos que, ainda hoje, nos Balcãs, existem, ou existiam num passado muito recente, pessoas vivas que nasceram súbditos otomanos (por exemplo, Konstantinos Karamanlis, que foi Presidente da Grécia entre 1980-1985 e 1990-1995, nasceu em 1907 nessa situação).

Neste contexto, e vista a questão na perspectiva dos Muçulmanos do Império Otomano, a revolução grega iniciada em Março de 1821 – que teve o seu mítico início no hastear da bandeira da revolta, pelo Arcebispo Germanos de Patras, próximo de Kalavryta, no Peloponeso/Moreia – e as sucessivas revoltas dos rayas (Cristãos), sérvios, montenegrinos, búlgaros, valacos, moldavos, etc., durante todo o século XIX e início do século XX, foram uma espécie de «conflito civilizacional» avant la lettre. Isto porque estas revoltas levaram à subversão da pax otomana (islâmica) nos Balcãs, em nome de um ideário político nacionalista e secular, de raiz ocidental, percebido durante muito tempo como «irreligioso», «bárbaro» e «incivilizacional», por ser completamente estranho à tradição político-religiosa do Mundo Muçulmano.

Um outro aspecto importante é o papel dos refugiados e deportados[23] na Grécia e na Turquia (as duas questões estão estreitamente ligadas), desde o início do século XIX até ao Tratado de Paz de Lausana de 1923, que regulou o fim do Império Otomano e o reconhecimento da Turquia como Estado sucessor. Foi nas primeiras décadas do século XX, primeiro com as duas guerras balcânicas (1912-1913), e depois com a guerra de independência da Turquia (1919-1922) e a consequente troca de populações acordada em anexo ao já referido Tratado de Lausana, que estes movimentos populacionais atingiram a sua maior dimensão (o ano de 1924 foi o culminar desse processo). Para o Império Otomano, o saldo das guerras balcânicas foi a perda de 80% do território europeu (a excepção foi a retenção da Trácia oriental, recuperada na segunda guerra balcânica) e de mais de 4,2 milhões de habitantes (cerca de 16% da população total do império). A perda das províncias balcânicas teve também forte impacto económico e simbólico: não só eram as regiões mais ricas e mais desenvolvidas, como grande parte da elite dirigente otomana era originária dos Balcãs – era esse, por exemplo, o caso de Talât Paxá, de Evranoszade Rahmi, o governador de Esmirna (Izmir) e de Mustafa Kemal (Atatürk), nascido em Salónica, na antiga Macedónia otomana[24]. Mas o principal fluxo de refugiados e/ou deportados ocorreu após a megali idea de «uma Grécia em dois continentes e quatro mares»[25] ter levado à «grande catástrofe» que foi a derrota do exército grego pelos otomanos/turcos liderados por Mustafa Kemal (1919-1922). Um dos episódios mais dramáticos do final desse conflito foi o incêndio da gâvur Izmir[26] (literalmente «Esmirna, a infiel», como era conhecida pelos turcos, dado as populações serem maioritariamente Cristãs, sobretudo gregas, mas também arménias), após a entrada das tropas turcas na cidade, a 9 de Setembro de 1922, o qual provocou uma fuga em massa dos seus habitantes não Muçulmanos. Facilmente se compreende que neste contexto bélico a convivência entre as populações Muçulmanas (turcos e curdos) e as populações Cristãs (gregos, arménios e assírio-caldeus) tinha ficado gravemente deteriorada. A solução encontrada para este delicado problema entre a Grécia e a Turquia foi a troca de populações. Esta solução levou entre 1,2 milhões a 1,4 milhões de «gregos» a abandonarem as suas casas e propriedades na Turquia, deslocando-se para a Grécia (que na altura tinha 5, 5 milhões de habitantes pelo que teve de gerir um incremento de 22% a 25% da sua população); e cerca de 400.000 «turcos» a terem de deixar as suas casas e propriedades na Grécia e a deslocar-se para a Turquia (que na altura tinha cerca de 13,5 milhões de habitantes, o que representou um peso relativo muito menor de 3%). Veja-se como Erik-Jan Zürcher[27] comenta este acordo bilateral:

Três coisas são dignas de nota acerca desta convenção. Em primeiro lugar, o critério foi exclusivamente religioso. Não houve referência a categorias linguísticas ou étnicas. A maioria dos Muçulmanos da Macedónia falavam grego e uma proporção considerável dos gregos Ortodoxos da Anatólia Central falava turco. Não obstante, esses grupos foram marcados para a migração com base na sua religião. Em segundo lugar, foi o carácter retroactivo da convenção: não foi apenas limitada às migrações iniciadas em 1922, mas legitimadas todas as – largamente forçadas – migrações causadas pelas guerras, que tiveram lugar desde 1912. Em terceiro lugar, foi a natureza involuntária da migração. Foi a primeira vez que uma migração compulsória – ou, para dar um nome mais honesto, deportação – foi legalizada pelo Direito Internacional.

Por mais estranho que aos olhos de hoje isto possa parecer, a ideia impulsionadora deste acordo para a troca compulsiva de populações (de facto uma deportação recíproca) veio do Prémio Nobel da Paz de 1922 e Alto Comissário da Sociedade das Nações (SdN) para os Refugiados na época: o cientista e explorador norueguês Fridtjof Nansen. As excepções a esta troca foram os Cristãos Ortodoxos gregos de Constantinopla/Istambul e os Muçulmanos da Trácia ocidental, na Grécia. Como se pode imaginar, esta troca de populações deixou profundas marcas na sociedade helénica – as quais são visíveis na criação de novas cidades com o nome nostálgico das abandonada (por exemplo, Nova Esmirna nos arredores de Atenas), na fundação de clubes (por exemplo, o Clube Atlético de Constantinopla, internacionalmente conhecido como AEK de Atenas), e numa nova classe de comerciantes e industriais bem sucedidos, de que o caso mais conhecido é o do milionário Aristóteles Onassis, também ele nascido em Esmirna – sendo, ainda hoje, um factor importante na configuração das relações greco-turcas.

5. Após esta breve resenha histórica sobre a formação territorial e populacional da Grécia moderna, estamos agora em condições de passar em revista as principais divergências e conflitos geopolíticos que esta mantém com os países vizinhos. Como se pode verificar rapidamente pela análise do quadro que a seguir se apresenta (quadro 1), a Grécia tem disputas geopolíticas, abertas ou latentes, como todos os Estados vizinhos. À primeira vista poderíamos ser tentados a pensar que isto se deve ao facto de estarmos perante um Estado particularmente belicoso nas suas relações externas. Todavia, esta interpretação deve ser afastada por ser demasiado simplista. Importa aqui lembrar, mais uma vez, que a política externa da Grécia – tal como a política externa de qualquer outro Estado –, só pode ser correctamente apreendida se, entre outros factores relevantes, for tido em conta o seu passado histórico, seja ele real ou imaginário.

Neste contexto, é fundamental ter-mos em conta que os factos políticos do presente são frequentemente objecto de interpretações díspares, ou até mesmo antagónicas, porque são vistos à luz de diferentes experiências individuais e colectivas, sendo a pertença a uma determinada comunidade/cultura o factor mais importante que orienta, ou, pelo menos, condiciona o sentido dessas percepções. No caso grego, os marcos fundamentais do seu passado, que tendem a orientar e/ou condicionar a leitura do presente são: i) o esplendor civilizacional helénico da Antiguidade Clássica; ii) os territórios historicamente habitados por povos helénicos na Antiguidade, durante o Império Bizantino e mais tarde no Império Otomano; iii) o Cristianismo Ortodoxo grego como o verdadeiro Cristianismo, por oposição ao Cristianismo Latino considerado herético, ou, pelo menos, «desviacionista»; iv) a conquista e dominação pelo Império Otomano como «Idade das Trevas»; v) os nacionalismos eslavos e albaneses como «usurpadores» de territórios helénicos nos Balcãs.

 

Note-se que com isto não estamos a querer dizer que existe uma visão monolítica do mundo partilhada por todos os gregos, que eliminaria formas diferenciadas de pensamento, nomeadamente ao nível da política externa. Naturalmente que existe um diversidade de mundividências, até porque a Grécia é uma sociedade democrática e pluralista. O que queremos fazer notar é que, tal como noutros povos que se vêm a si próprios como uma nação, existe um conjunto de referências históricas e culturais partilhadas que ligam os gregos enquanto «comunidade imaginada», as quais influenciam e condicionam a(s) sua(s) visão(ões) do mundo. E quem está fora a dessa cultura, e não se esforçar por conhece-la nos seus traços essenciais a partir do exterior, não consegue entender essas interpretações de factos políticos do presente, apressando-se frequentemente a julgá-las destituídas de fundamento e a rejeita-las como disparatadas. Um bom exemplo desse problema é o medo do «cerco muçulmano» à Grécia (e à Ortodoxia). Esta tese, quando vista sob o olhar a-histórico que domina nos media ocidentais, parece um caso claro de islamofobia e de histeria nacionalista. Todavia, vale a pena dedicarmos algum tempo a tentar perceber porque é que na Grécia esta ideia tem, em graus variáveis, uma certa aceitação e credibilidade não só entre o cidadão comum como também junto de personalidades dos meios intelectuais da direita e da esquerda do espectro político.

 

Quadro 1 – As principais disputas geopolíticas da Grécia

Estados

Aspectos em litígio e/ou ambições «irredentistas»

 

Albânia

  • Ambições «irredentistas» da Grécia sobre o Epiro do Norte onde existem populações gregas que se calcula andarem na ordem dos 3% do número de habitantes total da Albânia (todavia, os números são muito díspares consoante as fontes são albanesas os gregas; no limite variam entre os 1% de algumas estatísticas oficiais albanesas e os 12% de ONG’s gregas);
  • Migração legal e/ou ilegal de albaneses para a Grécia, gerando alguma hostilidade na sociedade grega e alimentando estereótipos com conotações negativas associados à sua alegada participação em roubos e tráfico de droga.

 

Macedónia

  • Na altura da secessão da República Socialista da Macedónia da ex-Jugoslávia Federal, em 1991, a Grécia opôs-se vivamente ao seu reconhecimento internacional, considerando que esta lhe pretendia usurpar não só o nome (a Grécia tem também uma província com o nome de Macedónia) como símbolos históricos helénicos. Desde essa altura, a Grécia manteve um bloqueio económico ao novo Estado que procurava o seu reconhecimento pela comunidade internacional. A partir de 1995 a situação evoluiu para alguma normalização de relações entre ambas as partes, tendo a Grécia posto fim ao bloqueio económico, embora persista o litígio quanto ao nome oficial. A Grécia não o reconhece na forma como este se auto-designa – a «República da Macedónia» – mas apenas como «Antiga República Jugoslava da Macedónia» (ou FYRM, na sigla difundida em língua inglesa).

 

Bulgária

  • A Grécia tem denunciado regularmente aquilo que considera serem as ambições «irredentistas» da Bulgária sobre a Macedónia e a Trácia grega (a porta de acesso ao mar Egeu pela Bulgária). Na memória colectiva de ambos os países está a disputa pela posse da cidade de Salónica e dessas duas regiões, a qual culminou na segunda guerra balcânica de 1913, e na participação da Bulgária e da Grécia sempre em coligações opostas na I e na II Guerra Mundiais. O final da Guerra-Fria e o colapso da Jugoslávia reacenderam em ambos os países um receio de «regresso ao passado» de disputas territoriais.

 

Turquia

  • Litígio sobre as águas territoriais marítimas e os corredores aéreos no mar Egeu;
  • Litígio sobre os direitos da minoria Muçulmanas turca na Grécia (Trácia oriental);
  • Litígio sobre os direitos do Patriarcado da Igreja Ortodoxa grega de Constantinopla (Istambul);
  • Litígio sobre a ilha de Chipre, ocupando a Turquia militarmente a parte Norte da mesma, onde mantém mais de 30.000 efectivos que garantem a existência de facto da República Turca do Norte de Chipre, a qual só é reconhecida de jure, a nível internacional, pela própria Turquia;
  • Acusações da Turquia à Grécia de apoiar o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK)/Kongra-Gel de Abdullah Öcalan e de lhe permitir a abertura de campos de treino de guerrilheiros em território grego (o caso mais conhecido das acusações da Turquia é o do campo de Lavrio, situado entre Atenas e o cabo Sunion, que oficialmente é um campo de acolhimento de refugiados curdos).

 

 

Quadro 2 – As populações Muçulmanas nos Estados limítrofes da Grécia

Estado População total Muçulmanos % de Muçulmanos
Albânia 3,563,112 2,294,178 70%
Macedónia 1,935,034 (estimativa 1)*2,045,262 (estimativa 2) 581,203*345,650 30%*16.9%
Bulgária 7,450,349 908.943 12,2%
Chipre 780,133** 140,424** 18%**
Total /média percentual s/ Turquia Entre 13,728, 628a 13,838,856  Entre 3, 689,195A 3,924,748 28.2% a 28.4%
Turquia 69,660,550 69,521,223 99,8%
Grécia 10,668, 354 138.689 1,3%

 

Fonte: CIA, The World Factbook (2005), http://www.cia.gov/cia/publications/factbook/ e

*Maria Koinova/Center for Documentation and Information on Minorities in Europe-Southeast Europe (CEDIME-SE), Minorities in Southeast Europe, http://www.greekhelsinki.gr/pdf/cedime-se-macedonia-muslims.PDF

** Estimativas para o conjunto da população da ilha de Chipre, incluindo a da República Turca do Norte de Chipre, só reconhecida internacionalmente como Estado soberano pela Turquia.

 

 

Mesmo sem qualquer análise aprofundada, uma rápida vista de olhos no quadro supra dá-nos já uma ideia como a proximidade geográfica de importantes comunidades Muçulmanas é um dado geopolítico importante em toda a fronteira Norte grega, as quais oscilam entre os 12,2% e os 70% da população dos países limítrofes (Bulgária, Macedónia e Albânia) e os 99,8 % no país da fronteira Leste (a Turquia), que por acaso é o Estado sucessor do antigo poder imperial/«colonial» otomano. Para além disso, a expansão da Organização da Conferência Islâmica[28] nos Balcãs, ocorrida na primeira metade da década de 90 do século XX – com adesão da Albânia como membro de pleno direito e da Bósnia-Herzegovina como observador – contribuíram para aumentar a sensação da presença Muçulmana à volta da Grécia. Estes factos, associados a memórias históricas dolorosas, deram alguma credibilidade à ideia que os «restos» da dar-al Islam otomana (albaneses, bósnios, kosovares, pomaks, turcos, etc.) estavam em recomposição desde o fim da Guerra-Fria.

 

Quadro 3 – A Organização da Conferência Islâmica no Sudeste europeu e na Anatólia

Estado Estatuto Data de admissão
Turquia Membro 1969
Albânia Membro 1992
Comunidade Turco-Muçulmana de Chipre Observador 1979
Bósnia-Herzegovina Observador 1994

Fonte: The Organization of Islamic Conference, http://www.oic-oci.org/

 

A propósito da percepção grega (ou, pelo menos, dos seus sectores mais nacionalistas), sobre o «cerco islâmico», há uma estranha e curiosa convergência entre esta percepção e o «conselho» dado à Europa pelo líder árabe, Muammar (Gadafi) Kadafi[29], sobre a adesão da Turquia à UE. Este considera este país como sendo indubitavelmente uma «nação Islâmica» cuja adesão vai funcionar como um «cavalo de Tróia» dos movimentos islamistas de todo o Mundo Muçulmano, os quais têm, nomeadamente, por objectivo, fazer reviver a Albânia e a Bósnia como Estados islâmicos:

É no interesse económico da Turquia ser parte da Europa. É também no interesse do Mundo Islâmico que uma nação Islâmica como a Turquia esteja dentro da União Europeia, como um cavalo de Tróia […] A Turquia é uma árvore cujas raízes estão na Ásia e só o seu ramo toca na Europa. É um Estado islâmico com uma denominação sunita e com tradições, costumes, cultura atitudes e gosto orientalista […] Quando a Turquia se tornar um membro europeu, não vai aceitar que os partidos com designações islâmicas sejam banidos, enquanto que não são banidas as designações Cristãs na Europa […] Os planos dos islamistas turcos na Europa e, obviamente, por detrás destes, dos que têm raízes islâmicas, é fazer reviver a Albânia como um Estado islâmico, tal como a Bósnia.

Naturalmente que Kadafi não é propriamente o líder político internacional com mais credibilidade para dar estes «conselhos» à Europa e que o seu discurso tem uma aparência bizarra, que o torna pouco propício a ser levado a sério. Todavia, a convergência do seu teor com os receios gregos tem provavelmente um lado mais sério do que pode parecer à primeira vista, o qual resulta provavelmente de duas razões: i) ambos os países foram parte do Império Otomano e olham para o seu período de dominação como a «Idade das Trevas» e da «opressão colonial», o que os aproxima na sua desconfiança face às intenções da Turquia; ii) Kadafi conhece o Islão por dentro e sabe bem das ambições do Islão político (islamismo) relativamente à Europa (as quais parecem irrealistas quando vistas da Europa/Ocidente). Para além destes factores, a dinâmica demográfica das populações Muçulmanas envolventes (por exemplo, uma parte do problema do Kosovo e das reivindicações dos kosovares de autodeterminação/independência, resulta do facto de ao longo da segunda metade do século XX a sua taxa de crescimento demográfico, bastante superior à dos sérvios, os ter tornado esmagadoramente maioritários na região), especialmente a da Turquia, reforça as apreensões de insegurança gregas.

 

 

Quadro 4 – A evolução comparativa da população da Grécia e da Turquia (1950-2050)

 Estado  1950Milhões/hab.   2005Milhões/hab.   2015*Milhões/hab.  2025*Milhões/hab.  2050*Milhões/hab.
Grécia 7 556 11 120 11 233 11 173 10 742
Turquia 21 484 73 193 82 640 90 565 101 208

Fonte: UN Population Division, World Population Prospects: The 2004 Revision (2005)

*Projecção da população para os anos 2015, 2025 e 2050, respectivamente

 

Isto leva-nos agora às relações externas da Grécia com os seus Estados vizinhos: Albânia, Macedónia, Bulgária e Turquia. Começando pela Albânia. As relações entre ambos os países são actualmente marcadas por vários factores conflituais herdados do passado. O mais conhecido é a disputa pela parte da região do Epiro situada em território albanês, que a Grécia considera ser um território histórico helénico que ainda hoje é habitado por substanciais populações gregas; por sua vez a Albânia nega as pretensões territoriais da Grécia sobre esse território, que considera infundadas historicamente, apresentando também valores oficiais para a minoria grega muitos inferiores aos normalmente avançados por fontes gregas (ver quadro 1).

Outro factor conflitual está relacionado com as recentes migrações albanesas para a Grécia, sobretudo após o final da Guerra-Fria, onde representam a maioria dos cerca de 500.000 emigrantes Muçulmanos que se calcula residirem actualmente no país (fixados sobretudo em Atenas e Salónica). O colapso da Jugoslávia fez recuperar memórias dum passado não assim tão distante, onde os albaneses pela sua religião maioritariamente Muçulmana e pelo valor militar como guerreiros, estavam bem integrados na elite dirigente otomana – os casos mais célebres são o de Ali Paxá de Tapelenë, que teve o centro do seu poder em Ioannina (Joanina), e o de Mehmet (Muhammad) Ali Paxá, um albanês de Kavajë (Kavaja) que foi wali (governador) do Egipto no início do século XIX e cujo filho Ibrahim Paxá comandou a principal força militar otomana que tentou esmagar a revolta grego no Peloponeso (Moreia), que levaria à independência da Grécia. Isto mistura-se com memórias históricas mais recentes, da II Guerra Mundial, onde os Muçulmanos dos Balcãs foram, não invulgarmente, aliados da Alemanha nazi contra sérvios e gregos e com o regime comunista de autarcia quase paranóica do líder albanês, Enver Hoxha.

Passando agora às relações com a Macedónia. Quando a República Socialista da Macedónia abandonou a Jugoslávia federal em 1991, a generalidade dos europeus/ocidentais ficou surpreendida pela tenacidade da oposição da Grécia ao reconhecimento do novo Estado como «República da Macedónia». Aquilo que visto sob o olhar ocidental deveria ser uma querela menor, de contornos quase académicos, na Grécia atingiu proporções enormes, ao ponto de ter dado origem às maiores manifestações de massas do país, após a reintrodução da democracia liberal em 1974, que sucedeu à deposição do governo da junta militar. Mas porquê este «histerismo nacionalista» dos gregos em torno de um nome? As razões mais uma vez são profundas e algo estranhas para quem esta fora do espaço cultural helénico. Desde logo vale a pena aqui lembrar que os desentendimentos na partilha da Macedónia, conquistada por sérvios, gregos e búlgaros aos otomanos na primeira guerra balcânica de 1912-1913, foram o principal motivo da segunda guerra balcânica, desencadeada alguns meses depois do fim da primeira, e onde a Bulgária se viu isolada e derrotada nas suas ambições sobre a Macedónia (todavia, os atritos estiveram longe de se restringir a gregos e a búlgaros, existindo outras pretensões, como a dos eslavos Ortodoxos da região, de criarem já na altura uma Macedónia independente). Por outro lado, importa ter em conta que, em regiões como os Balcãs, a história não é um mero conhecimento relegada para o foro da academia, como é normalmente o caso da Europa (Ocidental), mas também uma poderosa arma política que sustenta discursos de teor nacionalista e ambições irredentistas. Assim sendo, a utilização da palavra «Macedónia» foi vista não só como uma tentativa de usurpação de um legado cultural helénico, como, pior do que isso, um primeiro passo para prováveis reivindicações territoriais sobre a Macedónia grega. O facto de o facto de o novo Estado independente adoptar como símbolo nacional, na sua bandeira, o chamado «sol de Vergina», ainda agravou mais esta percepção de ameaça. Isto porque este tem um poder simbólico grande: trata-se de um desenho encontrado em 1977 naquele que se julga ser o túmulo de Filipe II da Macedónia – o pai do mítico Alexandre Magno – na cidade de Vergina, na Macedónia grega.

Vamos agora analisar as relações com a Bulgária. Importa aqui dizer que, neste momento, não há propriamente litígios geopolíticos em aberto entre os dois países (pelo menos da maneira como existem com os outros Estados vizinhos). Todavia, há um certo receio latente na Grécia sobre o «inimigo búlgaro», associado quer às já referidas memórias históricas das disputas sobre a partilha da Macedónia otomana, quer ao facto de a Trácia ocidental ter sido búlgara entre 1912-1923, antes de ser entregue à Grécia pelo Tratado de Lausana. A isto junta-se naturalmente a memória mais recente do «perigo comunista» búlgaro durante a Guerra-Fria (dos Estados limítrofes da Grécia, a Bulgária era o único país membro do antigo Pacto de Varsóvia). Actualmente, a perspectiva de adesão da Bulgária à União Europeia, que deverá concretizar-se em 2007, tende, por sua vez, a melhorar esta relação de desconfiança crónica.

Por último, vamos analisar as relações com a Turquia, as quais são as mais complexas e as mais problemáticas e que tendem a ser mais exasperantes para os restantes membros da UE e da NATO. Aqui, os pontos de conflito geopolítico são inúmeros e de natureza diversificada. Desde logo há as questões territoriais associadas à delimitação do território marítimo e do espaço aéreo no Mar Egeu. A Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito do Mar – realizada em Montego Bay, a 10 de Dezembro de 1982 – permitiu, por princípio, aos Estados ribeirinhos o alargamento das águas territoriais até às 12 milhas marítimas. A Grécia invocando essa convenção internacional sustenta a aplicabilidade desse direito em todo o seu território ribeirinho, incluindo as ilhas do Mar Egeu. Por sua vez, a Turquia contesta essa pretensão considerando estar-se perante uma das excepções a essa convenção. Para alem disso, contrapõe que a Convenção de Montreux (1936), anteriormente assinada pelos dois países acordava um limite de 6 milhas marítimas para o caso das ilhas do Mar Egeu, o qual continua a ter validade entre ambas as partes. Mais ou menos associada a esta questão está o problema da remilitarização das ilhas do Mar Egeu oriental, as quais se encontram já bastante próximas da costa da Turquia. A já referida Convenção de Montreux – no contexto histórico dos anos 30 do século XX, em que a ameaça percebida por ambos os países eram as ambições expansionistas da Itália de Mussolini –, autorizou a remilitarização dos Estreitos o que foi feito pela Turquia na Península de Galipoli (Gelibolu), nos Dardanelos e no Bósforo, bem como nas ilhas de Imbros (Imroz/Gökçeada) e de Tenedos (Bozcaada), que se encontram à entrada/saída desses mesmos Estreitos; por sua vez, a Grécia remilitarizou também as ilhas de Lemnos e de Samotrácia, próximas dos mesmos.

Ao longo dos anos 60, com o desencadear da disputa sobre Chipre, a Grécia procedeu também à remilitarização progressiva das ilhas do Dodecaneso (Egeu oriental), que a Turquia considerou ser uma violação do Tratado de Lausana e da Convenção de Montreux. Mais recentemente, em 1996, o conflito evoluiu para uma disputa sobre a soberania de algumas pequenas ilhas e ilhotes do Mar Egeu. O caso mais conhecido, até porque colocou os dois países à beira do conflito militar, foi o da disputa sobre Imia (Kardak), onde uma mediatização sensacionalista-nacionalista – o canal de televisão grego Antenna 1 e o jornal turco Hürriyet tiveram responsabilidades importantes na escalada do conflito – de um banal incidente com um barco da marinha mercante turca que precisou de ser rebocado, provocou uma grave crise diplomática nas relações entre os dois países, a qual suscitou mesmo a intervenção directa do Presidente dos EUA, William (Bill) Clinton.

Outro problema que desde meados dos anos 50 do século XX agita cronicamente as relações entre a Grécia e a Turquia é a questão de Chipre, a qual já colocou por mais de uma vez os dois países próximos da confrontação militar. A crise mais grave ocorreu no Verão de 1974 e está directamente na origem da actual divisão de facto da ilha, quando a Turquia, após uma tentativa de enosis da ilha com a Grécia desencadeada por Nikos Sampson, decidiu invadir o Norte da ilha de Chipre – uma «operação humanitária», na linguagem diplomática do governo turco –, onde actualmente se mantém com mais de 30.000 efectivos no terreno. Daqui resultou a criação de facto da República Turca do Norte de Chipre, em 1983, Estado que de iure só é reconhecido pela própria Turquia. Entre os muitos factores que dificultam a resolução do conflito entre as comunidades cipriota-grega e cipriota-turca, percebidas, reciprocamente, como «guardas avançadas» de uma confrontação mais vasta, vale a pena chamar a atenção para um aspecto que normalmente passa quase despercebido: a «generosa» política de concessão da cidadania cipriota-turca aos turcos da Turquia, bem conhecida no resto da ilha de Chipre e na Grécia, onde é vista como uma tentativa de colonização, para criar novas realidade demográficas e políticas no terreno (calcula-se que dos mais de 200.000 habitantes que terá actualmente o Norte da ilha, metade dos mesmos sejam colonos turcos vindos da Anatólia ou seus descendentes).

Um outro aspecto que também se cruza negativamente nas relações entre os dois países é a questão curda e aquilo a que um diplomata turco chamou a «coligação de dois Estados e meio» contra o seu país (os dois Estados são a Síria e a Grécia e o «meio Estado» é o Partido dos Trabalhadores do Curdistão/PKK de Abdullah Öcalan). Na óptica turca, os gregos voltaram nos anos 80/90 a por em prática uma velha estratégia político-militar dos tempos da guerra da independência da Turquia (1919-1922), quando as suas tropas invadiram a Ásia Menor e ocuparam a região de Esmirna. Nessa altura, os gregos em conluio com as potências ocidentais terão tentado sublevar os curdos contra os seus «irmãos» Muçulmanos (turcos), sem grande sucesso. A tese do apoio do Estado grego, ou, pelo menos, de alguns órgãos deste ao PKK acabou por adquirir credibilidade quando, em inícios de 1999, o líder curdo Abdullah Öcalan foi capturado pelos serviços secretos turcos, em colaboração com os serviços de informações dos EUA, à saída da embaixada grega, em Nairobi, no Quénia. Este facto gerou uma nova crise diplomática nas relações entre a Grécia e a Turquia, tendo levado mesmo à demissão do Ministro dos Negócios Estrangeiros do governo formado pelo Movimento Socialista Pan-Helénico/PASOK, Theodoros Pangalos, sendo substituído por Georgios Papandreou, o qual passou a adoptar uma linha de política externa mais conciliadora.

Há um aspecto importante da conflitualidade greco-turca, não invulgarmente subestimado nas análises ocidentais, que é o dos direitos do Patriarca Ecuménico da Igreja Ortodoxa grega, residente em Constantinopla/Istambul. Se os seus direitos ficaram (teoricamente) salvaguardados pelo Tratado de Lausana, a verdade é que o estado turco não se coibiu de implementar medidas que, aberta ou dissimuladamente, não só limitam na prática as suas actividades, como provavelmente terão o intuito de provocar a «morte lenta» dessa instituição. Assim, um aspecto curioso desta questão é a utilização política que o Estado turco faz do Patriarcado Ecuménico da Igreja Ortodoxa grega. Por um lado, conforme já vimos, o seu desaparecimento a prazo de Constantinopla/Istambul parece ser o grande objectivo, obviamente não assumido. Por outro lado, a sua presença serve os interesses actuais da política externa do país, pois permite dar credibilidade à imagem externa de um Estado que se apresenta como tolerante, moderado e «multiculturalista» (não é por acaso que nas cerimónias de recepção a dignitários europeus/ocidentais o Patriarca grego e grande Rabi judaico são presenças assíduas). O que já poucos diplomatas e estadistas europeus parecem saber é que os Cristãos em solo da Turquia, tal como os Judeus – os outros «Povos do Livro» na expressão agora em moda na Europa, emprestada pela teologia muçulmana –, são uma espécie cada vez mais rara, não existindo mais do que umas escassas dezenas de milhar, dos cerca de 1, 5 milhões que existiam no início do século XX.

Aqui verifica-se uma coisa interessante. A já referida retórica do actual governo turco, formado pelos quadros do partido de raízes conservadoras-islamistas do Partido da Justiça e do Desenvolvimento/AKP, de Recep Tayyip Erdoğan e Abdullah Gul, que se esforçam por apresentar a Turquia como «ponte entre o Ocidente e o Oriente», como peça fundamental para evitar o «conflito de civilizações» e como «elemento estabilizador dos Balcãs e do Médio Oriente», parece impressionar favoravelmente líderes europeus/ocidentais como o ex-chanceler alemão Gerard Schröder e Anthony (Tony) Blair. Todavia, enfrenta, em graus variáveis, cepticismo e desconfiança nos países Ortodoxos (é esse o caso da Grécia, apesar da sua recente abertura à adesão turca) e nos países Árabes (pelo menos no caso da Líbia de Muammar Kadafi). As razões são mais ou menos óbvias se tentarmos olhar para as ambições «europeias» da Turquia, a partir de um olhar grego (ou até árabe). A (re)entrada da Turquia na Europa surge como uma espécie de «regresso ao passado»: o antigo «colonizador» tem ambições neo-imperiais de (re)conquistar a «Turquia da Europa» (nome dado no século XIX, aos territórios otomanos nos Balcãs), ao nível da influência cultural, religiosa e política. Indo até mais longe nesta ambição estratégica da Turquia, esta procurará, através da sua integração na Europa, tornar-se de iure ou de facto numa espécie de «Estado protector» dos 12 a 15 milhões de Muçulmanos da Europa Ocidental, dos quais mais de 3,5 milhões são de origem turca. Por absurda que esta ideia possa parecer aos olhares ocidentais, a verdade é que esta ganha alguma credibilidade quando vista sob o prisma da experiência histórica da Grécia e dos restantes povos Ortodoxos que estiverem submetidos ao Império Otomano (aliás, não tiveram já eles também um «Estado protector» da Ortodoxia, numa altura em que eram súbditos otomanos, quando a Rússia czarista impôs esse direito pelo Tratado de Küçük-Kaijnardja, em 1774?).

Esta percepção é também alimentada pela atitude da Turquia face à minoria Muçulmana grega, de 120.000 a 140.000 pessoas – que esta considera como sendo «turca» –, a qual se assemelha à de um «protector» que evoca às memorias históricas referidas. De facto, tem existido da parte dos sucessivos governos turcos um esforço de revivalismo cultural do passado otomano, visível ao nível do terreno pelos esforços diplomatas do consulado de Komotini. Por outro lado, quando um dos líderes dos Muçulmanos gregos, Ahmet Sadik, decidiu criar um partido comunitário Muçulmano/«turco», na transição dos anos 80 para aos anos 90, teve o apoio entusiástico de alguns partidos na Turquia, bem como da generalidade da imprensa turca. A resposta do governo da Grécia, na altura chefiado por Konstantinos Mitsotakis da Nova Democracia, foi drástica: o seu governo fez aprovar no Parlamento uma alteração à Lei Eleitoral, criando um patamar mínimo de 3% dos sufrágios a nível nacional, para um partido poder ter representação parlamentar. O resultado nas eleições seguintes foi que dos três habituais deputados Muçulmanos que normalmente eram eleitos nas listas do PASOK e da Nova Democracia nenhum foi eleito… (este é uma medida também bem conhecida da Turquia, onde a respectiva Lei Eleitoral impõe a obtenção de pelo menos 10% dos sufrágios a nível nacional, para um partido poder obter representação parlamentar – o alvo neste caso é a minoria curda).

6. Nos Balcãs e na Turquia as minorias étnicas e religiosas acabam por ter um papel importante nas estratégias de política interna e externa dos Estados, das quais muitas vezes são as primeiras vítimas. A Grécia e a Turquia entregaram-se ao longo do século XX a um jogo competitivo perverso, com o objectivo de se livrarem das respectivas minorias e de apagarem os restos de um passado religioso incómodo para a sua identidade nacional. O abandono e as dificuldades que recuperação a que estão votadas as Igrejas Ortodoxas gregas e arménias que ficaram em território turco, bem como as mesquitas que os otomanos deixaram em território grego, são o melhor prova factual dessas políticas. Nesse jogo com contornos maquiavélicos, se exceptuarmos o caso dos curdos, a Turquia foi melhor sucedida pois a minoria Ortodoxa grega actualmente é residual. A isto não é certamente estranho o carácter autoritário e militarista da República fundada por Mustafa Kemal (Atatürk), nem a «reislamização» lentamente efectuada a partir dos anos 50 do século XX, com o acesso ao poder do Partido Democrático de Adnan Menderes. No caso da Grécia, ultrapassada a instabilidade política que sucedeu à guerra civil (1946-1949) nas décadas de 50 e 60, cujo culminar acabou por ser o período ditatorial de 1967-1974, a democracia liberal parece bem consolidada, o que certamente foi um entrave à prossecução de políticas repressivas sobre a incómoda minoria Muçulmana da Trácia ocidental (o que não impede que os sectores mais nacionalistas gregos a vejam como o «inimigo interno»).

Face a todo este historial de atritos, simultaneamente recente e antigo, a dúvida que fica é se as relações greco-turcas entraram definitivamente numa nova fase, a partir de finais de 1999, quando a Grécia deixou de fazer obstrução à candidatura da Turquia à UE, após uma curiosa aproximação diplomática entre Georgios Papandreou e Ismail Cem – a chamada «diplomacia dos sismos», por referência aos dramáticos tremores de terra que afectaram sucessivamente os dois países, no Verão desse mesmo ano. A dúvida que fica também é se esta linha diplomática cooperativa – a qual retomou a aproximação iniciada na década anterior por Turgut Özal e Andreas Papandreou, em Davos, na Suíça, na altura do Fórum Económico Mundial de 1988 –, e que entretanto foi interrompida por diversos incidentes conflituais, aponta para uma solução duradoura dos conflitos geopolíticos, ou, pelo contrário, não será mais do que um transitório bom relacionamento, similar ao que ocorreu na década de 30 do século XX, entre Eleftherios Venizelos e Mustafa Kemal (Atatürk).

 

NOTAS

[1] Dimitri Kitsikis, «Les Anciens Calendaristes depuis 1923 et la montée de l´ integrisme en Grèce» in Cahiers d´ études sur la Mediterranée orientale et le monde turco-iranien, nº 17, Janvier-Juin 1994, pag. 1 (texto disponível on-line em http://www.ceri-sciencespo.com/publica/cemoti/textes17/kitsikis.pdf).

[2] Ver, entre outros, Jean-Baptiste Duroselle, História da Europa (trad. port. de Histoire de l’ Europe), Lisboa, Círculo de Leitores/Publicações Dom Quixote, 1990.

[3] Essa linha analítica predominantemente a-histórica pode-se encontrar, por exemplo, no livro de Ian Lesser et al., Greece´s New Geopolitics, Santa Monica CA, Rand, 2001.

[4] Dimitri Kitsikis, O Império Otomano (trad. port. de L ‘Empire Ottoman, 1994), Porto, Rés-Editora, 2000.

[5] Gilles Bertrand, Le conflit helléno-turc, Paris, Maisonneuve & Larose/IFEA, 2003, pp. 10-11.

[6] Samuel P. Huntington, O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial (trad. port de The Clash of Civilizations. Remaking of World Order, 1996), Gradiva, 1999, pag. 190.

[7] Dimitri Kitsikis, «Les Anciens Calendaristes depuis 1923 et la montée de l’ integrisme en Grèce», pag. 29.

[8] Dimitri Kitsikis, op. cit. ant., pp. 20-21.

[9] Numa escolha que denotava um hábil intuito político-estratégico de perpetuar o cisma entre a Cristandade Oriental e a Ocidental, como faz notar o historiador David Brewer em The Greek War of Independence. The Struggle for Freedom from Ottoman Oppression and the Birth of Modern Greek Nation, Woodstock-New York, The Overlook Press, 2003, pag. 4.

[10] Dimitri Kitsikis, op. cit. ant., pag. 3.

[11] Dimitri Kitsikis, O Império Otomano, pag. 149.

[12] Nikos Chrysolaras, Orthodoxy and Greek National Identity. An analysis of Greek Nationalism in light of A. D. Smith´s Theoretical Framework, texto do artigo disponível on-line em http://www.ksg.harvard.edu/kokkalis/GSW7/GSW%206/Nikos%20Chrysoloras%20Paper.pdf, pag. 13.

[13] Nikos Chrysolaras, op. cit. ant., pag. 14.

[14] Nikos Chrysolaras, ibidem., pag. 14.

[15] José Casanova, Public Religions in the Modern World, citado por Nikos Chrysolaras, ibidem., pag. 14.

[16] Nikos Chrysolaras, ibidem., pag. 15.

[17] Ver texto oficial em língua inglesa da actual Constituição de 1975, com as revisões de 1986 e 2001, que é disponibilizado pelo Parlamento grego em http://www.parliament.gr/english/politeuma/syntagma.pdf

[18] Nikos Chrysolaras, ibidem., pag. 17.

[19] Ver CIA 2005 World Factbook em http://www.cia.gov/cia/publications/factbook/geos/gr.html

[20] Étienne Copeaux, Une vision turque du monde à travers les cartes de 1931 à nos jours, Paris, CNRS Éditions, 2000, pp. 133-134. Sobre a identidade nacional turca e a sua evolução ver também José Pedro Teixeira Fernandes, Turquia. Metamorfoses de Identidade, Lisboa, ICS-Imprensa de Ciências Sociais, 2005.

[21] C. M. Woodhouse, Modern Greece. A Short History, Londres, Faber & Faber, 1968, 5ª edição 1991. Ver em especial o mapa da página 174, onde são mostrados os incrementos territoriais do território da Grécia, desde 1832 até 1947.

[22] Ioannis Kapodistrias (ou Giovanni Capo d´Istria na versão em italiano), nasceu em 1776, na ilha jónica de Corfu, que na altura era uma possessão da República de Veneza. Foi o primeiro Presidente/Governador da Grécia moderna (1827-1831), tendo assumido essas funções após a derrota da frota otomana em Navarino, imposta pela acção conjunta da marinha britânica, francesa e russa, que deixaram a Grécia numa situação de independência de facto face ao poder otomano. Entre 1809 e 1822 esteve ao serviço do czar Alexandre I da Rússia, tendo desempenhado um papel importante nas negociações do Congresso de Viena (1815) e ocupado posteriormente o cargo de Ministro de Negócios Estrangeiros da Rússia, do qual abdicou para se envolver activamente na causa da fundação de um Estado nacional grego, libertado da tutela otomana. Foi assassinado em 1831 em Nafplio (Nauplio), a primeira capital da Grécia moderna.

[23] Sobre os sofrimentos do Muçulmanos otomanos com o retrocesso da dar-al Islam nos Balcãs ver o livro do historiador norte-americano da Universidade de Louisville, Justin McCarthy Death and Exile. The Ethnic Cleansing of Ottoman Muslims, 1821-1922, Princeton-Nova Jersey, The Darwin Press, 1995. Este autor é sobretudo conhecido pelas suas teses pro-turcas de negação do genocídio dos arménios otomanos durante a I Guerra Mundial.

[24] Erik-Jan Zürcher, Greek and Turkish refugees and deportees 1912-1924, www.let.leidenuniv.nl/tcimo/tulp/Research/ejz18.htm

[25] Ver a tese de doutoramento apresentada à Universidade de Oxford pelo diplomata britânico Michael Llewellyn Smith, Ionian Vision. Greeece in Asia Minor 1919-1922, Londres, Hurst & Company, 1973, 2ª edição 1998.

[26] Em relação à controvérsia histórica sobre a autoria turca ou grega do incêndio de Esmirna (Izmir) ver o livro de Marjorie Housepian Dobkin, Smyrna 1922. The Destruction of a City, Nova Iorque, Newmark Press, 1971, 3ª ed. 1998.

[27] Erik-Jan Zürcher, op. cit. ant., pag. 3.

[28] A Organização da Conferência Islâmica tem 57 membros (entre os quais se encontra um antiga colónia portuguesa, a Guiné-Bissau) e actualmente é presidida pelo professor de história e cultura islâmica turco, Ekmeleddin Ihsanoglu, após uma aposta diplomática bem sucedida do governo conservador-islamita de Recep Tayyip Erdoğan.

[29] Ver Turkey, Europe & Bin Ladens, texto disponível no site oficial de Muammar (Gadafi) Kadafi na Internet em http://www.algathafi.org/turky/turki-en.htm

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo publicado originalmente sob o título “A Grécia Moderna e o Ocidente” in História nº 87 junho (2006): 24-41. Última revisão 12/06/2015

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