A finança islâmica nas sociedades ocidentais

Edifício em Manhattan, NY

 

 

Na comissão [parlamentar], a deputada Chantal Brunel (UMP) tinha explicado – a propósito do artigo 6, sexto B modificando o código civil, a fim de «permitir a emissão em Paris de produtos compatíveis com os princípios éticos muçulmanos» –, que «esta disposição visa introduzir os princípios da sharia no direito da fidúcia tornando-o compatível». A relatora acrescentava que há «determinantes culturais que é necessário ter em conta» para «corrigir» o nosso sistema bancário. Para o deputado (PS) Henri Emmanuelli, estes propósitos prejudicam profundamente a divisa republicana e a lei de 1905 de separação da Igreja e do Estado e acrescentou: «Nós pensamos ao contrário, que não é necessário introduzir os princípios da sharia nem a ética do Alcorão, nem mesmo o direito canónico, a Tora o Talmude, quer seja da Babilónia ou de Jerusalém».

Jean-Michel QUILLARDET et. al.[1]

 

A 7 de Fevereiro de 2008, Rowan Williams, Arcebispo de Cantuária e líder religioso da Igreja Anglicana, após uma palestra proferida no Royal Courts of Justice sobre a lei civil e religiosa,[2] declarou, em entrevista à Rádio BBC, que lhe parecia «inevitável» a introdução da sharia islâmica no Reino Unido até porque, sublinhou este, «como matéria de facto» algumas disposições eram «já reconhecidas» pela sociedade e «estavam sob a lei»[3] britânica. Considerou ainda que atribuir-lhe um estatuto oficial ajudaria à coesão social, pois existiam muçulmanos que não se reportavam ao sistema legal[4] do país. Estas declarações públicas desencadearam uma enorme polémica, com repercussões dentro e fora[5] da sociedade britânica. Ao nível oficial, foram objecto de um rápido distanciamento crítico do governo. Pronunciando-se sobre a questão, o porta-voz do executivo trabalhista de Gordon Brown declarou que «a nossa posição geral é que a sharia não pode ser usada como justificação para abrir brechas na lei do Reino Unido, nem os princípios da sharia devem ser incluídos num tribunal civil para resolver disputas contratuais»[6]. As declarações do Arcebispo foram ainda objecto de críticas dentro da própria Igreja Anglicana[7] e repudiadas pela maioria da imprensa[8], tendo várias vozes pedido a sua renúncia ao cargo. Todavia, houve igualmente apreciações mais compreensivas, dentro e fora da Igreja Anglicana. Alguns defenderam que o discurso de teor erudito do Arcebispo de Cantuária tinha sido mal interpretado e as suas afirmações retiradas do contexto em que tinham sido proferidas. Outros compararam a sua palestra e declarações sobre a sharia a uma polémica anterior com o Islão, desencadeada pelo Papa Bento XVI, quando, em 2006, na sua também erudita palestra na Universidade de Ratisbona[9] abordou, de forma crítica, a doutrina da jihad. Apesar de ter também recebido várias críticas dos meios muçulmanos liberais[10] teve, sem grande surpresa, apoios explícitos de outras organizações muçulmanas como o Muslim Council of Britain[11], próximo do movimento islamista radical dos Irmãos Muçulmanos do Egipto (paradoxalmente, ou talvez não pelas razões que veremos em seguida, reconhecido pelo governo trabalhista britânico como sendo uma organização representativa dos muçulmanos britânicos[12]). De forma já mais surpreendente, os apoios surgiram também do interior de instituições jurídicas fundamentais sociedade britânica. Num discurso efectuado alguns meses mais tarde no Centro Muçulmano de Londres Oriental[13], Lord Phillips de Worth Matravers, o magistrado chefe da justiça na altura, expressou similar posição favorável ao reconhecimento oficial da sharia no quadro do sistema legal. Apesar de tudo, à medida que a controvérsia se dissipou ficou a ideia de terem sido declarações infelizes e inconsequentes, do Arcebispo de Cantuária e de Lord Phillips, tendo estas últimas tido bastante menor repercussão na opinião pública. Poucos ligaram o assunto a outros desenvolvimentos mais gerais, nomeadamente à tendência de expansão da finança islâmica para as sociedades ocidentais. A verdade é que mais ou menos por esse período de tempo, o executivo britânico de Gordon Brown, que tão veementemente repudiara as declarações eclesiásticas sobre o reconhecimento oficial da sharia em matéria de família estava, em paralelo, a desenvolver esforços para tornar Londres a capital da finança islâmica. Simultaneamente, planeava emitir um empréstimo obrigacionista de acordo com as prescrições da sharia em matéria comercial (sukuk). Ao mesmo tempo, instituições bancárias e seguradoras britânicas e internacionais procuravam oferecer produtos configurados segundo as prescrições islâmicas aos muçulmanos residentes no Reino Unido. Similares desenvolvimentos começam a surgir em vários países europeus, nomeadamente em França onde a ministra da economia, Christine Lagarde, apoiou os esforços de vários grupos bancários e financeiros franceses para disputar a primazia britânica na corrida à finança islâmica na Europa, o que, neste país, implicava também uma alteração em matéria de laicidade, nomeadamente com uma emenda ao código civil. Todavia, o que quase nunca foi discutido foram as possíveis implicações, a médio e longo prazo, para as sociedades ocidentais, do reconhecimento, ainda que implícito, da sharia em matéria comercial e o precedente que isso implica, pois estas medidas foram quase sempre tomadas fora do olhar e do escrutínio da opinião pública. Assim, o objectivo principal deste artigo é efectuar essa análise e discussão ligando a finança islâmica com as tendências mais gerais do islamismo[14] (Islão político). Para além disso, será feito um esforço de avaliação do seu previsível impacto nas instituições das sociedades democráticas, pluralistas e seculares e ocidentais, o qual usará sobretudo como exemplos os casos britânico e francês.

  1. Os princípios da finança e da economia islâmica (capitalismo sharia)

Embora os textos religiosos do Islão contenham preceitos sobre como efectuar transacções comerciais e financeiras e sobre actividades lícitas (halal) e ilícitas (haram) – e exista, no Islão clássico, uma jurisprudência (fiqh) sobre questões de finança islâmica, a verdade é que conforme explica Timur Kuran[15], a teorização da finança e economia islâmicas e a criação de instituições financeiras conformes à sharia é essencialmente um fenómeno moderno, datado de meados ou até de finais século XX. Em termos de realizações institucionais, o seu marco fundacional foi a criação, em 1975, do Banco Islâmico de Desenvolvimento, em Jeddah, na Arábia Saudita. Este surgiu com o objectivo de apoiar os países muçulmanos no seu desenvolvimento económico, fornecendo capitais e concedendo empréstimos em conformidade com a sharia[16]. Quanto às suas bases teóricas, encontram-se de alguma maneira ligadas ao Islão político (islamismo) e surgiram sobretudo nos trabalhos de ideólogos do islamismo radical[17] sunita, como o paquistanês Abul Ala Mawdudi (O Problema Económico do Homem e a sua Solução Islâmica, 1947) e o egípcio Sayyid Qutb (Justiça Social no Islão, 1949). No caso do islamismo radical xiita, a teorização principal deve-se ao iraquiano Muhammad Baqir al-Sadr (A Nossa Economia, 1961). Todavia, os ensinamentos destes ideólogos do islamismo radical diferem em vários aspectos relevantes sobro que deve ser a configuração concreta da finança e economia islâmicas. No caso de Abul Ala Mawdudi, este «via favoravelmente o processo de mercado mas insistia que o comportamento fosse limitado pelas normas que se encontram nas fontes clássicas do Islão. Por sua vez, Sayyid Qutb e Baqir al-Sadr eram, em geral, mais desconfiados dos mecanismos de mercado tendo posições «mais favoráveis à intervenção e ao controlo da economia pelo Estado». Quanto à razão de ser da economia islâmica, esta foi enunciada por Abul Ala Mawdudi como sendo prioritariamente «um veículo para afirmar a primazia do Islão e, secundariamente, como um instrumento para uma mudança económica radical. Tal como Abul Ala Mawdudi, muitos outros defensores da economia islâmica subordinaram-na a objectivos mais alargados»[18]. Por exemplo, o ayatollah Khomeini negou que a revolução islâmica no Irão fosse realizada por questões económicas: «Khomeini, claro, falou contra a pobreza e a exploração e suportou certas reformas económicas, incluindo a ostensiva eliminação do juro. Mas este sempre subordinou os objectivos económicos à finalidade geral de restaurar a centralidade do Islão na vida privada e pública, mesmo até em objectivos particulares como a eliminação do consumo de álcool e assegurar a modéstia feminina».

As realizações com mais impacto da economia islâmica[19] encontram-se provavelmente na área financeira (banca islâmica que não pratica a riba/juro e faz operações de mudaraba e musharaka) e na área da redistribuição (administração do zakat pelo estado). Vejamos, nos seus traços essenciais, como funcionam estas operações económicas e financeiras:

(i) A banca islâmica pretende ser uma banca em harmonia com os preceitos da sharia (Alcorão, hadith e fiqh), não praticando por isso o juro (riba, que pode também ser entendido como usura), não efectuando transacções especulativas (gharar), nem lidando com negócios envolvendo produtos proibidos (haram), como bebidas alcoólicas, carne de porco ou jogo. Caracteriza-se por recorrer alternativamente a duas técnicas de lucro e de partilha de perdas, utilizadas desde os primeiros tempos do Islão – mudaraba e musharaka – discutidas já pelos teólogos-juristas clássicos.

(ii) A mudaraba é uma operação onde «um investidor ou grupo de investidores entrega o capital a um empresário que o aplica na produção ou no comércio e depois devolver ao investidor o capital emprestado mais uma parte dos lucros obtidos».

(iii) A musharaka é uma operação em que «o empresário junta algum dinheiro do seu próprio capital àquele que é fornecido pelos investidores, expondo-se também a si próprio ao risco de perda de capital»[20].

(iv) O zakat é uma espécie de imposto religioso mencionada explicitamente no Alcorão (surata do Arrependimento, 9: 103), sendo visto como «um dos cinco pilares do Islão, juntamente com a crença na unidade de Deus, as orações obrigatórias, o jejum durante o Ramadão e a peregrinação a Meca, para aqueles que tiverem condições de a efectuar»[21].

Especificamente em relação ao zakat, as principais novidades introduzidas pela economia islâmica foram a administração estadual do zakat (posta em prática em países como, por exemplo, o Paquistão, a Malásia, a Arábia Saudita), o alargamento da sua base de obrigatoriedade, por exemplo às empresas (com o fundamento que estas são pessoas jurídicas) e a mexida nas taxas que tradicionalmente variavam entre os 2,5 % e os 20% – aplicadas a produtos agrícolas, minerais, materiais preciosos, etc., ou seja, às fontes de riqueza de uma sociedade tradicional[22].

Como se pode verificar, se não considerarmos as referidas ambições ideológico-político-religiosas de supremacia do Islão inerentes aos seus teorizadores (Mawdudi, Qutb, al-Sadr e Khomeini), a especificidade da finança islâmica reside essencialmente na proibição existente na religião muçulmana da prática juro/usura (riba) – «Alá tornou lícito o comércio e ilícito o juro» (surata A Vaca, 2: 275)[23]. Todavia, esta aversão à prática do juro/usura não é propriamente uma especificidade cultural-religiosa do Islão. Também no quadro tradicional do Cristianismo se podia encontrar similar estigma religioso. Robert Solomon, num estudo sobre a ética empresarial ocidental, mostra como as raízes deste estigma (que se estendia igualmente ao resto do mundo dos negócios), se podem encontrar na Antiguidade, na visão helénica pré-cristã do mundo, estando ainda reflectido nos textos bíblicos do Novo Testamento:

O ataque de Aristóteles à prática repugnante e improdutiva da «usura» manteve a sua força praticamente até ao século XVII. Apenas os marginais, nas franjas da sociedade, e não os cidadãos respeitáveis, se dedicavam a tais actividades. (O Shylock de Shakespeare no Mercador de Veneza era um marginal e um usurário.) Esta é, a traços largos, a história da ética empresarial — o ataque indiscriminado ao comércio e às suas práticas. Jesus expulsou os vendilhões do templo, e os moralistas cristãos de S. Paulo a S. Tomás de Aquino e Martinho Lutero seguiram o seu exemplo, condenando rotundamente a maior parte daquilo a que hoje prestamos homenagem como «o mundo dos negócios»[24].

A aversão à prática do juro e às actividades de negócios de tipo capitalista, vistas negativamente como actividades «usurárias», teve um marco decisivo de viragem nos séculos XVI/XVII. A partir daí, o estigma do juro e o anátema sobre o «mundo dos negócios» foi progressivamente ultrapassado pelos processos paralelos de evolução da teologia cristã, que se foi adaptando às condições da modernidade, do triunfo do «espírito do capitalismo»[25] e de secularização das sociedades ocidentais. Assim, se no passado até aos séculos XVI/XVII, as concepções teológicas de ambas as religiões, sobre a questão específica do juro/usura, não eram substancialmente diferentes, hoje a situação é totalmente diferente. Basta recordar que, primeiro no âmbito dos desenvolvimentos da Reforma Protestante, sobretudo do Calvinismo (séculos XVI e XVII), e depois no âmbito do Catolicismo a proibição do juro foi eliminada. Na Igreja Católica a mudança decisiva começou a ocorrer sobretudo ao longo do século XVIII, tendo culminado já no início do século XIX, entre 1822 e 1836, com a declaração pela Santa Sé de que todas as formas de juros permitidas pela lei do estado podiam ser usadas por qualquer católico[26].

No caso da finança islâmica, o que ressalta mais à vista é o facto de sua teorização –efectuada a partir de meados do século XX e que se deve sobretudo, como já referido, a ideólogos do islamismo radical como Mawdudi, Qutb, al-Sadr e Khomeini –, ser um processo notório de recusa da modernidade ocidental, o qual pretende recriar o velho preconceito religioso anti-juro, agora com tonalidades islâmicas. Em termos comparativos, há uma curiosa e desconcertante diferença na maneira como a aversão muçulmana ao juro (recriada no presente) e cristã (um passado ultrapassado por um progresso social e teológico), parece estar a ser encarada nas sociedades ocidentais. Como veremos em seguida, a configuração e controle da religioso de produtos financeiros «islamicamente correctos» implica, entre outras coisas, que as instituições bancárias e financeiras disponham nos seus quadros, ou, pelo menos, como consultores externos, de clérigos muçulmanos (tipicamente um mufti ou um xeique no caso do Islão sunita e um ayatollah no caso do Islão xiita), os quais certificam e exercem um controlo dessa conformidade com a sharia. A benevolência a favor de uma acomodação empresarial e política com princípios teológicos medievais que se pretendem afirmar como contemporâneos é merecedora de reflexão. Analisemos em seguida esta atitude empresarial e política, de forma a descortinarmos as suas motivações.

 

  1. A redenção do capitalismo ocidental pela finança islâmica

Nos últimos anos, diversas empresas europeias e norte-americanas ligadas à actividade bancária e ao sector segurador, passaram a configurar produtos financeiros de acordo com as prescrições da sharia islâmica tendo, como mercado-alvo, inicialmente os países árabes e islâmicos, e, mais recentemente, também os muçulmanos residentes na Europa e EUA. Entre os bancos e seguradoras que têm entrado nesta área encontram-se alguns dos nomes mais conhecidos internacionalmente pela dimensão global das suas operações (nalguns casos também por ligações à crise desencadeada no Verão de 2008 nos EUA e pelos escândalos financeiros em que estiveram envolvidos). Entre essas empresas destacam-se o Barclays[27], a AIG (American International Group) – seguradora que, na sequência da crise financeira de 2008, teve de ser salva da insolvência[28] pelo governo federal dos EUA –, o UBS[29] (originalmente fundado pela Union Bank of Switzerland que, entretanto, se fundiu com o Swiss Bank Corporation), a Swiss Re[30], a Allianz[31], o Citi[32] (Citigroup), o Deutsche Bank[33], o Morgan Stanley[34], o HSBC[35] (originalmente Hongkong and Shanghai Banking Corporation) e o Lloyds TSB Bank.[36] Quanto ao Citibank e ao Goldman Sachs – este último envolvido na recente controvérsia sobre operações de cosmética contabilista da dívida pública da Grécia, que abalaram a zona euro[37] –, mostraram já intenção de investir no Irão que, em inícios de 2009, levantou a proibição de abertura de filiais de bancos estrangeiros no seu território[38]. Estes avanços na área da banca e finanças islâmica têm sido acompanhados por agências de rating como a Moodys, a qual avaliou o potencial deste mercado em 800 biliões de dólares)[39] e secundados pelas principais praças financeiras ocidentais e pelos seus índices de mercado: em Nova Iorque foram criados os Dow Jones Islamic Market Indexes[40]; por sua vez, na city londrina o surgiu o FTSE Sharia Global Equity Index Series[41].

Para credibilização do seu negócio aos olhos dos muçulmanos pios, ou dos que pretendem transmitir tal aparência, as instituições financeiras ocidentais contrataram teólogos-juristas muçulmanos para certificarem a conformidade dos seus produtos face às prescrições da sharia (Alcorão, hadith e fiqh). Conforme já referimos, a finança islâmica implica a sua inclusão no órgão de administração dessas instituições, ou então, mais vulgarmente, a criação de um conselho consultivo especialmente criado para esse efeito. Existem vários nomes «sonantes» neste círculo bastante estrito: um dos mais conhecidos é o xeique Yusuf Talal DeLorenzo[42] estabelecido em Washington DC, na capital federal dos EUA e sede das instituições de Bretton-Woods, Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial. Outro teólogo-jurista muçulmano incontornável, também para estas questões financeiras, é o xeique Yusuf al-Qaradawi, de origem egípcia e estabelecido no Qatar onde dirige o site na Internet Islamonline[43] e que vê na economia islâmica um substituto para o capitalismo ocidental[44] cristão/secular. Quanto ao mufti Muhammad Taqi Usmani[45], ex-juiz do Supremo Tribunal Federal Sharia do Paquistão –, envolto em controvérsia pela pouco empresarial afirmação de que os «muçulmanos devem viver em paz até que sejam suficientemente fortes para lançar a jihad»[46] –, também integra este grupo restrito de estrelas da finança islâmica ao serviço de instituições ocidentais[47] ou de países árabes e islâmicos.

Aparentemente indiferentes a estas polémicas, alguns governos europeus mostram um interesse directo nas possibilidades da banca e finanças islâmicas. Em França, o país da Europa Ocidental com o maior número de muçulmanos religiosos ou sociológicos, a ministra da economia, Christine Lagarde, tem procurado, sobretudo desde o desencadear da crise económica e financeira de 2008, atrair investimento e capitais dos emiratos árabes através de uma política de estímulos fiscais. Mas para a entrada das instituições bancárias no negócio da finança islâmica no mercado francês, nomeadamente para a emissão de obrigações «islamicamente correctas»[48], os estímulos fiscais mostraram-se insuficientes sendo necessário ultrapassar a barreira do actual quadro legislativo moldado pela lei laïcité de 1905 (que estabelece uma separação estrita das igrejas do estado), alterando nomeadamente o dispositivo do código civil nesta matéria. Todavia, em França, esta mudança da legislação por imperativos religioso-empresariais e de oportunidade (ou oportunismo) capitalistas, mostra-se um assunto mais complicado do que noutros países europeus onde a ideologia e políticas multiculturais tradicionalmente prevalecem – é o caso, por exemplo, do Reino Unido –, surgindo uma oposição significativa à sua modificação[49]. Isto para grande consternação de certos meios financeiros e empresariais franceses que sentem estar em situação de desvantagem competitiva na actual corrida ocidental ao capitalismo sharia.

Sem os entraves da laicïté e do quadro legislativo francês, o governo britânico anunciou, em inícios de 2008, a intenção de lançar um empréstimo especial obrigacionista (sukuk), configurado de acordo com as regras da sharia (tendo, já em inícios do ano anterior, tomado outras medidas para facilitar[50] a finança islâmica). Para Alistair Darling, o chanceler do tesouro do governo trabalhista de Gordon Brown, a medida justificou-se não só como uma forma de aceder à grande liquidez de capitais dos países árabes-islâmicos do Médio Oriente, como também para estabelecer pontes com a comunidade muçulmana britânica[51]. Similar entusiasmo parece ser partilhado nas influentes publicações financeiras e económicas britânicas, Financial Times[52] e revista The Economist, quanto às potencialidades de mercado da emergente banca e finanças islâmicas e às suas virtudes éticas e de inclusão social. Para esta última publicação, o dinamismo e o crescimento da finança e economia sharia contrasta com a estagnação do capitalismo e mercados ocidentais, atraindo crescentemente grandes empresas financeiras, escritórios de advogados de negócios e governos:

Os grandes escritórios de advogados e bancos ocidentais, sempre rápidos a farejarem novos negócios, estão a aumentar as suas equipas de finança islâmica. Os governos também estão atentos a este processo. Em Julho, a Indonésia, o país muçulmano mais populoso, disse que iria lançar o primeiro empréstimo obrigacionista soberano sukuk. O governo britânico, que cobiça ser centro líder da finança islâmica, está também à beira de emitir um empréstimo soberano de curto prazo sukuk. A França iniciou a sua própria ofensiva de charme dirigida aos investidores islâmicos. Face aos mercados doentes ocidentais tal vigor impressiona. A liquidez baseada no petróleo alavancou os fundos soberanos do Médio Oriente dando também novo alento à procura da finança islâmica. Comparada com a ética de algumas instituições financeiras americanas do subprime, a finança islâmica parece tão virtuosa como vigorosa[53].

Mas não é so nos meios empresarias e na imprensa financeira que se encontra esta narrativa laudatória e de redenção moral do capitalismo pelos produtos sharia. A atracção parece também estar a estender-se a prestigiadas universidades norte-americanas e europeias. Por exemplo, no âmbito da escola de direito da Universidade de Harvard foi criado o Islamic Finance Project[54], sendo também organizado um forum anual dedicado às finanças islâmicas. Por sua vez, a sua reputada escola de gestão, a Harvard Business School, preocupa-se, cada vez mais, com a forma de efectuar negócios num contexto cultural islâmico[55]. Quanto à Universidade de Oxford, vai organizar em Junho de 2010, na Saïd Business School[56], o primeiro Global Islamic Branding and Marketing Forum[57].

 

  1. Oportunidade de negócio e/ou oportunidade de islamização?

Conforme acabamos de descrever, uma parte do mundo financeiro e empresarial europeu e norte-americano, bem como alguns governos ocidentais – ao que tudo indica sob influência ou pressão de lobbies financeiros empresariais com interesses nesta área –, procuram apresentar a economia e a finança islâmicas como uma oportunidade de negócio interessante, particularmente neste período de crise. Paralelamente, são desvalorizadas as questões levantadas pela sua base religiosa (e ideológica) e pela necessidade de conformidade das instituições e produtos com a sharia islâmica, apresentando esses aspectos como detalhes secundários ligados à promoção da «diversidade cultural», ou então ligados à necessidade de alinhamento do negócio com a «ética» de outra cultura. Todavia, esta forma de apresentar a finança islâmica como algo similar a qualquer outra oportunidade de negócio ou segmento de mercado – e que se poderia justificar com argumentos de racionalidade económica e alguma dose de ética à mistura –, tende a ignorar, ou, pelo menos, a subestimar, as potenciais implicações sociais e político-jurídicas, vistas como inócuas externalidades, para as sociedades ocidentais. No entanto, estas podem ir bastante além do estrito horizonte económico e empresarial. Na literatura teórica académica e na discussão política foram já formuladas algumas objecções e críticas de vulto à aposta no capitalismo sharia que instituições financeiras e governos ocidentais estão já a efectuar, ou pretendem efectuar, a curto ou médio prazo. As objecções e críticas são de vária ordem e podem ser sistematizadas da seguinte maneira para efeitos analíticos: i) a finança islâmica não tem efeitos visíveis na eficiência, redução da pobreza e crescimento sustentado, sendo pouco transparente e levantando até problemas de compatibilidade com as usuais regras de mercado das instituições financeiras; ii) a finança islâmica põe em causa valores sociais e políticos primordiais das sociedades ocidentais, nomeadamente os princípios estruturantes de um estado secular/laico; iii) a finança islâmica abre a porta ao Islão político (islamismo) e à sua estratégia de islamização levantando, por isso, questões estratégicas e de segurança.

Analisemos então com mais profundidade esta questão, de forma a podermos igualmente avaliar a solidez das críticas formuladas. Como referimos, a abordagem mais frequente do mundo financeiro e empresarial consiste em configurar o que está em causa numa lógica puramente empresarial, falando em «mercados emergentes», numa nova «oportunidade de negócio», num «segmento de mercado a satisfazer» ou na captação de «investidores e mercados com liquidez». Como vimos também, paralelamente a estes argumentos de racionalidade económica e empresarial que, em si mesmos, procuram induzir nos seus receptores uma imagem positiva, são usados outros de tipo multiculturalista apelando, simultaneamente, a elevados valores morais, ou seja, sugerindo que a adopção do capitalismo sharia é uma forma de demonstração da responsabilidade social da empresa capitalista. Assim, a finança islâmica poderia também justificar-se pelo carácter ético dos seus produtos – explícita ou implicitamente comparado com o carácter não ético dos produtos financeiros ocidentais que levaram à crise de 2008… –, aliado ao argumento atractivo de favorecer a inclusão social e integração dos muçulmanos nas sociedades europeis e norte-americanas. Este último argumento está perfeitamente exemplificado na entrevista dada por Jean-Paul Laramée[58], director da Secure Finance (organização que é também membro fundador do Institut Français de Finance Islamique[59]), à revista L’ Express, em resposta a uma questão que lhe foi colocada sobre as críticas feitas à finança islâmica, como pondo causa modelo laico estruturante do sistema político-jurídico francês:

[…] a laicidade não deve impedir de trabalhar com sistemas económicos que extraem os seus princípios fundadores de uma religião. Pelo contrário, como sublinhava recentemente a ministra Christine Lagarde, o sistema financeiro internacional faria bem em integrar, para se reformar e para construir um melhor sistema bancário mundial, certos princípios da finança islâmica. A sinergia entre estes dois sistemas deve igualmente permitir abandonar todo o comunitarismo […] A finança islâmica seria uma manifestação formidável de integração dos muçulmanos na nossa sociedade[60].

O argumento do seu carácter ético procura evocar, na mente secular ocidental, algo parecido a uma forma de comércio justo ou de economia alternativa e inclusiva, sobretudo quando confrontado com a notória falta de ética de várias empresas ocidentais envolvidas, directa ou indirectamente, no desencadear da crise financeira de 2008 (o banco Lehman Brothers[61] é um exemplo óbvio e bem conhecido). A questão é que a realidade económica e empresarial não parece confirmar esta apreciação tão generosa. De facto, como se pode facilmente verificar pela crise grave que afectou e afecta o Dubai[62] – um dos mercados emergentes da banca e finança islâmicas –, onde importantes operações de financiamento infaestruturas e projectos imobiliários ficaram a cargo de instituições financeiras actuando segundo princípios islâmicos, este mercado esteve longe de ficar imune[63] à crise económica e financeira global. Por outro lado, como assinala Mahmoud El-Gamal[64] professor de Economia e Finanças Islâmicas da Universidade Rice, os produtos financeiros moldados pela sharia islâmica, tendem a ter, em média, um preço bastante superior aos convencionais. Se de facto assim é, estamos menos no domínio da ética e mais de uma cosmética para tornar o produtos atractivos aos olhos dos crentes mais pios. Por outras palavras, acaba por existir o equivalente a uma taxa de juro, ainda que a esta não se chame juro e que o comprador, feitas bem as contas, até tenha de pagar um valor mais elevado…

Para além da ética, ou da cosmética, e agora sob o prisma das questões estratégicas e de segurança, há outros aspectos relevantes que merecem ser ponderados ligados à expansão da finança islâmica para as sociedades ocidentais. Sylvain Besançon,[65] primeiro num artigo no jornal suíço Le Temps, e depois, de forma mais exaustiva, em livro, relatou a existência de um plano – designado como o «Projecto» –, o qual teria sido concebido por personalidades não identificadas no mesmo, mas ligadas ao movimento islamista radical (sunita). Nesse «Projecto» estaria delineada uma ambiciosa estratégia destinada a «estabelecer o reino de Deus» sobre toda a terra. Aspecto a notar, o documento em questão – traduzido do original árabe e reproduzido no livro – foi, segundo é relatado, apreendido na residência do banqueiro islamista Youssef Nada, durante as investigações feitas à filial europeia de Lugano, na Suíça, do banco islâmico Al-Taqwa (literalmente «Temor a Alá», o qual, entretanto, mudou o nome para Nada Management Organization). Note-se também que essas investigações foram desencadeadas a pedido das autoridades norte-americanas, no âmbito do processo ligado aos atentados terroristas[66] de 11 de Setembro de 2001. Apesar das interrogações legítimas que se podem levantar sobre a sua real autoria não deixa de ser curioso olhar para as várias facetas da estratégia nele planeadas, as quais não são acções de tipo militar, nem sequer acções que possam ser qualificadas como terroristas. Se o referido livro e o documento têm algum interesse para esta análise (a real autoria do «Projecto» para este efeito é irrelevante), é, precisamente, pela chamada de atenção de outras facetas normalmente não discutidas. De facto, a leitura do livro e do documento mostra a plausibilidade de uma inteligente e paciente estratégia de islamização das sociedades ocidentais, usando meios à primeira vista inócuos e acções não percebidas como tendo quaisquer objectivos de «conquista», nem tendo por detrás uma concepção estratégica coerente e articulada. Para além disso, evidencia a existência meios financeiros[67] de vulto mobillizados para acções de islamização, ligados, directa ou indirectamente, à liquidez gerada pelo petróleo do Médio Oriente e ao zelo ideológico e proselitista de países, organizações e personalidades do mundo árabe islâmico, que olham para a Europa e Ocidente como um target prioritário da sua acção. Sugere ainda que essas acções de suporte financeiro usam a finança islâmica como canal privilegiado – o caso do banco Al-Taqwa é apenas o exemplo mais conhecido –, para terem a necessária aparência de actuação num quadro legalidade e respeitabilidade, condição sine qua non para a sua estratégia ser bem sucedida e não gerar desconfiança. Sendo assim, estamos perante uma forma hábil de islamizar o social e o político, que actua dentro dos limites da legalidade, ou explorando as suas zonas cinzentas, através da penetração em diferentes instituições, sociais, económicas, políticas, educativas, etc., e operando uma lenta mas contínua desestruturação e «subversão», a partir do seu interior.

Reflectindo sobre o que foi exposto podemos retirar uma ilacção interessante. Ao contrário do que é a percepção comum, o principal problema estratégico no médio e longo prazo com que se confrontam as sociedades ocidentais não será, muito provavelmente, o jihadismo militante que, nos casos mais radicais, recorre a actos de terror para impor a sua ideologia (contra não muçulmanos e contra muçulmanos que não se revêm nas suas concepções). O principal problema consiste no islamismo que é percebido (erradamente) como «moderado» – uma qualificação conceptualmente bastante pobre –, mas que é o rótulo mais frequentemente usado por jornalistas, políticos e académicos ocidentais, pelo simples facto de esse tipo de islamismo não recorrer à violência ao terror e até condenar actos de organizações como a Al-Qaeda e similares. A pobreza desta conceptualização ocidental não capta, de modo algum, a estratégia hábil e eficaz de islamização (não violenta), a qual poderíamos designar como uma estratégia de pequenos passos em direcção a grandes objectivos. Para ser bem sucedida não pode ser percebida, aos olhos ocidentais, como uma forma progressiva e articulada de islamização. Precisa de ser vista como provindo de um islamismo «moderado» e consistindo apenas em meras revindicações isoladas de uma cultura (o Islão), similares a outras, efectuadas no quadro das políticas multiculturais de reconhecimento – este é um aspecto crucial da questão que analisaremos em seguida. Por estas razões, a previsão pessimista de Rebecca Bynum que antevê consequências sociais, jurídicas e políticas bastante negativas associadas aos avanços da finança islâmica nas sociedades ocidentais, pode muito bem relevar-se correcta. Como esta faz notar, o «simples esforço feito pelos ocidentais de fornecerem o que é apresentado como ‘islamicamente correcto‘» e contratarem «clérigos muçulmanos e ‘consultores‘ em lei e finanças islâmicas para darem a sua aprovação», aumenta a convicção aos muçulmanos de que «podem viver em qualquer parte do mundo sob um conjunto separado, que nas suas mentes é superior, de regras económicas».[68] Por outras palavras, o que está em causa é que se as regras da sharia, em matéria comercial, forem oficialmente reconhecidas nas sociedades ocidentais para a finança islâmica, abre-se um precedente incontornável na sua legitimação. Abrindo-se este precedente, o seu reconhecimento noutras áreas do direito privado, como em matéria de família e sucessória, será praticamente uma invitabilidade, pois os argumentos que serviram numa área podem ser usados noutra. Mas o assunto nunca poderá ficar encerrado por aqui pois, para o crente muçulmano ortodoxo, sharia é a lei divina sendo um todo indivisível. Assim, por que não também o seu reconhecimento oficial noutras áreas, como por exemplo, em matéria penal?

 

  1. A miopia relativista-multiculturalista ocidental

Suponhamos por último, para efeitos de análise teórica, que todo o processo acabado de descrever ocorria estritamente dentro da tradicional cultura europeia ocidental. Este resultava de uma hipotética reivindicação cultural e religiosa do Cristianismo, o qual rejeitava a secularização imposta nos últimos séculos argumentando que esta foi efectuada de forma anti-democrática e exigia, ainda, reparação e «reconhecimento» ao poder político. Utilizando similares argumentos aos que suportam a aceitação da finança islâmica, seríamos então levados a concordar com a «autenticidade» da teologia cristã sobre o juro anterior à «opressão secularista» moderna, ou seja, ao século XVIII (ou anterior ao século XVII para os protestantes)…, a promover a criação de instituições bancárias e financeiras e produtos em estrita conformidade com o direito canónico e a Bíblia e a recriar um «capitalismo canónico». Teríamos também de concordar com a integração nos órgãos de gestão ou consultivos de bancos, seguradoras, sociedadades de locação financeira, etc., de cardeais, bispos ou padres com formação teológica e especialização em «finanças cristãs», eventualmente com os ramos de sub-especialização católica, protestante e ortodoxa, a pensar nos mercados mais exigentes e nos clientes mais pios (podemos também imaginar como o aumento das vocações e a procura de cursos de teologia cristã subiria…). Poderíamos igualmente argumentar com a oportunidade expansão do mercado da formação académica e profissional na área e desenvolver uma formação específica ao nível de MBA, em prestigiadas escolas de negócios e faculdades de economia, para responder a esta «inovadora» tendência. Poderíamos ainda qualificar esta nova banca e finança de base religiosa como sendo naturalmente mais «ética», «solidária» e promotora da «diversidade», por contraponto à ganância, usura e exploração materialista e capitalista da banca secular. Naturalmente que uma vez aceite este princípio que a cada grupo, cultura ou religião a sua banca e finanças, vistas como uma expressão da sua identidade – e «flexibilizando» o sistema político-jurídico desta forma –, este se deveria alargar a judeus, hindus, sihks, bahais, budistas, xintoístas, confucionistas, etc., sob pena de estarmos a discriminar grupos minoritários.

A simples hipótese de uma evolução virtual como a acabamos de descrever, onde cada cultura ou grupo reclamaria, e obteria, a sua própria finança – na lógica multiculturalista, mais do que o indivíduo, são a cultura e o grupo quem dispõe de direitos –, mostra o absurdo onde pode levar a actual obsessão identitária. Mas, como assinala Alan Gérad-Slama, a própria noção de identidade que suporta este género de reivindicações, pode ser vista como imbuída de uma lógica «totalitária», no sentido em que «encerra o sujeito numa pertença, numa religião, numa diferença que o totalizam» e ao qual este «deve responder a cada instante»[69]. A questão é que a obsessão identitária associada à tendência de culto do «outro»[70] não são propriamente formas de pensar afastadas do mainstream. Pelo contrário, como assinala Pierre-André Taguieff, constituem, em grande parte, o zeitgeist contemporâneo ocidental, o qual, numa descrição particularmente mordaz, foi assim desconstruído: «Este culto contemporâneo do ‘outro‘ (ou do ‘Outro‘) ou do ‘estrangeiro‘ representa uma espécie de religião civil internacional que parece desenvolver-se por si. Este ‘outrismo‘, pelo contrário, deveria espantar-nos: porquê uma tal preferência pela alteridade em todas as sua figuras? Porquê este amor obrigatório do ‘Outro‘ sob pena de ser julgado ‘abjecto‘? Por que razão a xenofilia é uma atitude moral, se ela não é mais do que o anverso de um profundo ódio de si próprio? A ‘nostrofobia», ou seja, o sociocentrismo negativo postulando que ‘os outros‘ são melhores do que ‘nós‘ não tem nada a invejar ao etnocentrismo (ou sociocentrismo positivo: ‘nós‘ somos os mais humanos entre os humanos), nem mesmo à xenofobia. A ‘bela alma‘ do século que se abre, pelo menos em terras europeias, declara publicamente o seu amor ao ‘Outro‘ […][71]».

O «outrismo» criticado por Pierre-André Taguieff revela-se na sua plenitude questão do juro e/ou usura (riba), como anteriormente tivemos oportunidade de referir. De facto, como já fizemos notar, um dos aspectos mais curiosos da actual atitude ocidental face ao capitalismo sharia é a maneira geralmente permissiva como é encarado o estigma religioso islâmico face à prática do juro. Se, nas sociedades europeias e ocidentais, similar atitude cristã é normalmente vista como uma coisa do passado, sinónimo de uma mentalidade medieval, incompatível com uma economia moderna e com o progresso – e, não invulgarmente, como motivo adicional de crítica da Igreja Católica (ou outras igrejas cristãs), acusada de ser uma forças conservadora, reaccionária e obscurantista –, no caso do Islão o julgamento de valor altera-se. Preconceitos religiosos com raízes religiosas medievais mas recriados modernamente pelos islamistas com intuitos políticos, são olhados, frequentemente até pelos mesmos críticos, de uma forma diferente. Sobretudo, encarados de uma maneira muito mais complacente e simpática, sendo qualificados como uma expressão de «autenticidade cultural», um tipo de economia e finança «ética» ou uma «alternativa» à globalização capitalista do género «comércio justo»[72]. Paradoxalmente, tudo isto ocorre quando, dentro do próprio Islão, existem sinais de se começar a encarar a prática do juro bancário de uma forma mais liberal e menos proibitiva[73], os quais, naturalmente, só podem ser desencorajados pela atitude relativista-multiculturalista ocidental. Assim, o enviesamento desta forma de pensar torna-se então desconcertante e pernicioso: similar atitude anti-juro não é boa ou má segundo um concepção universalista de ser humano, ou de valores éticos partilhados e de um genuíno progresso social que sejam comuns e extensíveis à generalidade da humanidade, mas é avaliada segundo uma concepção variável, que tem por limite a cultura, o grupo, ou a religião, naquilo que se costuma designar por incomensuralidade das culturas. Esta dualidade de critérios e de julgamentos de valor foi duramente criticada por Ernest Gellner. Este chamou à atenção para os riscos da forma de pensar relativista-multiculturalista ao evidenciar como o «absolutismo dos outros» acaba por receber «um tratamento favorável», abrindo-se desta maneira a porta não só a ideias socialmente retrógradas como a ideologias políticas totalitárias. Como Gellner explicou, no Ocidente temos «um movimento que nega a própria possibilidade de uma legitimação e autoridade extrínseca. De comum acordo, insiste particularmente nesta negação quando a afirmação contrária dessa legitimação extrínseca provém do interior das suas fileiras, de não-relativistas no seio da sua própria sociedade. Por outro lado, o pudor relativista e a expiação da culpa ex-colonial não permitem que o assunto seja devidamente enfatizado junto dos membros pertencentes a outras culturas. O absolutismo dos outros recebe um tratamento favorável e é objecto de uma grande simpatia que está muito próxima do apoio oficial»[74].

Ironizando sobre tudo isto, Gellner descreveu assim lógica que lhe está subjacente: quanto mais compreensivo o «relativista-hermeneuta» (qualificação na qual Gellner, se fosse vivo, talvez incluísse hoje também o Arcebispo de Cantuária e Lord Phillips…), se mostrar com os preconceitos de outras culturas, nos aspectos que parecem mais chocantes sob o prisma da cultura europeia e ocidental – a pré-moderna sharia parece ser um bom exemplo –, maior é o feito interpretativo. Atenta-se na crítica cáustica e perpassada de sarcasmo que este faz à actual atitude intelectual pós-moderna:

A relação entre as duas personagens deste drama é interessante. Os relativistas-hermeneutas estão, de facto, ansiosos por espalhar a sua tolerância e compreensão de culturas estranhas, universais e ecuménicas. Quanto mais estranhas, chocantes e perturbadoras forem para os filisteus, para todos aqueles considerados como os mais provincianos da sua sociedade, melhor. Muito, muito melhor, pois quanto mais chocante é o outro, mais esta compreensão evidencia a superioridade do hermeneuta iluminado no seio da sua própria sociedade. Quanto mais difícil é a compreensão, quanto mais repulsivo for o objecto destinado à bênção hermenêutica, maior é o feito, a iluminação e o conhecimento do pós-modernista interpretativo[75].

A conclusão resulta bastante óbvia. O relativismo-multiculturalista fashion na academia, nos media, no discurso político é intrinsecamente incoerente, contraditório e confuso nos seus julgamentos de valor. Pior do que isso, é politicamente perigoso pelo bloqueio intelectual a que tende a conduzir, algo que se torna demasiado evidente quando se tem de lidar com questões como as que estamos a analisar. Na realidade, não é mais do que uma ponta visível da actual hegemonia relativista-multiculturalista, de perfil académico e ideológico, a qual, paradoxalmente, se tornou uma aliada de uma outra hegemonia, a de um capitalismo extremado que procura externalizar os custos das suas acções para a sociedade. Por tudo isto, a criação de uma finança e economia de base religiosa dentro das sociedades europeias e ocidentais, não deixa de levantar sérias reservas. A questão que os seus proponentes querem iludir, é a de saber se não se está abrir a porta a um processo de lenta desestruturação das sociedades democráticas, pluralistas e seculares, em nome de uma suposta «inclusão», promoção da «diversidade cultural» e de valores «éticos» ou «segmento de mercado a satisfazer» e da captação de «investidores com liquidez». A mistura de argumentos oriundos de um capitalismo extremado e de um relativismo-multiculturalista radical não deixa de ser irónica. Sobretudo se tivermos em conta que as raízes ideológicas de cada um se situam em extremos opostos do espectro político, pelo que estariam, teoricamente, destinados a um duro confronto ideológico. Na realidade, pelo menos no caso da finança islâmica, estas duas hegemonias ideológicas – entricheiradas, uma na economia, a outra na cultura –, parecem estar a convergir, de forma bastante pragmática e calculista, contra as sociedade abertas ocidentais, moldadas por valores liberais, seculares e democráticos. O resultado pode ser, sob uma aparência de falso progresso, um verdadeiro retrocesso cultural. Vale a pena relembrar aqui a reflexão encerramento de um livro publicado por Christopher Caldwell no ano passado: «Quando uma cultura insegura, maleável e relativista encontra uma cultura que é ancorada, confiante e reforçada por doutrinas comuns, é geralmente esta que muda para seguir a última»[76]. A ilacção é clara: se horizonte de sociedade ideal for uma sociedade comunitarista de tipo pré-moderno e com algumas tonalidades medievais, a adopção da finança islâmica leva-nos para o bom caminho. Se não for, podemo-nos questionar se não está a ser criada a engrenagem que nos conduzirá, algures no futuro, a um regresso, ainda que sob outras formas, a algo similar ao estado de natureza hobbesiano da Europa pré-moderna.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes “A finança islâmica nas sociedades ocidentais”, Relações Internacionais nº 26, junho (2010): 95-111. Última revisão 5/06/2015. Ver o artigo completo com notas na sciELO

© Imagem: foto de José Pedro Teixeira Fernandes, edifício no centro financeiro de Manhattan, Nova Iorque, 2010

Federalismo: solução para a crise na União Europeia? Uma perspetiva portuguesa

Fotos dos Presidentes da Comissão Europeia, Edifício Berlaymont Bruxelas

Se a Europa política não se concretizar, o Euro desaparece. Esse desaparecimento pode assumir muitas formas e possibilitar vários paralelos. Pode ser uma explosão, uma implosão, uma morte lenta, a dissolução, a divisão. Pode levar dois, três, cinco, dez anos, e ser precedido de inúmeras remissões, dando a sensação, a cada vez, que o pior foi evitado.

Bernard-Henri LÉVY[1]

A União não tem como objetivo acabar com os Estados nacionais, mas sim manter esses Estados como democracias, Estados de Direito e Estados-Providência viáveis. Precisamos de fugir à escolha simples a que algumas pessoas querem reduzir a reflexão sobre a Europa: ou um Estado federal, ou uma zona de comércio livre.

Paul SCHEFFER[2]

      Introdução[3]

São bem conhecidas as ambições federais subjacentes ao processo de integração das Comunidades/União Europeia. O imediato pós II-Guerra Mundial até à formação das Comunidades nos anos 50 do século XX, foi particularmente rico nesses ideais de unificação. No entanto, nas suas concretizações, ficaram aquém das expectativas mais ambiciosas dos seus proponentes. Todavia, isso não significa que não tenham tido impacto no rumo da integração europeia em momentos importantes. Para além do momento fundador, tiveram-no, desde logo, no período subsequente à queda do muro de Berlim e ao final da Guerra Fria. Aí os ideais federalistas influenciaram, de forma palpável, várias soluções do dispositivo criado pelo Tratado de Maastricht, em particular a criação do Euro. Com a atual crise iniciada em 2007/2008, temos assistido, ao nível político nacional e das instituições europeias, dos think tanks e dos meios académicos, a uma nova vaga de ideias e propostas de pendor mais ou menos federalista. De facto, oriundos de vários quadrantes nacionais e políticos, surgiram frequentes apelos à necessidade de “mais Europa” e de um “governo económico europeu” para solucionar a atual crise financeira e económica.

No caso de Portugal, parece haver consenso entre as principais forças políticas no sentido de que um aumento das competências da União Europeia, nomeadamente através de um “governo económico europeu”, seria uma via adequada e necessária para solucionar a atual crise. Todavia, não é claro em que poderia consistir uma solução deste tipo, nomeadamente em termos de repartição de competências e poderes a nível nacional e europeu, nem quais as suas implicações de longo prazo para os Estados-membros – e em concreto para o Estado português –, bem como para a própria União. Assim, é objetivo desta reflexão identificar e analisar algumas das principais propostas e/ou medidas de cariz federalista que têm sido avançadas: governo económico europeu, união bancária e fiscal, obrigações europeias/eurobonds, etc. É também objetivo procurar avaliar em poderia consistir, em termos concretos, uma União Europeia mais integrada economicamente, tendo em conta que uma solução económica de tipo federal, qualquer que seja, terá sempre de ser, antes disso, uma solução política.

Para o efeito, a metodologia usada será baseada numa pesquisa bibliográfica e documental completada com um método comparativo. A análise começará por incidir numa breve pesquisa sobre modelos de federalismo político clássico (os EUA em 1787, a Suíça em 1848), bem como de federalismo económico e monetário, com destaque para o caso da unificação da Alemanha no século XIX. Em seguida será passado em revista o modelo usado na atual integração europeia, o qual pode ser qualificado com uma integration by stealth [4]. Serão depois analisadas algumas das propostas mais relevantes efetuadas nos últimos anos, por instituições europeias, políticos, think tanks e académicos, etc., relacionadas com esta temática. Por último será utilizado um método comparativo para discutir e avaliar a exequibilidade das propostas de um “upgrade federal” da União Europeia, quer face a modelos federais clássicos, quer à experiência de integração europeia já existente. A análise será completada com uma curta discussão sobre o impacto previsível de tal solução, feita a partir de uma perspetiva portuguesa.

 

  1. Os modelos clássicos de federalismo[5]

 Existe uma abundante literatura sobre o federalismo. Entre outros, os trabalhos editados por Dimitrios e Wayne[6] (2005) e o livro de Burgess[7], dão uma visão abrangente da problemática que envolve o federalismo, nomeadamente ao nível dos conceitos, teorias, estudos de caso e tendências atuais. Não vamos aqui efetuar uma revisão dessa literatura[8], mas apenas olhar, de forma breve e bastante seletiva, para alguns exemplos de federalismo clássico, quer na vertente política, quer na vertente económica. Seguindo de perto Andreas Føllesdal[9], o federalismo pode ser definido como a teoria ou defesa de princípios federais para divisão de poderes entre unidades políticas e instituições comuns. Ao contrário de um Estado unitário, a soberania em ordens políticas federais não é centralizada, assentando, pelo menos, em dois níveis. Assim, as unidades em cada nível dispõem de autoridade própria, podendo ter autogoverno em certas áreas. O cidadão, tem, portanto, obrigações políticas e direitos garantidos por dois tipos de autoridades. A divisão de poderes entre as unidades políticas e o centro pode variar. Normalmente o centro tem poderes sobre a defesa, a política externa e as finanças. As unidade políticas também podem participar na tomada de decisão nos órgãos centrais.

Tipicamente, mas não necessariamente, um Estado federal resulta da fusão de vários Estados, ou de unidades políticas que eram anteriormente autónomas. Em geral, trata-se de Estados ou unidades políticas de dimensão pequena ou média, os quais abdicaram, ou foram constrangidos a abdicar, da sua soberania plena para formarem uma nova unidade política de maior dimensão. A solução federal pode surgir também da transformação de um Estado centralizado e unitário, normalmente de grande dimensão territorial, num modelo de organização interna e repartição de poderes diferente, conferindo uma ampla autonomia às suas regiões ou províncias. Neste caso, o processo passa por uma partilha da soberania interna, passando as regiões ou províncias a ser designadas como Estados federados, ou outra designação equivalente. Trata-se daquilo que usualmente se chama uma “falsa federação” ou “federação imperfeita”[10], pois não surge da junção de unidades políticas que, no momento imediatamente anterior, eram soberanas. Um exemplo desta situação na Europa é a Alemanha federal fundada no pós-II Guerra Mundial, em 1949. Esta sucedeu à Alemanha centralizada do III Reich e à relativamente pouco descentralizada Alemanha da República de Weimar. (Houve, todavia, em momentos históricos anteriores à unificação de 1871, diversas unidades políticas soberanas). Em qualquer dos casos, o Estado federal é o único que exerce a soberania no plano externo (política externa, diplomacia e forças armadas são domínios exclusivos do Estado federal).

 Nem sempre é fácil traçar os contornos da federação face a outras figuras próximas como a confederação. Em princípio, numa confederação, as unidades políticas que a integram – Estados soberanos –, mantêm, no essencial, a sua soberania e, por princípio, podem voluntariamente abandonar a confederação. Tipicamente esta baseia-se na existência de interesses comuns que levam ao exercício conjunto da soberania em certas áreas (por exemplo, no plano externo, em matéria de defesa, e, no plano interno, em matéria comercial). Note-se, no entanto, que podem existir formas bastante variáveis de confederação, as quais, nos extremos, se aproximam ou de uma federação, ou de um mero acordo cooperação intergovernamental.

Voltando ao caso da federação, provavelmente os exemplos mais estudados de federalismo clássico são os casos dos Estados Unidos da América, em 1787, e também o da Suíça, em 1848. É importante notar, desde já, que estes dois exemplos históricos de federação ocorreram em circunstâncias muito diferentes das que se encontram na atual União Europeia. Nos EUA, o momento federador foi o referido ano de 1787 e este ocorreu num curto período de onze anos após a independência de 1776. Entre outras circunstâncias específicas da época, na altura as treze ex-colónias britânicas tinham uma população conjunta escassa, inferior a três milhões de habitantes. Aspecto relevante era o das pequenas diferenças de dimensão e heterogeneidade entre as unidades políticas que formaram a federação no ano de 1787. O Estado mais populoso – a Virgínia –, tinha 538.000 habitantes e o de menor população – Rhode Island –, 45.000, representando uma diferença de 1 para 12 nos extremos. Esta era, todavia, uma diferença excepcional, caindo de 1 para 6 entre o segundo e o penúltimo Estados, em tamanho, e baixando de 1 para 3 entre a generalidade dos restantes Estados[11]. Importante é também notar que nenhuma das treze ex-colónias tinha qualquer tradição enraizada de Estado-Nação soberano na altura em decidiram transformar a confederação em federação. No caso da Suíça, quando ocorreu a evolução para uma federação, em 1848, substituindo a medieval confederação helvética pela moderna Suíça federal, a dimensão populacional era semelhante à das treze colónias britânicas que fundaram a federação norte-americana em 1787.

Em termos de instituições políticas, quais são os traços típicos das instituições de um Estado federal, nestes dois modelos de federalismo clássico, especialmente no norte-americano? Um dos traços políticos mais identificativos é a existência de um parlamento bicamaral, moldado por uma lógica de equilíbrio entre as pequenas e as grandes unidades federadas. A primeira câmara parlamentar impede que as grandes unidade federadas, menos numerosas, sejam dominadas por uma coligação das mais pequenas. Pelo contrário, a segunda câmara parlamentar procura proteger as pequenas unidades políticas contra uma hegemonia das grandes. Todavia, importa recordar, neste federalismo clássico, a igualdade dos representantes estava facilitada uma vez que as diferenças eram relativamente reduzidas, devido à fraca dimensão de todas as unidades federadas.

Uma característica típica do modelo federal norte-americano, é, ainda, a instituição de um sistema de governo presidencial, o qual pretende funcionar como um forte elo de ligação do conjunto, tendo uma legitimidade democrática direta conferida pela escolha eleitoral efetuada pela maioria dos cidadãos da federação. No caso do modelo suíço, verifica-se que este foi também influenciado pelo modelo bicamaral norte-americano transposto para a Constituição suíça. A maior originalidade encontra-se no Conselho Federal, o órgão executivo da federação, o qual deve governar com base no consenso entre os principais partidos. Manteve-se, assim, uma tradição oriunda dos tempos da Confederação Helvética. Encontra-se também no facto de o Estado federal ter as competências reduzidas ao mínimo. No essencial, o poder legislativo está na mão dos cantões. Isto leva a uma originalidade do modelo helvético, que é a prática frequente da democracia direta, com recurso ao referendo, quer para ratificação de alterações constitucionais, quer para outras questões políticas, as quais, pela sua importância, são entendidas como devendo ter a aprovação direta do povo[12].

 Vejamos agora o federalismo na sua vertente económica, através do exemplo histórico da unificação alemã do século XIX, com ênfase na unificação monetária. Antes de analisarmos esta faceta, importa notar que a unificação alemã do século XIX não foi um processo de adesão voluntária e pacífica como o das Comunidades/União Europeia, o qual também só possível após a tragédia da II Guerra Mundial. No processo de criação do Estado alemão federal no século XIX, as manobras diplomáticas e a guerra tiveram um papel crucial. O termo realpolitik, difundido nesse período, capta o espírito da época. A formação do Reich alemão em 1871 ocorreu sob liderança conquistadora da Prússia de Guillherme I e de Otto von Bismarck aglutinando originalmente vinte e sete Estados anteriormente independentes, o maior das quais era Prússia. Tais Estados (Staaten ou Bundesstaaten), ou seja, Estados federados, passaram a ser designados por Länder durante a República de Weimar (1918-1933), designação que se mantém na atualidade

Sob o prisma económico-monetário, um aspeto interessante do modelo federal germânico do século XIX, foi o da passagem das moedas e políticas monetárias dos diferentes Estados, para um moeda e banco central único, o Reichsbank. Várias dificuldades se depararam a esta transferência da soberania monetária para uma autoridade comum. Na época, a questão da perda de receitas de senhoriagem[13] dos Estados que passaram a integrar a federação era relevante. Ocupava um lugar importante, sobretudo nos recursos dos pequenos Estados. Hoje é uma questão tendencialmente ultrapassada, excepto em casos de economias afetadas por forte inflação, onde o poder de emissão de moeda pode ser considerada uma espécie de “imposto oculto de senhoriagem”. Uma outra diferença de fundo face à economia da atualidade é a circulação do papel-moeda, na altura quase marginal em comparação com a circulação de moeda metálica, largamente dominante. As notas não tinham poder liberatório legal que hoje têm, sendo usualmente utilizadas para facilitar os pagamentos nos negócios, ou seja, eram sobretudo consideradas instrumentos de crédito.

Para além destas diferenças devidas às caraterísticas da economia da época, importa chamar a atenção para outros aspetos com maior transcendência para os tempos atuais, interrelacionados entre si. O primeiro, que não é demais voltar a lembrar, refere-se ao processo de criação de uma federação política e económica na Alemanha novecentista, o qual esteve longe de ser igualitário, ou destituído de lutas de poder. Pelo contrário, o que se verificou foi uma supremacia dos Estados do Norte, da Prússia em particular, quer no desenho da federação, quer na máquina burocrático-administrativa estadual. Um exemplo só. Friedrich List, o principal teorizador da união aduaneira e da industrialização germânica, defendia a ideia de um banco central emissor de notas para o conjunto do Zollverein. O que na realidade aconteceu foi que o governo da Prússia, desejoso de manter o controlo monetário, optou por outra via. Criou, primeiro, em 1847, um banco central exclusivamente prussiano. Só mais tarde, após a unificação política de 1871, o banco central de Prússia se tornou, em 1876, no Reichsbank, o Banco do Império, num simbolismo claro da sua prevalência sobre a federação.

O segundo é que o domínio da Prússia e dos Estados do norte originou importantes clivagens económicas e culturais-religiosas, entre protestantes e católicos. Estes últimos foram objeto de uma Kulturkampf (guerra de cultura), movida pela elite protestante e prussiana que dominava o Estado. O conhecido livro de Max Weber, a Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, publicado em 1905, reflete, de alguma forma, essas clivagens profundas da Alemanha de há um século atrás.

O terceiro é sobre o uso deste modelo federal para analogias com o presente da atual unificação económica e monetária europeia. A comparação é obscurecida quando não se considera a questão da prévia unificação política – existente na Alemanha do século XIX e inexistente na União Europeia do século XXI. Conforme realçou João Ferreira do Amaral[14], “a integração monetária alemã, ao contrário do que sucedeu na União Europeia é posterior em dois anos à unificação política (realizada em 1871, quando a união monetária alemã é de 1873). Este aspeto, que, contudo, faz toda a diferença, foi desvalorizado pelo federalismo, que continuou a crer que o papel histórico do Euro seria o de criar condições para a unificação política europeia”.

 

  1. A União Europeia e a integration by stealth

As ideias federais que influenciaram a construção das Comunidades/União Europeia podem ser simplificadamente agrupadas, do ponto de vista teórico, sob o prisma de duas abordagens: a de Jean Monnet e a de Altiero Spinnelli. A primeira, a do homem de negócios francês, Monnet, carateriza-se pelo seu caráter essencialmente pragmático e não é explicitamente federalista. Opta, sobretudo, por avanços na integração económica, com objetivo de desencadear, mais tarde ou mais cedo, um efeito spillover, ou seja, de arrastamento para esse fim. Esta levará a uma ainda maior integração económica, que necessitará de soluções e instituições políticas federais. A segunda, protagonizada principalmente pelo político italiano de esquerda, Spinnelli, é assumida e explicitamente federalista. Nesta abordagem, soluções e instituições políticas federais deveriam ser adoptadas sem esperar por efeitos de arrastamento da economia. Aliás, existe cepticismo sobre a possibilidade da estratégia de avanços na integração da economia, poder gerar, no futuro, um efeito de arrastamento impulsionador de uma união política federal.

Embora as Comunidades/União Europeia não sejam uma federação de Estados comparável a nenhuma das federações anteriormente analisadas, as ideias federalistas clássicas e outras, têm historicamente tido um grande eco nesta. Isto ocorre, claramente, no interior das instituições da União Europeia, nomeadamente nas de perfil supranacional, como a Comissão, o Parlamento e o Tribunal de Justiça. O caso de Altiero Splinelli é emblemático. Foi, sucessivamente, membro da Comissão entre 1970-1976, e, mais tarde, deputado no Parlamento Europeu, entre 1979-1986. Mas a faceta mais interessante e talvez mais desconhecida (exceptuando os meios jurídicos), da ambição federalista que impregna as instituições europeias é o do Tribunal de Justiça. Um artigo de há mais de três décadas atrás, de Eric Stein[15], sobre o papel desta instituição na criação, pela via jurisprudencial, de uma Constituição transnacional, mostrava bem essa tendência. Aliás, o caso do Direito da União Europeia, no qual o papel de fixação da interpretação e aplicação do Tribunal de Justiça tem sido historicamente enorme, é um exemplo daquilo que pode ser designado como integration by stealth[16]. Sendo uma expressão difícil de traduzir com rigor, sugere a ideia de uma integração feita nos bastidores entre elites, longe do olhar do cidadão e quase furtiva.

Não é exagero afirmar que os casos Van Gend en Loos versus Administração Fiscal Neerlandesa (1963) e Flaminio Costa versus Enel (1964), o primeiro no estabelecimento do princípio da aplicabilidade direta; o segundo na formulação do princípio, também jurisprudencial, do primado ou primazia do direito da união sobre o direito nacional, estão impregnados de um federalismo jurídico. Todavia, nenhum destes princípios resulta, de forma direta e inequívoca, do texto dos Tratados Europeus. Esta formulação jurisprudencial tornou-se dominante fora do olhar da opinião pública, pela sua aceitação generalizada pela doutrina e pelos juízes nacionais. Todavia, não afasta totalmente as possibilidades de contestação. Em última análise, a questão da primazia só ficaria encerrada com uma disposição como aquela prevista no abandonado projeto de Tratado Constitucional Europeu. Figurava explicitamente no seu artigo I-6º o seguinte: “A Constituição e o direito adoptado pelas instituições da União, no exercício das competência que lhe são atribuídas, têm primazia sobre o direito dos Estados-Membros”. Quer dizer, se estive tivesse sido aprovado, ficava estabelecido no texto, de forma inequívoca, o primado do direito originário (Tratados) e do direito derivado (atos jurídicos das instituições) sobre qualquer norma nacional, incluindo a constituição. Na realidade, esta disposição foi das escassas que, sob uma ou outra forma, não passou para os atuais Tratados da União Europeia (TUE) e Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), na redação dada pelo Tratado de Lisboa. A razão é, muito provavelmente, política. Sugere a estratégia de integração fora do olhar da opinião pública que tem sido seguida. Um disposição como a referida – clara na sua interpretação para qualquer leigo em questões de Direito da União Europeia –, teria implicações políticas. O comum dos cidadãos passaria a “descobrir” que o Direito da União prevalece sobre qualquer norma nacional, mesmo uma norma constitucional. Se, nalguns Estados-membros, não seria problemático, noutros, com uma opinião pública mais eurocética, ou mais escrutinadora dos processos europeus, seria, muito provavelmente, difícil de aceitar por razões políticas. A opção foi continuar com a integração fora do olhar da opinião pública, como até aí. Ao não colocar tal disposição nos Tratados evitou-se um problema político delicado aos governos. Com este subterfúgio, puderam, assim, tornear a espinhosa questão de explicar aos eleitores nacionais a primazia absoluta sobre o direito nacional. Mas, ao contrário do que o cidadão leigo poderia pensar, a solução obtida pela via jurisprudencial é, no essencial, bastante similar. Tem a vantagem de funcionar em “circuito fechado” e de ficar reservada a técnicos usualmente imbuídos de uma ideologia europeísta-federalista. Veja-se o clarificador artigo de Majone[17] sobre esta peculiar cultura política europeia e o receio do voto do cidadão em referendos.

 

  1. O uso e abuso da integração monetária

Para além do federalismo jurídico e da interpretação jurisprudencial dos Tratados, a integração monetária é um outro caso interessante de influência das ideias federalistas. Esta vertente está essencialmente ligada à criação da União Económica e Monetária (UEM) iniciada com o Plano Delors em 1988. Culminou com a adoção do Euro como moeda física, a 1 de janeiro de 2002. No âmbito do processo de criação da UEM, ficou estabelecido que os Estados-membros que pretendiam participar neste processo teriam de cumprir um conjunto de regras, usualmente designadas por critérios de convergência nominal. O objetivo era assegurar que estes reuniam condições para participar no Euro, sem por em causa o seu bom funcionamento. Para o efeito, entre outros requisitos que foi necessário cumprir – nomeadamente ao nível da liberalização total dos movimentos de capitais e da independência dos bancos centrais face aos governos –, foram definidas as seguintes regras: défice orçamental não superior a 3% do PIB; dívida pública acumulada não superior a 60% do PIB; inflação não superior à média dos três países com taxas mais baixas, mais 1,5%; taxas de juro de longo prazo não superiores à média dos três países com taxas mais baixas, mais 2,0%; taxa de câmbio dentro dos intervalos de valorização/desvalorização admitidos pelo Sistema Monetário Europeu (SME).

Em teoria essas eram condições sine qua non para adotar o Euro. A realidade foi diferente[18]. Prevaleceu uma interpretação flexível dessas metas económicas. Por exemplo, ao nível da dívida pública acumulada, o critério do valor máximo de 60% do PIB, foi substituído por uma interpretação benevolente: bastava estar razoavelmente próximo desse valor e ter uma trajetória de descida do peso da dívida pública acumulada. Quanto à taxa de câmbio, em princípio o critério era a permanência continua, nos anos anteriores, na banda estreita SME, com a máxima desvalorização/revalorização cambial possível de 2,25%. Todavia, também este foi objeto de uma avaliação mais flexível (variação até 15%). Quanto ao critério de o défice não poder superar 3% do PIB, embora a generalidade dos países o cumprisse, ou estivesse próxima de o cumprir, as instituições europeias não se preocuparam (ou foram impedidas de se preocupar…), com a maneira como esse valor foi atingido estatisticamente. Aparentemente, nessa altura, a Comissão Europeia e o Eurostat não viram qualquer problema de falta de rigor estatístico, nem de formas de apresentação da realidade das contas públicas nacionais duvidosas. Todavia, o recurso sistemático a receitas extraordinárias, de privatizações, de fundos de pensões, etc., a desorçamentação de despesas e o uso duvidoso de produtos financeiros derivados – gerando, no imediato, a ilusão de equilíbrio orçamental e controlo da dívida pública –, foram expedientes usados livremente por diversos Estados, como hoje é bem conhecido.

Isto explica, pelo menos em parte, como os países do Club Med[19] puderam fazer parte do Euro desde o início. Na época, não era difícil encontrar literatura especializada que alertava para os riscos de economias frágeis, com crónicas dificuldades nas contas públicas, adotarem uma moeda comum forte. A própria ideia de uma moeda comum na União Europeia foi questionada por diversos economistas, sobretudo norte-americanos. Os casos mais conhecidos foram os de Paul Krugman e Milton Friedman, economistas com visões da economia e de quadrantes políticos muito divergentes. Ambos, embora sob perspetivas substancialmente distintas (Krugman sob um perspetiva keynesiana e Friedman sob uma perspetiva neoliberal), consideravam não se encontrarem reunidos os requisitos para uma zona monetária ótima[20] na União. Quer dizer, faltavam, à partida, requisitos como a mobilidade plena da mão-de-obra, a homogeneidade das preferências, um orçamento comum adequado, etc., para que as vantagens de uma moeda comum superassem, claramente, as suas desvantagens. Face ao menosprezar generalizado dos europeus face às dúvidas lançadas sobre o sucesso do Euro, Krugman fala agora de uma “vingança da teoria da zona monetária ótima”[21].

Como explicar a deficiente arquitetura do Euro e a ineficácia das regras para a entrada e permanência neste? Inépcia técnica e/ou política? Excesso de otimismo quanto à criação futura de uma zona monetária ótima? Uso do Euro como forma de alavancagem para uma união política de tipo federal? Qualquer análise atenta mostra-nos como o projeto de criação do Euro contém, desde o início, importantes fragilidades. A mais óbvia já foi apontada, consistindo na não verificação dos requisitos de uma zona monetária ótima. Tal debilidade intrínseca, só por si, já deveria ter aconselhado mais prudência no processo, configurando-o de outra forma, ou, se isso não fosse possível, retardando ou até afastando a sua adoção. Amplificando o problema, os critérios de convergência traçados foram frequentemente iludidos, sobretudo pelos países do Club Med/PIIGS[22]. Será que nos decisores europeus não havia consciência destes riscos? Provavelmente havia, mas, por um conjunto de entraves intelectuais e políticos ligados à forma como a construção europeia é usualmente vista, estes foram subestimados.

Conhecendo bem a resistência da população à ideia federal, a elite dirigente europeia tem procurado ultrapassá-la, usando, entre outras estratégias, a integração económica com a dupla finalidade de ser também um instrumento para a união política. Assim, os sucessivos avanços na integração económica – união aduaneira, mercado comum, Euro, etc. – serviriam também, como preconizava Jean Monnet, para desencadear um efeito de alastramento para a unificação política – na diplomacia, na defesa comum, num orçamento e fiscalidade de tipo federal, etc. Para João Ferreira do Amaral, esta terá sido mesmo uma das principais motivações subjacentes à criação do Euro. Refere este que os adeptos do federalismo europeu “confiavam que a necessidade de fazer funcionar a união monetária impusesse a criação de instituições federais (por exemplo, um banco central único e um orçamento europeu com dimensão suficiente) […]. Por isso, mal a moeda única foi criada, apostaram, para esse efeito, na aprovação de uma constituição europeia de pendor federal, elaborada por uma convenção à semelhança de alguns casos históricos de criação de um Estado federal” [23].

Quer dizer, o ambiente intelectual de que a “Europa não pode parar” – na expressão usual do jargão político-mediático –, associado ao pré-conceito de que “mais Europa” é sempre bom, foram fatores determinantes na decisão de criação do Euro. Aliás, só com esse ambiente intelectual como pano de fundo, obstaculizando o pensamento crítico no debate político, se pode entender a coligação, ideologicamente contra natura, que suportou a sua criação. “Na realidade, a moeda única só se realizou porque foi possível, na década de 1990, uma convergência (à partida extraordinariamente improvável) entre as concepções federalistas e as concepções neoliberais, então em ascensão nos meios ligados aos negócios e às entidades formuladoras da política económica.”[24] A perspetiva, implícita, de com a moeda única se chegar à união política, acabou por seduzir a esquerda política europeia, onde existem importantes simpatias pró-federais. Assim, esta acabou por aceitar a “criação de instituições da união monetária em que se refletem as principais concepções neoliberais”. O problema que daí resultou foi que, com esta configuração do Euro, todo o ajustamento macroeconómico tende a ser “feito à custa do factor trabalho (através do aumento do desemprego ou através da redução salarial)”. Além disso, “põe em causa a sobrevivência do chamado modelo social europeu, uma possibilidade bem-vinda pelo neoliberalismo, que considera que o modelo social europeu não é compatível com a globalização”.

Embora concordando com o diagnóstico de falhanço do atual modelo de governação económica europeia, uma outra interpretação e, sobretudo, uma outra solução, é naturalmente avançada pelos proponentes de uma solução federal para União Europeia. É este o caso de Jean-François Jamet[25], que defende ser um governo económico europeu, assente num federalismo orçamental, a melhor saída para atual crise na Zona Euro. Quanto à debilidade da atual arquitetura económica e monetária europeia, este descreve-a assim Jamet: “A crise revelou as fraquezas deste modelo, quer do ponto de vista da sua eficácia, quer do ponto de vista da sua legitimidade. Face à recessão acrescida dos riscos de insolvência bancária e soberanos, foi o Banco Central Europeu (BCE) que teve o papel de estabilizador. Mas para isso teve de ir além do seu mandato, por exemplo comprando parte da dívida pública dos Estados em dificuldade, nomeadamente para parar a especulação sobre a dívida italiana.”[26] Para além disso, as “regras orçamentais e as políticas de coordenação económica dos Estados-membros perderam credibilidade, seja porque não foram aplicadas, como, por exemplo, as regras orçamentais do Pacto de Estabilidade e Crescimento, seja porque as ferramentas institucionais não estavam adaptadas a uma situação de crise (o orçamento da União é insuficiente, para, só por si, ter um efeito de relançamento significativo e as decisões em matéria orçamental e fiscal supõem a unanimidade dos Estados-membros e, por isso, longas negociações diplomáticas), seja porque apenas enunciaram objetivos sem definir uma obrigação de meios”, como na Estratégia de Lisboa. Para Jamet, a incapacidade de solucionar esta crise, deve-se, essencialmente, ao que qualificou como sendo a parte mais débil e “descentralizada da política económica europeia”. Esta adicionou uma “incerteza política e mesmo um sentimento de incerteza e impotência económica”, tornado impossível a “elaboração de uma estratégia de urgência comum clara face à crise”. Conclui Jamet que a “Europa não soube falar a uma só voz, nem estender o nível de solidariedade e de controlo pertinente entre os Estados-membros”.

 

  1. A alternativa do governo económico europeu/federalismo económico

Para além dos aspetos monetários, vejamos em que consiste o atual modelo de governação económica no seu conjunto. Como é de antever, este resulta, entre outras coisas, da já referida preferência europeia pela integration by stealth, com as consequências que daí decorrem, incluindo as da sua questionável legitimidade democrática. Mas, antes de qualquer análise crítica, vamos passar em revista os seus traços fundamentais. Para o efeito, seguimos também de perto a apresentação feita por Jamet[27]. Segundo este, a atual governação económica europeia “tem-se caracterizado por um compromisso entre a gestão em comum de um número limitado de competências, um poder de regulação sob a forma de regras comuns negociadas e um convite a coordenar as políticas assentes em decisões nacionais”. Jamet aponta três áreas nas quais este modelo se desdobra e que descrevermos em seguida nos seus traços principais.

Uma primeira área são as competências centralizadas ao nível europeu, sendo estas tipicamente assuntos “técnicos” que ficam a cargo de uma instituição supranacional de cariz independente. É o caso do BCE na política monetária; do Tribunal de Justiça no controlo da aplicação das normas jurídicas da União; da Comissão em áreas ligadas à união aduaneira e ao mercado comum (por exemplo, a política comercial ou a política de concorrência), em “políticas redistributivas” como a política de coesão económica e social, ou em políticas marcadas por preocupações de autoabastecimento, segurança alimentar e nível de vida da população agrícola (a política agrícola comum). Estas duas últimas políticas, absorvem o grosso do orçamento da União (mais de 80% da despesa total), o qual representa cerca de 1% do PIB do conjunto da UE28. Esta é a área por excelência da governação tecnocrática europeia, onde se procura “despolitizar” os assuntos de governo, levada extremo no caso do BCE, com o seu estatuto de total independência face ao poder democrático dos governos nacionais.

Uma segunda área da governação económica europeia assenta num conjunto regras negociadas entre os Estados-membros com o objetivo de assegurar a coerência das políticas nacionais com as mesmas. Aqui inserem-se as já referidas regras em matéria orçamental para a Zona Euro, cujo intuito era o de evitar que a moeda comum fosse posta em causa por políticas muito divergentes a nível nacional. No implícito, estava também a ideia de uma solidariedade acrescida em caso de dificuldades orçamentais. Note-se que não se trata de regras jurídicas sujeitas a um controlo jurisdicional feito pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, mas disposições de natureza política, sujeitas apenas um controlo político efetuado no âmbito do Conselho, pelo conjunto dos Estados-membros da União. Associada a esta encontra-se aquilo que pode ser considerado uma terceira área da governação europeia de “regulação fraca”: a coordenação das políticas nacionais através de objetivos não vinculativos em matéria de competitividade e emprego (por exemplo, atingir um nível de despesas de I&D de cerca de 3% do PIB, como previa a Estratégia de Lisboa).

Sendo este o modelo de governação económica existente na altura do desencadear da crise de 2007/2008, e sendo bastante consensual que não permitiu responder a uma crise desta dimensão e gravidade, coloca-se a questão das alternativas. As principais ideias que têm sido propostas são o avanço para uma união bancária e fiscal, a emissão de obrigações europeias/eurobonds, e, em termos mais abrangentes, a criação e um governo económico europeu. Sendo esta última a proposta mais ambiciosa e com mais impacto, vamos concentrar aí a análise. Antes de podermos avaliar os seu méritos ou deméritos, importa clarificar o que se deve entender por governo económico europeu. Um problema prévio reside no facto de o conceito ser de uso bastante variável e de contornos fluídos. Originalmente, o termo terá sido usado por François Mitterrand por volta de 1990, após a apresentação do Plano Delors, quando se iniciava a primeira fase do processo de criação do Euro. Na altura, era sobretudo uma espécie de slogan da política francesa para a União Europeia. Entretanto, ressurgiu no contexto da atual crise. Como assinalou Jamet[28], uma década volvida a chanceler alemã, Angela Merkel, passou a usá-lo agora moldado pela visão do seu governo quanto à forma de solucionar a crise nível europeu. O governo económico europeu passou, assim, a significar essencialmente “um reforço das regras de disciplina orçamental associado à colocação em prática de mecanismos de controlo mais automáticos”. Esta perspetiva inspirou, em larga medida, um conjunto de diretivas e regulamentos propostos pela Comissão e votados pelo Parlamento e Conselho. Entre outras, inclui-se aqui a criação do semestre europeu[29], o qual permite à Comissão e ao Conselho emitir opiniões sobre os projetos de orçamento nacionais. A ideia de governo económico europeu teve ainda outros desenvolvimentos. No verão de 2011, a Alemanha e a França juntaram uma dimensão claramente política ao debate. Propuseram a criação de “um Conselho de Chefes de Estado e de Governo da Zona Euro, o qual se reuniria duas vezes por ano, tendo à cabeça uma presidência estável por dois anos e meio”. Entrando também no debate, o ex-Presidente do BCE, Jean-Claude Trichet, referiu ser desejável um “governo confederal com um ministro das finanças confederal, que poderia assegurar o conjunto da governação na Zona Euro e impor esta ou aquela decisão”. Como seria concretizada esta ideia de governo económico europeu? Foram avançadas várias hipóteses. Uma delas seria a presidência da Comissão e do Conselho Europeu ser comum, sendo assegurada pela mesma personalidade. Outra consistiria no comissário europeu para os assuntos económicos e financeiros presidir também às reuniões do Conselho (de ministros) sobre economia e finanças (ECOFIN). O objetivo seria a União “exprimir-se a uma só voz nas instituições internacionais, como já faz na OMC através do comissário do comércio externo”.

Para Jamet, tais esquissos do que deveria ser um governo económico europeu têm dois defeitos principais: “não associar os parlamentos nacionais e não dotar este governo de meios de intervenção orçamental próprios”. Ainda segundo este, o primeiro defeito poderia ser ultrapassado se os “parlamentos nacionais e o Parlamento Europeu fossem mais associados ao semestre europeu e às decisões europeias em matéria orçamental”, por exemplo, através da “criação de uma conferência interparlamentar, associando representantes dos parlamentos nacionais e do Parlamento Europeu”, como propôs o conhecido deputado europeu pró-federalista, Alain Lamassoure[30]. Quanto ao segundo defeito, a solução passaria pelo “aumento das capacidades orçamentais europeias, que poderia tomar diversas formas: financiamento de projetos de investimento através de empréstimos europeus (project bonds), criação de um tesouro europeu e colocação em comum de uma parte da dívida dos Estados-membros (eurobonds) – provavelmente com um sistema de bonus-malus para recompensar os Estados mais virtuosos em matéria orçamental –, aumento do orçamento europeu, ou aumento das capacidades de empréstimo do Banco Europeu de Investimentos”. Apesar de a encarar favoravelmente, Jamet reconhece a grande dificuldade de por em prática esta solução. Nas suas próprias palavras, é na “frente do aumento das capacidades orçamentais europeias que os progressos serão, técnica e politicamente, mais difíceis de aceitar”. Faz todavia notar que a crise está, lentamente, a empurrar a União para “uma federalização crescente da política económica”, o que coloca problemas na medida em que isso está a ser feito “sem desenho prévio e sem legitimação política suficiente”.

 

  1. Conclusão: os riscos de uma solução de federalismo económico

Vamos agora analisar o mérito de uma solução de federalismo económico europeu do género das anteriormente descritas, a partir de uma perspetiva portuguesa. Para além do problema da legitimidade democrática que, por simplificação, não analisamos aqui, nela identificam-se, à partida, dois grandes riscos. O primeiro risco é intrinsecamente português e resulta da incapacidade mostrada pela economia de crescer significativamente na última década e meia. Recuando mais no tempo, importa lembrar que, na altura da adesão às Comunidades Europeias, em 1 de janeiro de 1986, a moeda portuguesa – o escudo –, tal como a peseta espanhola, ficaram fora do mecanismo cambial. Não foi por opção política de preservação de soberania cambial, mas pela fragilidade de ambas as economias. A adesão ao SME, efetuada em simultâneo com a da Espanha, só se concretizou mais tarde, em finais de 1990, iniciando-se na banda larga do sistema, mais flexível em termos de flutuações cambiais. No entanto, em Portugal, desde o arranque da UEM, traçou como objetivo participar no processo de criação do Euro. Os sucessivos governos portugueses configuraram-no como um “desígnio nacional”, acima das divisões políticas internas. O corolário desse esforço foi a economia portuguesa ter conseguido cumprir – pelo menos na aparência estatística –, a generalidade dos critérios de convergência nominal requeridos. Em parte por mérito próprio, em parte porque prevaleceram as já referidas interpretações flexíveis dos critérios de convergência nominal, Portugal foi membro fundador do Euro em 1999/2002. Ironicamente esse sucesso teve, e, provavelmente, vai continua a ter, um preço elevado do qual a sociedade portuguesa só agora começa a ter uma percepção clara.

Antes da crise de 2007/2008, o desempenho da economia portuguesa já era notoriamente fraco. As taxas de crescimento do PIB foram, em toda a última década e meia, abaixo da média europeia. Coincidência, ou não, a quebra dos ritmos de crescimento data de finais dos anos noventa, quando foram fixadas as taxas de câmbio no âmbito da 3ª fase da UEM. Em vez de convergir, o país afastou-se da média europeia do PIB per capita – o principal indicador do nível de vida das populações. A partir de 2002, coincidindo, aqui, com a introdução física do Euro, o problema do incumprimento do défice orçamental abaixo dos 3% tornou-se um problema crónico. Com o desencadear da crise económico-financeira de 2007/2008 a situação agravou-se drasticamente. O culminar foi a necessidade do Estado português ter de recorrer a um pedido de empréstimo internacional de 78 mil milhões de Euros em 2011.

 O segundo risco prende-se com um tema que oficialmente não existe na retórica europeia: as relações de poder dentro da União. Admitindo que o aprofundamento da integração europeia é, em si mesmo, benéfico, importa pensar como poderia ser desenhada e implementada uma solução federalizante. A essência da questão está, por isso, na configuração concreta. Vejamos o caso do governo económico europeu que é a ideia mais ambicioso e abrangente. Para além de não existir uma proposta oficial que delimite claramente a discussão, esta induz significados e atrativos diferentes, desde logo para os países do sul e do norte da União. Em países como Portugal (Grécia, Espanha, etc.), tradicionais beneficiários líquidos do orçamento europeu, evoca, na mente de políticos e cidadãos, transferências financeiras. Em quase trinta anos de integração europeia, Portugal nunca se viu na posição de contribuinte líquido, nem é crível, num futuro antecipável, que alguma vez ocupe essa posição. Por outras palavras, quando se fala neste tema, está implícita a ideia de uma União de transferências. Também lhe está subjacente a ideia de um acesso às condições de financiamento nos mercados internacionais em condições similares às da Alemanha, Holanda ou da França, por exemplo, através da emissão de obrigações europeias (eurobonds). Vista a questão sob o prisma dos países do núcleo duro da zona Euro (Alemanha mas também, em graus variáveis Áustria, Finlândia, Holanda, Luxemburgo e em parte da França), tradicionais contribuintes líquidos, um governo económico europeu tem outras tonalidades. Embora a linguagem usada seja similar, tem implícito um outro desenho concreto que não é o que alimenta o imaginário europeísta de solidariedade financeira dos países do sul. É, sobretudo, uma lógica de disciplina orçamental e das contas públicas que evoca agora essa ideia, seguindo um padrão próximo do já usado nesses países, desde logo no caso da Alemanha, como se pode ver pelas ideias já avançadas por Angela Merkel.

Um federalismo económico e orçamental não é, necessariamente, sinónimo de um reforço significativo das transferências financeiras da União Europeia, nem da possibilidade automática de emissão de obrigações europeias, as quais reduziriam os custos de financiamento nos mercados aos países do sul. Pode acabar por traduzir-se, como traço mais importante, na adopção compulsiva de políticas económicas por todos os membros da Zona Euro. Ou seja, embora trazendo, de facto, maior integração económica e política europeia, pode tornar-se num instrumento da visão dominante de um núcleo restrito de “potências diretoras”. Se nos lembrarmos dos exemplos do federalismo clássico atrás referidos, vemos um problema fundamental em qualquer aumento significativo da integração devido à caraterísticas da atual UE28. O aparecimento de um “momento hamiltoniano”[31] é altamente improvável no atual contexto. Há diferenças de dimensão enormes das unidades políticas acentuadas por uma substancial heterogeneidade económica. No extremo, em termos demográficos, estas oscilam entre os 81,5 milhões da Alemanha e os cerca de 0,5 milhões de Malta o que, dá uma disparidade populacional, nos extremos, de 163 vezes. Não é um caso excepcional. Nas unidades políticas seguintes, continuamos a encontrar enormes disparidades: entre a França com 64 milhões e o Luxemburgo com 0,6 milhões, a disparidade populacional é superior a 106 vezes. Entre a Itália, com 61 milhões de habitantes e Chipre com 0,75 milhões, a disparidade populacional é de mais de 81. Mesmo comparando as grandes unidades políticas da União, como a Alemanha e a França, com outras que poderão ser consideradas de média dimensão, como Portugal ou a República Checa (países com uma população similar em dimensão), as diferenças são de 7,7 vezes no caso da Alemanha e de 6 vezes da França.

A questão óbvia e incómoda é esta: será possível, face a esta (enorme) heterogeneidade das unidades políticas que compõem a União, evoluir para uma qualquer forma de federalismo baseado numa lógica essencialmente paritária e solidária, onde as grandes unidades políticas aceitariam comprimir o seu poder e partilhariam mais riqueza, através de mecanismos orçamentais europeus? A resposta é que é muito pouco plausível, pelo menos nas atuais circunstâncias, essa ocorrência. As unidades políticas mais pequenas, ou médias (Chipre, Irlanda, Grécia, Portugal, etc.), estão claramente fragilizadas pela crise e pelo seu (sobre)endividamento. Em termos de poder negocial necessário para obter um bom acordo sobre um governo económico europeu, ou outras soluções de federalismo económico, esta é claramente uma má altura. A enorme dependência de financiamento externo reduz quase a zero o já baixo poder de negociação e de influência que Portugal tem, mesmo em condições normais, no rumo das questões europeias.

Por tudo o que foi apontado, no atual contexto, existe o risco, que não é meramente teórico, de uma solução de federalismo económico e orçamental, se mostrar, na prática, próxima da lógica de um “diretório de potências”. Na realidade, existem sinais de que não é uma União mais paritária e de mais solidariedade que está emergir. Sob uma aparência de soluções europeístas-federalista, há o risco de surgir uma outra União. Nesta, um núcleo restrito de Estados, sob a fachada de um governo económico europeu ou outra, pode obter poderes institucionais e legitimidade para definir uma orientação compulsiva geral. Impõe-se, por isso, uma profunda discussão sobre tal opção política e não insistir em clichés vazios como a necessidade de “mais Europa”.

 

NOTAS

[1] LÉVI, Bernard-Henri – “Crise da zona euro: o federalismo ou a morte” in Le Point, 28 de setembro 2012. (Artigo traduzido para português pela Presseurop, acessível em http://www.presseurop.eu/pt/content/article/2777771-o-federalismo-ou-morte).

[2] SCHEFFER, Paul (2013), “Federalismo: por favor, nada de Estados Unidos da Europa” in NRC Handelsblad, 5 de dezembro 2013. (Artigo traduzido para português pela Presseurop, acessível em http://www.presseurop.eu/pt/content/article/4380781-por-favor-nada-de-estados-unidos-da-europa).

[3] A ortografia usada é a do novo acordo ortográfico. As citações e notas bibliográficas foram também adaptadas a essa ortografia. O texto corresponde essencialmente à comunicação efetuada no âmbito da conferência internacional: “40 Anos Após o 25 de Abril. A Crise das Democracias Liberais”, que decorreu no ISCTE-IUL, em Lisboa, entre 8 e 10 de maio de 2014. O Autor agradece os comentários e sugestões da arbitragem científica, os quais contribuíram para a valorização da versão final do artigo.

[4] Ver MAJONE, Giandomenico – Dilemmas of European Integration. The Ambiguities & Pitfalls of Integration by Stealth, Oxford, Oxford University Press, 2005; MAJONE, Giandomenico – “The ‘Referendum Threat‘, the Rationally Ignorant Voter, and the Political Culture of the EU” in RECON Online Working Paper 2009/04, Acessível em http://www.reconproject.eu/projectweb/portalproject/RECONWorkingPapers2009.html.

[5] Utilizamos aqui análises sobre o federalismo, numa vertente político e/ou económica, já efetuada por nós anteriormente. Ver FERNANDES, José Pedro Teixeira – Elementos de Economia Política Internacional, 2.ª ed., Coimbra, Almedina; FERNANDES, José Pedro Teixeira – A Europa em Crise, Porto, QuidNovi, 2012.

[6] DIMITRIOS, Kamis e WAYNE, Norman (eds.), Theories of Federalism: A Reader, Nova Iorque, Palgrave Macmillan, 2005.

[7] BURGESS, Michael – Comparative Federalism. Theory and Practice, Londres-Nova Iorque, Routledge, 2006.

[8] Há um importante acervo de literatura sobre o federalismo que aqui não analisamos diretamente dado exorbitar do limitado propósito deste artigo. Entre outros, destacamos os trabalhos Paul REUTER e Jean COMBACAU, Institutions et Relations Internationales, Paris, P.U.F., 1980, relevante, por exemplo, para a distinção conceptual entre federalismo interno e federalismo internacional. Ainda a nível conceptual, a obra coletiva sob a direção de Denis de ROUGEMONT – Dictionnaire international du fédéralisme, Bruxelles, Bruylant, 1994, é também uma mais-valia numa análise conceptual aprofundada. Por sua vez, o artigo de John PINDER sobre o conceito de neofederalismo, intitulado “European Community and Nation State: A Case for a Neo-federalism?” in International Affairs, vol. 62 (1), Winter, 1985-1986, pp. 41-54, é relevante para a discussão da atual experiência de integração europeia.

[9] FØLLESDAL, Andreas – “Federalism” in Stanford Encyclopedia of Philosophy, acessível em http://plato.stanford.edu/entries/federalism/

[10] ZIPPELIUS, Reinhold – Teoria Geral do Estado, trad. port, 3.ª ed. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.1997.

[11] DUVERGER, Maurice A Europa dos Cidadãos, trad. port, Porto, Edições Asa. 1994, p. 47.

[12] DUVERGER, Maurice idem, pp. 46-47.

[13] Como explica Armand-Denis SCHOR Euro O que é a moeda única?, trad. port., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1996, p. 22, a senhoriagem refere-se à “diferença que existe entre o valor de uma moeda e o seu custo de produção. No passado, as casas da moeda transformavam os lingotes em moedas. O peso do metal em forma de moedas era inferior ao dos lingotes. A diferença cobria o custo de produção e o direito exigido pelo príncipe. Por extensão, qualquer vantagem ligada ao poder monetário pode chamar-se uma taxa de senhoriagem.”

[14] AMARAL, João Ferreira “Euro: um futuro incerto” in Relações Internacionais nº 27, 2010, p. 98.

[15] STEIN, Eric “Lawyers, Judges and the Making of a Transnational Constitution” in The American Journal of International Law, Vol. 75, nº 1, 1981, pp. 1-27.

[16] MAJONE, Giandomenico – idem.

[17] MAJONE, Giandomenico – “The ‘Referendum Threat‘, the Rationally Ignorant Voter, and the Political Culture of the EU” in RECON Online Working Paper 2009/04.

[18] Sobre este aspeto, seguimos também de perto a análise efetuada em anteriores trabalhos. Ver FERNANDES, José Pedro Teixeira – idem.

[19] “Club Med” era a expressão pejorativa tipicamente usada na década de noventa para designar as economias mais frágeis e indisciplinadas do Sul da Europa, ou seja, Portugal, Espanha e Grécia, bem como a Itália.

[20] Sob o conceito de zona monetária ótima ver, entre outros, SCHOR, Armand-Denis – idem e AMARAL, João Ferreira – idem.

[21] Paul KRUGMAN – “Revenge of the Optimum Currency Area” in The New York Times (The Opinion pages, 24 de junho 2012), Acessível em http://krugman.blogs.nytimes.com/2012/06/24/revenge-of-the-optimum-currency-area/

[22] PIIGS do acrónimo pejorativo em inglês (Portugal, Ireland, Italy, Greece, Spain).

[23] AMARAL, João Ferreira – ibidem, pp. 97-98.

[24] AMARAL, João Ferreira – ibidem, p. 98.

[25] JAMET, Jean-François – L’Europe peut-elle se passer d’un gouvernement économique?, 2.ª ed., Paris, La Documentation Française, 2012; JAMET, Jean-François – “Gouvernement économique européen: la question n’est plus quand mais comment” in Question d’ Europe nº 216, 10 de outubro 2011, Acessível em http://www.robert-schuman.eu/fr/doc/questions-d-europe/qe-216-fr.pdf

[26] JAMET, Jean-François – “Gouvernement économique européen: la question n’est plus quand mais comment” in Question d’ Europe nº 216, 10 de outubro 2011.

[27] JAMET, Jean-François – idem.

[28] JAMET, Jean-François – ibidem.

[29] O semestre europeu é “um ciclo de coordenação das políticas económicas e orçamentais na União Europeia”, centrado primeiros seis meses de cada ano. A sua finalidade é que, durante esses primeiros meses do ano, os Estados-membros “procedem ao alinhamento das políticas orçamentais e económicas nacionais pelos objetivos e regras acordados a nível da UE”. Cfr. Conselho da União Europeia, O que é o Semestre Europeu?, Acessível em http://www.consilium.europa.eu/special-reports/european-semester?lang=pt.

[30] Sobre as posições federalistas de Alain LAMASSOURE ver Union of European Federalists, Alain Lamassoure, a case for an optimistic federalism, 12 de julho 2011, Acessível em http://www.federalists.eu/uef/news/alain-lamassoure-a-case-for-an-optimistic-federalism/.

[31] Entre nós e por analogia com o processo federal dos EUA em 1787, Luís LOBO-FERNANDES – “Pragmatismo e reforma numa UE mais coesa: a propósito da união bancária”, Occasional Paper nº 58, Lisboa, IPRI, sustenta a necessidade de um “momento hamiltoniano” para a UE. “Temos defendido que a União Europeia exige uma solução similar àquela que Hamilton propôs, e que tivemos ensejo de evidenciar em termos da necessidade de um momento hamiltoniano. A nova autoridade federal, então criada, assumiu as dívidas dos Estados da ex-Confederação, emitiu títulos de dívida pública suportados por impostos diretos, e imprimiu uma moeda própria. O resultado prático ajudou a transformar a jovem nação numa potência económica”. Pelas razões apontadas no texto, embora sedutora intelectualmente, parece-nos uma analogia inverosímil na atual situação europeia.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, “Federalismo: solução para a crise na União Europeia? Uma perspetiva portuguesa” artigo originalmente publicado in Relações Internacionais nº 44, Dezembro (2014): 75-91

domínio público Imagem: fotos (domínio público / Wikipedia) dos Presidentes da Comissão Europeia no edifício Berlaymont Bruxelas (versão a preto e branco do autor)

Iraque: “uma linha na areia” a desfazer-se?

A Line in the Sand

 

1. Os actuais acontecimentos no Iraque fazem-nos questionar se, com a violenta luta fratricida desencadeada nas últimas semanas, o Estado não estará à beira da desagregação e colapso. É também inevitável recordarmos o passado conturbado da região, seja o mais recente – a invasão norte-americana de 2003 que depôs Saddam Hussein –, seja o mais longínquo historicamente. Há, claro, a mortífera rivalidade entre sunitas e xiitas que envenena o Islão desde o seu nascimento no remoto século VII. Esta tem, no Iraque, um terreno de batalha privilegiado, sobretudo pelas memórias e simbolismo histórico-religioso-identitário do xiismo. Ironias da história, a rivalidade parece hoje tão viva como há catorze séculos atrás quando se iniciou a luta pela sucessão do Profeta Maomé. O problema interliga-se, no mundo atual, com as lutas de poder pela primazia no mundo árabe-islâmico. Os rivais mais encarniçados dessa disputa, feita abertamente e/ou por “procuração”, são iranianos e sauditas. O Hezbollah do Líbano é um instrumento conhecido do Irão; diversos grupos jihadistas que atuam na guerra da Síria são, provavelmente, financiados e instrumentalizados pela Arábia Saudita. Interliga-se, também, com os interesses frequentemente contraditórios, devido às suas múltiplas “clientelas”, das grandes potências globais, sendo o caso dos EUA o mais óbvio, mas também, em graus variáveis, da Rússia e da China.

2. Todavia, no último século, provavelmente o acontecimento mais marcante do rumo dos acontecimentos foi o acordo Sykes-Picot, de 9 de maio de 1916, feito em plena I Guerra Mundial. O acordo deve o seu nome aos seus principais negociadores nos bastidores: os diplomatas e administradores coloniais, Mark Sykes da Grã-Bretanha e François Georges-Picot da França. Foi inicialmente concebido como um tratado informal e secreto, entre Grã-Bretanha e a França, feito com a concordância da Rússia. Visava a partilha das províncias árabes do Império Otomano no actual Médio Oriente. (Acabou por ser tornado público após a vitória dos bolcheviques na revolução russa de Outubro de 1917, que o publicaram por vingança contra os ex-aliados da Rússia czarista). Nos termos do acordo, a França ficou com a sua zona de influência e/ou controlo directo essencialmente concentrada nos territórios dos atuais Líbano e Síria. Quanto à Grã-Bretanha, a sua zona influência e/ou controlo directo seria o sul da Mesopotâmia, incluindo Bagdade, a Transjordânia e os portos mediterrânicos de Haifa e Acre, ou seja, grosso modo os atuais territórios de Israel/Palestina, Jordânia e Iraque. A integração da parte norte do território, a região de Mosul, foi objeto de um duplo contencioso vencido pelos britânicos. Primeiro aos franceses, aquando da ocupação de facto do território no final da I Guerra Mundial, pois a região estava inicialmente prevista como zona de influência da França, no acordo Sykes-Picot de 1916. Depois, à recém formada República da Turquia em 1923, por acção de Mustafa Kemal Atatürk, que reclamava esse território ex-otomano também para si. A situação acabou por ser submetida à arbitragem da Sociedade das Nações (SdN), a organização precursora da actual ONU. A comissão que se ocupou do assunto decidiu, em 1926, a favor dos britânicos.

3. Foi assim que uma “linha na areia” traçada inicialmente num mapa, por dois diplomatas e administradores coloniais, Sykes e Picot, se acabou por transformar em fronteira política de vários povos – quer do actual Iraque, quer de outros Estados do Médio Oriente (ver o recente livro de James Barr “A Line in the Sand: Britain, France and the Struggle That Shaped the Middle East“; ver também o já clássico livro de David Fromkin “A Peace to End All Peace: The Fall of the Ottoman Empire and the Creation of the Modern Middle East“). Aparentemente, os jihadistas do Estado Islâmico do Iraque e do Levante ou Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS, na sigla em inglês), estão empenhados em “apagar” essa fronteira do mapa. O objectivo é tentar reconstruir um mitificado califado islâmico que devolva a “idade de ouro” aos muçulmanos. A ideia parece ser também desencadear a engrenagem duma luta, teoricamente religiosa, na realidade bem política e de poder, ao longo da linha de fractura entre sunitas versus xiitas. Independentemente do rumo dos acontecimentos, uma coisa é certa: vão deixar mais linhas traçadas a sangue na areia e prolongar (o já grande) sofrimento da população iraquiana.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes. Artigo originalmente publicado no Público, 24/06/2014

© Imagem: capa do Livro de James Barr, “A Line in the Sand: Britain, France and the Struggle That Shaped the Middle East”  (Simon & Schuster, 2012)