The Irish Question: from partition to reunification?

Map of Ireland

The outcomes of the referendum which led to Brexit are not yet exhausted as the UK exits from the EU. A century after the Ireland’s War of Independence, it is not impossible that the reunification of the island will ensue, although it is still divided by politics and religion.

1. Even after nearly five years, we cannot yet to make out clearly all of the implications of the referendum held in 2016 which led to the exit of the UK from the EU. We know the terms under which the two sides will relate in future, since they were agreed last December in The Commercial and Cooperation Agreement, but the reach of Brexit in its multiple facets will become apparent only with time. In Britain’s internal politics, Northern Ireland (and equally Scotland) is one of the points at which the chain of events could have strong repercussions. Today’s Irish question presents a curious parallel with that of a century ago, when Ireland emerged from the British Empire. The Dublin Easter Rising of 1916 preceded the Irish War of Independence, which broke out in 1919, during the administration of David Lloyd George, and continued until the end of 1921.

2. 1920 and 1921 were crucial years in the partition of Ireland. Northern Ireland remained in the United Kingdom with 13 500 km2 of territory and 1.8m inhabitants, mostly Unionists and Protestant. The area was also called Ulster, one of the four historic provinces of Ireland. The independent Republic of Ireland covers 70 000km2 and has 5m inhabitants, 80% of whom are Catholic. The Irish question should be understood in the context of the religious and political struggles in the British Isles, of modern nationalism and of a British Constitutional model with diverse territorial and national components (England, Wales, Scotland and Northern Ireland). In 1920, the British Parliament approved the Government of Ireland Act, which set up two governments on the island, with delegated but limited powers. The one in Dublin with authority over the South was rejected by the nationalists and their principal armed group, the Irish Republican Army (IRA); the other in Belfast had authority over the six counties of the North (Londonderry / Derry, Tyrone, Fermanagh, Armagh, Antrim, Down) and was implemented by the mainly Unionist population.

3. The Anglo-Irish Treaty of 6 December, 1921, negotiated by the Lloyd George administration, formed the basis of the Irish Free State, which had a constitutional status similar to that of Canada and the other territories of the Commonwealth. The Treaty came into force on 6 December, 1922, and it had the effect of dividing the Irish nationalists and this division led to the Civil War (1922 – 1923). Michael Collins, the first President of the Provisional Government of the Irish Free State was soon assassinated. After WW2, the Fine Gael government of John A. Costello passed the Republic of Ireland Act, which came into force the following year and Ireland broke away from the Commonwealth. Later, for thirty years, Northern Ireland was the scene of nationalist and sectarian violence, which was brought to an end only with the Belfast Accord (the Good Friday Agreement) in 1998.

4. It will be a profound historical irony if the Brexit referendum, with its slogan of Take Back Control and its aim for the British Parliament to reassume sovereignty over the UK from the European Union, leads to the loss of British sovereignty over Northern Ireland. The idea of a united and independent Ireland did not die in 1921, and it has always been the aspiration of Irish nationalists in Ulster and in the Republic. Mary Lou McDonald, the current leader of Sinn Féin (the party with the highest popular vote in the Republic) expects that the island of Ireland will be united by the end of this decade. Only time will show whether hers is a realistic vision, but the intention to exploit the opportunity presented by Brexit is clear. In its future relations with the EU, Northern Ireland will be the British exception, as it aligns with the customs union of the united Europe and not with that of the United Kingdom. And so we shall see if Boris Johnson will be remembered in history as the man who reclaimed sovereignty over the United Kingdom, or the politician who lost Northern Ireland (and/or Scotland).

© José Pedro Teixeira Fernandes, tradução para língua inglesa do artigo originalmente publicado na revista JN História nº 30 (2021)

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A América em declínio

A distopia política dos anos Trump não é explicável como um mero acidente eleitoral numa democracia, como uma escolha absurda de cidadãos mal informados. Vai além das causas imediatas, como o perigoso populismo demagógico e manipulador de Donald Trump. É também o resultado de uma conjugação extraordinariamente negativa de circunstâncias políticas, económicas e identitárias, só apreensível olhando para os sinais de tensões e declínio da América das últimas décadas.

1. Poderia ter sido uma cena de um enredo distópico de um filme de Hollywood passado numa América quase irreconhecível. Poderia ter sido também um episódio ficcional da Marvel com as suas inúmeras histórias fantásticas de super-heróis bizarros (Batman, Homem de Ferro, Super-Homem, etc.) que actuam numa América e num mundo repleto de poderosos vilões e de justiceiros incorruptíveis. Mas o reality show que foi a Presidência Donald Trump, umentertainer, provocador e governante de facção, acabou num real e absurdo clímax de pesadelo: o assalto ao Capitólio pelos seus partidários extremistas do Make America Great Again (MAGA), que se vêem como defensores da ordem contra a corrupção e anarquia da América liberal e dos Antifa (movimento antifascista). Apesar do insólito que foram os seus anos no poder, Trump conseguiu deixar estupefactos os amigos e os aliados dos EUA e todos aqueles que se habituaram a admirar as suas instituições democráticas. Para além da atitude de enorme irresponsabilidade democrática e politicamente (muito) perigosa deste Presidente — que, com as reiteradas acusações de fraude eleitoral feitas sem provas substanciais, encorajou os seus apoiantes mais radicais a tomarem de assalto o Capitólio —, há uma longa engrenagem de fractura e declínio da América. Para a compreender não basta olhar o imediato, nem os anos turbulentos do Governo de Donald Trump. Existe um problema estrutural mais profundo e multifacetado pelos motivos que vou explicar em seguida.

2. Há 30 anos, na imagem da América vencedora do final da Guerra Fria, a generalidade do mundo viu a mais formidável hiperpotência da história da humanidade — a expressão foi popularizada nos anos 90 pelo ministro dos Negócios Estrangeiros francês da época, Hubert Védrine. Como sempre aconteceu com as grandes potências ao longo da história humana, tal percepção de poder originou no mundo exterior sentimentos muito ambivalentes de admiração, de respeito e de vontade de imitação, mas originou também medo, desprezo e um profundo ódio. No centro desses sentimentos contraditórios encontrava-se também o american way of life projectado pela nascente globalização. Era vista pelos críticos mais cáusticos como um disfarce de uma americanização imposta. Em qualquer caso, para amigos e inimigos, a América era, ou parecia ser, uma hiperpotência imbatível. Todavia, na complexidade interna do seu funcionamento existiam já engrenagens de dissensão e de declínio em marcha, ainda que poucos se apercebessem da sua real importância. Ao longo das últimas décadas, essas engrenagens aumentaram de intensidade e convergiram entre si, originando fortes tensões políticas, económicas e sociais-identitárias. As guerras do Afeganistão e do Iraque tiveram também aí um papel que não pode ser ignorado. Não trouxeram ganhos estratégicos de relevo para o país (funcionaram até como distracção para a ascensão da China), mas dissiparam avultados recursos financeiros e provocaram perdas de vidas humanas, como acontece sempre em conflitos militares. A partir de 2016, sob a acção de Donald Trump, todas essas tensões latentes se tornaram fracturas expostas, mas esse é apenas o lado óbvio e visível da engrenagem de fractura e de declínio. É necessário alargar a perspectiva de análise e olhar para a América nas suas múltiplas facetas, num período temporal mais longo.

3. Provavelmente não é possível compreender a América de hoje sem olhar também para o extraordinário sucesso que o país teve durante o século XX. Especial atenção merece o período entre a I e a II Guerra Mundial, onde passou de um Estado quase ausente das grandes questões internacionais para uma potência dominante e incontornável na política mundial. As duas guerras mundiais, que foram essencialmente grandes guerras europeias, tiveram um papel decisivo nessa enorme transformação. Enquanto a Europa — a área mais avançada do mundo em termos intelectuais, científicos e tecnológicos — se afundava nessas guerras desastrosas, a América recebia milhões de europeus à procura de melhores condições de vida material, ou fugindo de perseguições políticas e de lutas bélicas. Nessas migrações em massa — e especialmente devido aos totalitarismos nazi, fascista e estalinista —, uma grande parte da elite intelectual, artística, científica europeia deslocou-se para a América. Provavelmente nunca na história humana um país acolheu um fluxo migratório tão grande de pessoas. Mas em momento nenhum da história da humanidade um país recebeu, no meio de um enormíssimo fluxo migratório de todos os tipos, tanta gente tão altamente qualificada num período tão curto de tempo. É necessário dizer que a América recebeu essa extraordinária injecção de capital humano qualificadíssimo também pelos seus próprios méritos, pois a atracção que exercia no mundo exterior, como terra de liberdade, de bem-estar material e de futuro, era enorme. Todavia, sem qualquer dúvida, o imenso salto científico e tecnológico que os EUA deram, sobretudo entre os anos 20 e 50, tem também conexão com esse fluxo migratório. Apenas um exemplo: o Projecto Manhattan, que levou os EUA a serem o primeiro Estado a dispor da bomba atómica, provavelmente não teria sido possível sem as migrações que levaram Albert Einstein, Enrico Fermi e J. Robert Oppenheimer (neste caso, os seus antepassados), entre muitos outros, para a América.

4. Essa conjugação única de circunstâncias deu lugar a um poder, influência e prosperidade material ímpares da América no mundo. A memória desse período, ainda muito próximo temporalmente, projecta-se no início do século XXI e cria uma profundíssima insatisfação para muitos americanos com o actual rumo do seu país. É necessário lembrar que foi nessa altura que as instituições federais e democráticas, refundadas após a guerra civil dos anos 1860, se consolidaram e ganharam grande prestígio interno e internacional. Ao mesmo tempo, a crescente prosperidade material permitiu um optimismo contínuo e generalizado na população americana, mesmo entre os mais pobres e desfavorecidos oriundos de sucessivas vagas migratórias. A expectativa era de poderem vir a enriquecer e a ascender socialmente, se não eles próprios, pelo menos os seus filhos. A América do pós-guerra surgiu também numa posição internacional única, de primazia política, económica, comercial e financeira. A Organização das Nações Unidas (ONU) foi fundamentalmente uma criação americana. As organizações de Bretton Woods (FMI, Banco Mundial e o GATT – Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio), tal como o dólar no centro do sistema monetário internacional, são expressões internacionais dessa posição única. Por outras palavras, o sistema internacional de instituições multilaterais foi largamente uma criação americana, com ganhos de poder, influência e prosperidade material, mas também, naturalmente, com custos para o país. Todavia, muitos americanos sentem hoje que tais instituições multilaterais internacionais com as quais se identificaram durante muito tempo pela sua matriz americana escapam, cada vez mais, ao seu poder e influência e são um fardo para o seu bem-estar.

5. Colocando o problema da América actual em perspectiva, há também uma extraordinária ironia histórica. Tradicionalmente, era comum os europeus menosprezarem a América pela sua falta de passado. Comparada com a sofisticação cultural e histórica europeia, a América era criticada pelo seu vazio cultural e pelo seu novo-riquismo confrangedor, sem verdadeiro passado nacional. Os americanos contra-argumentavam com a ausência dos terríveis conflitos nacionais dos europeus; e também com a ascensão social com trabalho árduo, exemplificada no self-made man — termo cunhado no século XIX nos EUA —, em contraste com a estratificação e peso dos privilégios herdados entre os europeus. Na América, podia ser-se alguém importante pelo seu próprio valor; na Europa, raramente quem não vinha das famílias privilegiadas conseguia ascender socialmente e ser importante. Quanto à identidade americana, não era vista à maneira das velhas nações europeias que acabaram por se (auto)destruir em sucessivas guerras. Era um novo e promissor melting pot, um caldeirão de culturas e de raças que se fundiam numa nova identidade americana (a popularização da expressão deve-se a uma peça de teatro de Israel Zangwill, The Melting Pot). Nessa identidade nacional, o passado dos Pilgrims que viajaram  em 1620 a bordo do Mayflower para se estabelecerem na América; dos pais fundadores da República (George Washington, Benjamin Franklin, Thomas Jefferson, Alexander Hamilton, etc.) e do Estado federal contra a opressão da potência colonial britânica; e das múltiplas vagas de migrantes (europeus) que se estabelecerem no território americano e o expandiram continuamente para oeste até ao Pacífico eram um passado orgulhosamente partilhado e celebrado. Unia as elites das grandes cidades da costa Leste e Oeste, as populações suburbanas e as populações rurais da imensidão territorial do interior da América. Mas essa orgulhosa (auto)imagem identitária desagregou-se ao longo das últimas três ou quatro décadas e hoje não há nenhuma narrativa nacional amplamente partilhada. A América está envolvida numa disputa identitária que parece quase saída de uma distopia orwelliana onde “quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado”. Há visões cada vez mais intolerantes e extremadas sobre o que é ser americano, as quais são, simplificadamente, a narrativa histórica anteriormente descrita, ancorada no tradicional melting pot; e a multicultural, que substitui essa narrativa por múltiplas narrativas de grupos anteriormente ignorados — povos indígenas, afro-americanos, hispânicos, asiáticos, muçulmanos, etc. — apagando a tradicional visão do passado e transformando os antigos heróis da histórica americana em novos vilões. Assim, a América do século XXI não tem falta de história, é a sua própria história que a atormenta e divide profundamente. O caso do Black Lives Matter e dos afro-americanos, o qual se interliga com o passado da escravatura, convulsiona hoje os EUA.

6. Por razões simultaneamente políticas, económicas e identitárias, para muitos americanos a América de hoje defrauda a imagem que se habituaram a ter do país e de si mesmos, incluindo as expectativas de bem-estar material e de ascensão social. Tudo isso provoca profundas frustrações que convergem ao mesmo tempo, com grande intensidade. Um caso que merece aqui atenção é o do sistema político-partidário, que contraria a ideia de contínua renovação e fácil ascensão política e social. No passado, esse foi um dos grandes factores de atracção da América para muitos. Mas no lugar de um sistema meritório e aberto emergiu uma oligarquia que funciona em círculo (quase) fechado. O elevado tempo de permanência em cargos políticos cimeiros e a idade avançada dos principais protagonistas políticos são dois indicadores claros. No Partido Republicano vemos isso, por exemplo, em Mitch McConnell: tem 78 anos, sendo uma presença no Senado desde os anos 80 (chefia desde 2007 os republicanos nessa câmara parlamentar). Quanto a Donald Trump, tem 74 anos e chegou a Presidente dos EUA em 2016. Anteriormente, não tinha ocupado qualquer cargo político a nível federal, sendo, nesse aspecto, uma excepção, o que lhe permitiu seduzir (e iludir) os eleitores fartos do establishment. Já o seu vice-presidente, Mike Pence, tem 61 anos e está na política federal desde os anos 2000. No caso do Partido Democrata, quem chefia o partido na Câmara dos Representantes é Nancy Pelosi, actualmente com 80 anos. Será novamente chefe parlamentar durante os próximos dois anos, ocupando desde a década de 80 cargos federais e no Congresso. Quanto ao futuro Presidente, Joe Biden, do Partido Democrata, tem 78 anos e desde a década de 80 ocupa cargos no Senado e nos círculos dirigentes de Washington. Por sua vez, o seu principal rival nas eleições primárias, Bernie Sanders, com 79 anos, é membro da Câmara dos Representantes e depois do Senado desde o início dos anos 90. A única renovação, ou a aparência dela (veremos), é Kamala Harris, que, com 56 anos, chegou ao Senado nas últimas eleições de 2016 e foi agora eleita vice-presidente.

7. O problema não é só o sistema político-partidário com tonalidades oligárquicas que dificulta a renovação política (e a ascensão social), nem a fractura identitária que perpassa a América. A globalização impulsionada pelas elites do país no final dos anos 80 e década de 90 provocou significativas rupturas e amplificou as disparidades na sociedade norte-americana. Promoveu a deslocalização de muitos empregos, sobretudo industriais, para o mundo exterior, onde os custos de trabalho eram mais baixos, do vizinho México à cada vez mais poderosa e rival China. Foram assim eliminados milhões de postos de trabalho razoavelmente bem pagos e que permitiam progressão social e bem-estar para uma classe média-baixa. Ao mesmo tempo, as contínuas vagas migrações não-qualificadas, agora oriundas do resto do mundo não-europeu, especialmente da América Latina pela proximidade geográfica, pressionaram permanentemente os salários para uma contenção ou redução. Para além disso, a maioria dos empregos que a economia americana criou nas últimas décadas é relativamente mal paga e/ou precária. A tudo isto acresceu a crise financeira de 2008 e as marcas profundas que deixou na economia e na sociedade. Assim, as classes médias-baixas suburbanas e as populações do interior da América estão entre os maiores perdedores da globalização. Os maiores ganhadores estão sobretudo em Wall Street (banca e sector financeiro) e em Silicon Valley (as grandes empresas de tecnologia ligadas à economia digital). Ambos são grandes financiadores dos dois partidos — os primeiros tipicamente dos republicanos e os segundos esmagadoramente dos democratas. Não é surpreendente que entre os milhões de americanos que sofreram perdas de bem-estar, que viram as suas expectativas de ascensão social interrompidas — e que sentem os valores culturais e religiosos em que acreditam menosprezados e atacados —, se tenha instalado um sentimento de revolta contra as elites que tradicionalmente governam o país. Também não é surpreendente que, nessas circunstâncias, o centro político tenha quase desaparecido.

8. A distopia política que foi a Presidência de Donald Trump não é explicável como um mero acidente eleitoral. Nem pode ser só vista como uma escolha absurda de eleitores mal informados numa democracia pluralista onde há liberdade efectiva de escolher quem governa. A compreensão do que se passou na América vai além das causas óbvias — desde logo, o populismo demagógico e manipulador de Donald Trump. Vai também além do radicalismo ideológico de direita ou de extrema-direita que esteve na origem do assalto ao Capitólio. Seria mais simples (e mais fácil de ultrapassar) se fosse só assim. É uma conjugação extraordinariamente negativa de múltiplas circunstâncias políticas, económicas e identitárias, na qual republicanos e democratas têm também grandes responsabilidades. A América, que nos habituámos a olhar como o Novo Mundo, por oposição ao Velho Mundo europeu, evidencia agora o desgaste do passado. Não só do passado da sua formação como Estado — na Constituição, na eleição presidencial indirecta pelos Estados da federação e na questão dos afro-americanos —, mas também do seu enorme sucesso internacional, em particular em dois momentos-chave do século XX: a II Guerra Mundial e a Guerra Fria. Nesse passado, como foi explicado, uma extraordinária conjugação de circunstâncias favoráveis, particularmente entre os anos 20 e os anos 50, projectou a América para uma situação única de prosperidade material e de poder no mundo. Nos anos 2020 — veremos como será a seguir — a história trouxe à América um amargo processo inverso: uma extraordinária conjugação de circunstâncias negativas, internas e internacionais, que a está a fazer declinar. Entre estas últimas, reveste-se de particular importância a ascensão da China a grande potência global, algo que inevitavelmente ensombra o papel a que a América se habituou no mundo. É neste contexto particularmente difícil, ao qual acrescem agora os efeitos disruptores na saúde pública e na economia da pandemia da covid-19, que Joe Biden assume a Presidência dos EUA, a 20 de Janeiro de 2021. Veremos como ficará na história futura de uma América em (in)evitável declínio.

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Público, P2 17/01/2021

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A Europa perdida no mundo da geopolítica

Mapa da Europa nos anos 1920

Nem temos uma Europa genuinamente coerente com os seus valores internos na política externa, nem temos uma Europa forte e credível geopoliticamente nas grandes questões mundiais.

1. A história por vezes é cruel. A geopolítica, um termo criado pelos europeus na transicção do século XIX para o século XX — a autoria deve-se ao sueco Rudolf Kjellén —, é uma das maiores dores de cabeça da actual União Europeia (por simplificação, aqui designada também como Europa). As grandes potências europeias da primeira metade do século XIX, que eram também grandes potências mundiais, impulsionaram o pensamento geopolítico. Nomes como Halford Mackinder (britânico), Karl Haushofer (alemão) e Paul Vidal de la Blanche (francês), este último com um trabalho precursor sobre a França do Leste e a Alsácia-Lorena, região no cerne do conflito franco-germânico, foram fundamentais nesse processo. Todavia a União Europeia, que tem esse passado inscrito, goste ou não dele, dá-se muito mal com a geopolítica do século XXI. Hoje os maiores actores mundiais não são europeus, nem se movem muitas vezes pelas regras e princípios que os europeus gostariam de ver amplamente postos em prática nas relações internacionais. 

2. Na óptica europeia do pós II Guerra Mundial, o mundo da política de poder e dos interesses, que é largamente o mundo da geopolítica, é um mundo do passado, sobretudo do passado trágico europeu de sucessivas guerras. Para o superar, a União Europeia criou instituições supranacionais e construíu uma (auto)imagem de um actor virtuoso das relações internacionais, demarcando-se das suas grandes criações políticas do passado: Estado soberano (vestefaliano) e nação / nacionalismo. Quando em 2019 Ursula von der Leyen formou a actual Comissão Europeia e prometeu uma “Comissão geopolítica”, causou por isso uma certa surpresa e críticas. Geopolítica e União Europeia eram palavras que não faziam parte do mesmo léxico político. Mas a ideia surgiu no contexto de mundo em grande transformação que colocava novos problemas à Europa. Os EUA, sob o governo de Donald Trump, afastavam-se do seu tradicional multilateralismo do pós-II Guerra Mundial e questionavam o valor da Aliança Atlântica (NATO). A China, durante muito tempo vista pelos europeus quase só por lentes económicas, como um novo grande mercado ou um investidor com grande liquidez, passou a ser percebida como um “rival sistémico”. Quanto à Rússia, que a geografia coloca como parte e em continuidade com a Europa, a relação turbulenta persistia. 

3. Para não ser apenas um slogan, a ideia de uma “Comissão geopolítica” necessitava de uma concretização efectiva e credível. Mas aqui começa o maior problema de Ursula von der Leyen e da União Europeia. A Europa continua presa aos fantasmas do passado da primeira metade do século XX e enredada nas suas próprias contradições, o que não lhe permitem transformar-se num actor geopolítico coerente, forte e credível. Um entrave fundamental é o do conflito entre princípios e valores, por um lado, e interesses e poder, por outro lado. Certamente que o problema não é exclusivo da União Europeia, mas aí atinge um elevadíssimo grau de intensidade pela sua própria natureza. Mais do que qualquer outro Estado-nação soberano no mundo, a União Europeia pretendeu guiar a sua conduta por princípios e valores — o Estado de direito, os direitos humanos, a democracia pluralista e a protecção das minorias estão todos inscritos nos seus textos fundadores “constitucionais”.  Mas uma coisa é actuar assim num mundo onde esses princípios são amplamente aceites, outra é actuar num mundo que em grande parte os ignora. Como é fácil de intuir, é praticamente impossível ser um interveniente maior na geopolítica mundial sem recorrer à política de poder e à lógica dos interesses num mundo onde os maiores problemas seguem essas lógicas e estão para além das suas capacidades transformadoras da realidade social-internacional.

4. Para além do apontado, a experiência europeia de várias décadas de integração mostra ainda que raramente há coesão interna que suporte uma política externa assertiva nas questões mais importantes da geopolítica mundial. Por isso, o conflito dos princípios e valores com a lógica dos interesses e poder não é o único obstáculo de fundo para se criar uma Europa como um actor geopolítico forte e credível. Grandes potências como a Rússia e a China — por vezes também os EUA, o que foi muito evidente com Donald Trump, tal como já tinha acontecido com George W. Bush na altura da guerra do Iraque — alimentam a falta de coesão europeia. Naturalmente tiram proveito dessa debilidade quando o seu interesse nacional está em causa. Mas é necessário notar que não são apenas as grandes potências que facilmente a superam no terreno geopolítico a União Europeia. Médias potências como a Turquia têm conseguido tirar também partido das contradições e falta de coesão interna europeia, suplantando-a, apesar de teoricamente estarem muito aquém do poder do conjunto europeu. Na realidade, nas áreas geopolíticas onde a União Europeia tem um interesse directo apenas nos Balcãs — e mesmo aí só após as intervenções da NATO / EUA nos anos 1990 — é que exerce uma influência significativa. Na zona tampão do Leste europeu, da Moldávia à Bielorússia, passando pela Ucrânia, a Rússia é o Estado geopoliticamente, dominante como mostrou pela anexação da Crimeia. No Mediterrâneo oriental, outra área geopolítica de interesse directo para a União Europeia, a Turquia ignora-a largamente nos conflitos que a opõem à Grécia e a Chipre. 

5. Com as contradições e debilidade apontadas, as expectativas de uma Europa mais assertiva na geopolítica mundial (muito) dificilmente poderiam ser realizadas. Um choque realidade — a desastrosa visita de Josep Borrel à Rússia em inícios de Fevereiro de 2021 — mostrou de forma bem crua a ilusão criada por Ursula von der Leyen. Importa lembrar que Josep Borrel é vice-presidente da Comissão Europeia e coordena a acção externa da União, sendo, por isso, uma peça central na ideia de uma “Comissão geopolítica”. Mas o que aconteceu foi que a diplomacia russa, através do seu ministro dos negócios estrangeiros, deu uma lição à União Europeia. Ignorou não só as suas críticas sobre a detenção do político russo da oposição, Alexei Navalny, como, enquanto decorria uma conferência de imprensa conjunta, expulsava três diplomatas europeus — um alemão, um sueco e um polaco. Mais uma vez as contradições e fraquezas europeias ficaram demasiado expostas. Uma coisa é condenar, por exemplo, a junta militar que tomou o poder na Birmânia (Myanmar) e deteve Aung Suu Kyi, bem como as perseguições e violações de direitos humanos sofridas pelos rohingyas. É uma área geopolítica distante, onde ninguém na Europa tem grandes interesses económicos, nem a Birmânia tem qualquer capacidade de retaliação, pelo que é fácil fazer uma política externa segundo princípios e valores. Outra coisa é aplicar sanções económicas à Rússia devido às violações de direitos humanos e outras, cancelando, por exemplo, o gasoduto Nord Stream 2, que liga à Rússia à Alemanha. Neste último caso, Angela Merkel e a Alemanha mostraram, de forma demasiado flagrante, como há “dois pesos e duas medidas”, descredibilizando, na prática, mais uma vez a União Europeia. A Europa apregoa elevados valores morais, mas cede quase sempre quando estão em causa interesses que envolvem grandes potências como a Rússia ou a China, ou até médias potências com capacidade de retaliar como a Turquia — basta ameaçar abrir a porta aos migrantes / refugiados. Este é o pior resultado para os europeus. Nem temos uma Europa genuinamente coerente com os seus valores internos na política externa, algo que os seus rivais e inimigos exploram até à exaustão para a descredibilizar; nem temos uma Europa geopoliticamente forte e credível nas grandes questões mundiais, ainda que à custa de abandonar a pretensão de uma política externa coerente com os valores internos. O que temos é uma Europa perdida no mundo da geopolítica que não faz bem uma coisa nem outra.

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Público, 19/02/2021

© Imagem: Wikimedia Commons / Realpolitik