O comércio internacional como competição pela supremacia mundial

A actual competição sino-americana pode ser vista sob o prisma da teoria dos jogos, sendo, nessa óptica, um apaixonante jogo estratégico de soma zero. Mas no mundo real os riscos são sérios.

1. No mundo actual, a rivalidade entre os EUA e a China lembra-nos, de forma crítica, o papel que o comércio internacional tem na competição entre grandes potências. Teoricamente, num mundo sem fronteiras e sem comunidades políticas organizadas em Estados soberanos — ou seja, não dividido segundo o que usualmente se chamam as economias nacionais —, seria indiferente, ou pouco relevante, o local onde os bens são produzidos ou consumidos. Nesse mundo, onde os indivíduos seriam totalmente cosmopolitas, em termos de economia política apenas interessaria a análise da produção mundial, ou global, do mercado global, dos consumidores dispersos um pouco por todo o planeta e da taxa de emprego (e de desemprego) global. O resto seriam resquícios das velhas lógicas económicas nacionais do passado, ou especificidades, locais ou regionais. 

2. A metáfora da “aldeia global” (Marshall McLuhan) é poderosa. Capta múltiplas facetas do mundo actual onde as distâncias se encurtaram extraordinariamente. Todavia, quando aplicada à economia e ao comércio internacional, fornece-nos, na melhor das hipóteses, uma visão parcial do mundo do século XXI. Mesmo na União Europeia, onde a integração económica e política é a mais avançada do mundo — e se criou uma espécie de “aldeia global” à escala europeia —, é ilusório pensar-se que a produção nacional, o emprego nacional, ou o crescimento do produto nacional bruto (PNB) e das exportações e importações perderam importância num grande mercado único com uma moeda comum (e que aquilo que conta é fundamentalmente o todo europeu). A crise da Zona Euro e as suas sequelas sobre os Estados-membros mostraram isso de forma cruel. Nenhum governo — sobretudo se tiver de responder democraticamente perante o eleitorado — se consegue esquivar à questão do bem-estar económico da comunidade política que governa. Nenhum governo sobrevive invocando o bem-estar cosmopolita da “aldeia global”, ou do conjunto da União Europeia, se os efeitos benéficos não forem sentidos pelos seus próprios cidadãos-eleitores.

3. O comércio internacional tem uma inevitável dimensão de competição estratégica entre comunidades políticas estaduais (as economias nacionais). Numa visão económica pura — possível na investigação teórica, mas desfasada da realidade pela dificuldade extrema de traduzir a complexidade do mundo real em modelos testáveis —, o comércio internacional desliga-se do político, do poder e dos objectivos dos intervenientes que nele participam, sobretudo quando estes não são nem económicos, nem supostamente racionais. Mas, no mundo real, todos esses aspectos se interligam estando o racional e o emotivo — ou até o irracional — sempre presentes e a condicionar os resultados finais. No mundo, é possível observar períodos onde o comércio internacional, visto como uma competição estratégica entre unidades políticas soberanas, se esbateu (mas nunca desapareceu), de outros períodos onde essa lógica (re)surgiu em força. Nos primórdios da actual globalização, a ideia de uma teoria estratégica do comércio internacional tinha vários proponentes de maior ou menor envergadura. Paul Krugman foi um proponente maior, apesar de, posteriormente, se ter distanciado de tal visão sobre o comércio internacional (ver “Strategic Trade Policy and the new International Economics”/“A Teoria Estratégica do Comércio Internacional e a nova Economia Internacional”, MIT Press, 1986).  Mas como na época fez notar um outro importante economista, Avinash Dixit, da Universidade de Princeton — num texto inserido nessa mesma publicação de Paul Krugman —, as investigações teóricas e empíricas da teoria estratégica agradavam aos defensores do protecionismo e (neo)mercantilismo. Estes procuravam apropriar-se dos seus resultados para dar um novo ímpeto aos argumentos (neo)mercantilistas e influenciar a política comercial. Hoje, é a discussão sobre as vantagens em dominar a inteligência artificial, ou a tecnologia 5G nas redes de comunicações móveis, o que faz lembrar a teoria estratégica do comércio internacional de Paul Krugman e as discussões dos anos 1980.

4. Para além da Economia, e dos desenvolvimentos da teoria estratégica do comércio internacional anteriormente referidos, uma outra análise surgiu ligada à chamada Geoeconomia. Esta nova área do conhecimento, ainda que contestada na sua solidez teórica e rigor conceptual, tem dois proponentes maiores: nos EUA Edward Luttwak (ver “From Geopolitics to Geo-Economics: Logic of Conflict, Grammar of Commerce/“Da Geopolítica à Geoeconomia…” in The National Interest, n.º 20, 1990, pp. 17-23); e, em França, Pascal Lorot (ver “De la géopolitique à la géoéconomie: La géoéconomie, nouvelle grammaire des rivalités internationales” in Géoéconomie/Revue française de Géoéconomie, 1997, pp. 110-122). A Geoeconomia procura interligar a Economia Internacional com uma abordagem espacial/geográfica, centrando-se na competição entre entidades políticas (Estados), ou grandes áreas de integração económica (União Europeia, Mercosul, ASEAN –​ Associação de Nações do Sudeste Asiático, etc.). Assume que nessa competição há objectivos de dominar segmentos do mercado mundial ligados à produção ou comercialização de certos produtos e de adquirir e controlar tecnologias de ponta, fundamentais para uma economia avançada e o poder militar. Procura identificar as medidas usadas — implementadas de forma aberta ou dissimulada —, com o intuito de dar vantagem à economia nacional ou de um espaço económico integrado, protegendo empresas e sectores vistos como estratégicos.

5. A tensão entre o livre comércio global e os objectivos dos Estados, ou dos espaços económicos integrados, é de natureza estrutural na economia política internacional. Como já notado, só num mundo ideal, totalmente cosmopolita, tais tensões não existiriam. Há uma década, a já aqui referida crise internacional desencadeada pela falência do banco Lehman Brothers nos EUA originou ondas de choque, financeiras, económicas e sociais. Crises dessa dimensão geram profundos efeitos sociais negativos, prolongados no tempo. Fazem reemergir os argumentos a favor do proteccionismo ou de um (neo)mercantilismo. Nesse contexto, as pressões sociais e de certos sectores económicos tendem também a aumentar, reclamando uma intervenção governamental protectora e/ou dirigista da economia. Mas fora de um contexto de crise financeira e económica grave, o que é um dado novo no pós-II Guerra Mundial é as duas maiores potências económico-comerciais — os EUA e a China —, ambas verem o comércio como uma competição estratégica crucial, a qual é instrumental na sua luta pela supremacia mundial. Uma lógica desse tipo só nos anos 1920 e 1930 e foi de má memória para o mundo.

6. Nem EUA, nem China, olham para o comércio internacional como uma troca de bens e serviços onde todos podem ganhar e aumentar o seu bem-estar, sem ser à custa do outro. Isso coloca um problema sério ao sistema comercial multilateral, tal como está instituído actualmente sob as regras da Organização Mundial do Comércio. O actual sistema comercial reflecte o pensamento económico clássico de Adam Smith e David Ricardo, bem como dos continuadores modernos, de Paul Samuelson a Jagdish Bhagwati.  Para alguns, a actual competição sino-americana no comércio internacional pode ser vista sob o prisma da teoria dos jogos, sendo, nessa óptica, um apaixonante jogo estratégico de soma zero. É uma forma de competição do tipo “tudo ou nada”, onde o que um ganha o outro perde. Mas no mundo real os riscos são sérios. Para além de os EUA e a China poderem perder ambos bem-estar económico, se a competição espicaçar, ainda mais, as rivalidades político-militares já existentes, as consequências serão nefastas para o mundo na sua globalidade. Assim, vamos esperar que os próximos tempos tragam uma trégua na guerra comercial em curso (ver “A mini-truce between America and China has investors feeling hopeful” in The Economist, 12/10/2019), que a aproximação de eleições presidenciais nos EUA poderá facilitar. Todavia, é ilusório pensar no seu fim: a competição e rivalidade sino-americana desenham-se, cada vez mais, como uma componente estrutural do mundo do século XXI. 

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado sob o título ‘EUA vs China: o comércio internacional como competição pela supremacia mundial’ no Público, 9/11/2019

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O triunfo das baratas na política britânica

No livro de Ian McEwan, a metamorfose de Jim Sams, apesar de ficar com a aparência de uma barata, trouxe-lhe uma missão e grande êxito político. Com ele, o Reino Unido abandonou a União Europeia após várias manobras políticas tortuosas.

1. Para os partidários da permanência na União Europeia, uma vitória de Boris Johnson nas eleições legislativas de 12 de Dezembro, com a maioria absoluta dos deputados, deverá assemelhar-se a um “triunfo das baratas” (ver Ian McEwan “A Barata”, trad. port., Gradiva, 2019). A sátira ao Brexit tem tonalidades kafkianas. O Primeiro-Ministro Jim Sams (versão ficcional de Boris Johnson), “esperto, mas algo leviano”, acordou um dia transformado numa barata e com a missão urgente de retirar o Reino Unido da União Europeia. A metamorfose de Jim Sams, político do Partido Conservador, replica o enredo da obra de Franz Kafka de 1915, onde o caixeiro viajante Gregor Samsa se metamorfoseou num insecto repelente. No livro de Ian McEwan, a metamorfose de Jim Sams, apesar de lhe dar a aparência de uma barata, trouxe-lhe uma missão e grande êxito político. Com ele, o Reino Unido abandonou a União Europeia, após várias manobras políticas tortuosas. Envolveram uma “ultrapassagem” numa votação parlamentar aos trabalhistas de Horace Crabbe (a versão ficcional de Jeremy Corbyn), “um velho regressista da esquerda pós-leninista.” (p. 40), assim como o apoio ruidoso e confuso do presidente norte-americano, Archie Tupper (Donald Trump). Através de tweets bombásticos, este último aproveitou para atacar en passant o Presidente francês, Sylvan Larousse (Emmanuel Macron), devido ao afundamento de uma embarcação de pesca pela marinha francesa (p. 64), incidente usado por Jim Sams para alimentar o fervor patriótico britânico.

2. Na narrativa de Ian McEwan, a atitude anti-União Europeia é vista como resultante da ideologia do regressismo, termo ficcional certamente inspirado na corrente intelectual e política eurocéptica. O regressismo tornou-se gradualmente um sucesso. Passou de uma visão passadista de alguns excêntricos para o centro da política do país. “As origens do regressismo são obscuras e objecto de muita discussão por parte dos interessados. Durante a maior parte da sua História, foi considerado uma experiência de pensamento, um jogo para depois do jantar, uma anedota. Era uma coutada de excêntricos, de homens solitários que escreviam compulsivamente artigos estrambólicos para os jornais” (p. 35). A passagem das margens para o centro da política britânica foi obra da imprensa regressista (alusão os jornais britânicos eurocépticos como o “The Telegraph” e o “Daily Mail” e, sobretudo, à chamada imprensa tablóide, “The Sun”, “The Daily Express”, ou “The Daily Mirror”). “Num golpe brilhante, a imprensa regressista conseguiu apresentar a sua causa como dever patriótico e uma promessa de revivalismo e purificação nacionais […] (p. 39). Esse sucesso foi acompanhado musicalmente com um hino, uma versão rival ao “Hino à Alegria” da União Europeia — composto por Ludwig Van Beethoven em 1823 —, o “Walking Back to Happiness”, de Helen Saphiro de 1961. Era uma das canções favoritas de Jim Sams (Boris Johnson) dos anos sessenta (pp. 52-53).

3. Imaginação literária à parte, no mundo real da política britânica “Get Brexit Done” é o slogan eleitoral de Boris Johnson e do Partido Conservador. A mensagem é simples(ista) e poderosa para os que estão receptivos a saída na União Europeia. Como é habitual num slogan, não está destinada a favorecer o pensamento crítico, mas a acção. “Se houver uma maioria de deputados conservadores a 13 de Dezembro, garanto que vou fazer passar o nosso novo acordo no Parlamento. Vamos concluir o Brexit em Janeiro e libertar o potencial de todo o nosso país.” Parafraseando a ironia cáustica de Ian McEwan, o objectivo dos conservadores será provavelmente poderem dizer no final, com grande satisfação: “Agora a Grã-Bretanha está entregue a si própria. O povo falou. A genialidade do líder do nosso partido permitiu cumprir o desejo do povo. O regressismo foi cumprido! Sem mais hesitações nem demoras! A Grã-Bretanha está sozinha!” (p. 106). Ainda no seu manifesto pode ler-se também um ataque às artimanhas da oposição: “Se o Partido Trabalhista de Jeremy Corbyn e o SNP (Partido Nacional da Escocês) de Nicola Sturgeon se unirem e assumirem o controle em 13 de Dezembro, teremos dois referendos em 2020, um sobre Brexit e outro sobre a Escócia. Por favor, apoiem um governo conservador maioritário para que nosso país possa seguir em frente, em vez de retroceder.” (Ver partido Conservador “Our Plan / Conservative Manifesto 2019”). A advertência de uma aliança catastrófica dos trabalhistas inglesas com os nacionalistas escoceses, paira sobre eleitores: votem em Boris Johnson ou enfrentarão o pesadelo do embuste referendista de Jeremy Corbyn e Nicola Sturgeon. O Brexit pode não correr e o caminho para a independência da Escócia ficará aberto. 

4. Para o eleitorado do Partido Trabalhista a mensagem é naturalmente outra. Procura desviar o foco da campanha eleitoral para as funções sociais do Estado.  “Boris Johnson e os Tories estão a tentar aproveitar-se do Brexit para vender o nosso Serviço nacional de Saúde (NHS) e retirar direitos aos trabalhadores. O seu Brexit irá reverter os duros ganhos conquistados pelas pessoas da classe trabalhadora ao longo de gerações. Pior, isso poderia levar a que 500 milhões de libras por semana do dinheiro do nosso NHS acabe nos bolsos de grandes empresas farmacêuticas americanas.” Quanto à solução para o Brexit — que tem colocado o regressista Jeremy Corbyn às avessas com a maioria remainer do próprio partido —, a solução seria muito simples. “Um governo trabalhista negociará um acordo sensato num prazo de três meses após a eleição. Será baseado em coisas que sempre discutimos e dissemos que eram necessárias com a União Europeia e que são apoiadas por sindicatos e empresas. Isto inclui uma nova união aduaneira, uma estreita relação com o mercado único e garantias de direitos e protecção” para os trabalhadores e ambiente. As pessoas terão a última palavra num referendo “a decorrer num prazo de seis meses, que não será uma repetição do ocorrido em 2016. Desta vez, a escolha será entre sair com um acordo sensato ou permanecer na União Europeia.” (Ver Partido Trabalhista, “Labour Plan for Brexit”). Resta saber como Jeremy Corbyn irá negociar um novo acordo com a União Europeia em três escassos meses e conseguir fazer um novo referendo em seis, sem dividir, ainda mais o país — algo que diz ser só culpa dos conservadores e liberais democratas. Mas essas são coisas menores para um progressista-regressista que vê o futuro no passado, não o da canção “Walking Back to Happiness” dos anos sessenta, mas nas políticas neo-marxistas dos anos setenta. (Ver David Kogan, “Jeremy Corbyn’s return to the Seventies” in UnHerd, 6/12/2019). 

5. Com Boris Johnson e Jeremy Corbyn como protagonistas maiores, o “triunfo das baratas” parece assegurado na política britânica, seja qual for o resultado das próximas eleições. Claro que a afirmação é irónica e tem tonalidades orwellianas. No caso de Boris Johnson ganhar — este é o principal candidato à vitória segundo as sondagens —, o Reino Unido deixará a União Europeia até 31 de Janeiro de 2020. Pelo menos a promessa é essa. Em seguida, será negociado um abrangente acordo comercial com a União Europeia, uma versão mais ambiciosa do Acordo Económico e Comercial Global (CETA), já feito pelo Canadá, até finais  de 2020. (Ver “Boris Johnson: My plan for a better Brexit” in Telegraph, 27/09/2019). Dito assim até parece simples. Mas o Reino Unido enfrentará uma negociação longa, complexa e potencialmente frustrante. O limite de finais de 2020 é curto e muito ambicioso — provavelmente impossível de cumprir — para as negociações da futura relação comercial com a União Europeia. Só para dar uma ideia da complexidade do que estamos a falar, foram necessários mais de quatro meses para preparar a versão final, para ratificação, do acordo comercial da União Europeia com o Japão. Claro que, como ironiza Ian McEwan na sua obra de ficção, apesar das grandes dificuldades alguns poderão sempre chamar-lhe ainda Jim, o Sortudo, pois podia ser pior. E Boris Johnson poderá também voltar a dizer “antes morto numa valeta” do que pedir novo adiamento, para cumprir a promessa eleitoral do “Get Brexit Done”. (Ver  “Boris Johnson: ‘I’d rather be dead in a ditch’ than ask for Brexit delay” in BBC, 5/09/2019) . Ou então acabar a enviar uma nova missiva não assinada à União Europeia, a pedir mais um adiamento.

© José Pedro Teixeira Fernandes, artigo originalmente publicado no Público, 10/12/2019

© Imagem: AFP / video El sistema político británico

Geopolítica em Tempo de Paz e Guerra

Geopolítica em Tempo de Paz e Guerra reflecte a complexidade, as zonas cinzentas e as contradições do mundo actual. Mas o título sugere de imediato uma interrogação: vivemos em paz, vivemos em guerra, ou, paradoxalmente, numa zona híbrida?

Olhar para o mundo exterior e tentar compreendê-lo é uma necessidade numa era de globalização. Num passado não muito distante, o local ou o nacional eram quase tudo o que interessava à grande maioria dos cidadãos. Conhecer o que se passava no mundo era fundamentalmente uma opção, a qual se mostrava até bastante difícil de concretizar. Na maioria dos casos, resultava de necessidades empresariais-comerciais, ou migratórias, ligadas à procura de melhores condições de vida e de ganhos de bem-estar. Em casos muito específicos, por outro tipo de razões profissionais, esse interesse estava também presente nos que prosseguiam actividades ligadas à diplomacia e à política externa do Estado. Apenas em circunstâncias excepcionais — tipicamente grandes guerras ou outros acontecimentos de grande impacto — o mundo exterior levava a um interesse generalizado da população, obrigando a segui-lo e a tentar compreender o que aí se passava.

Geopolítica em Tempo de Paz e Guerra— o título ressoa deliberadamente a Raymond Aron em “Paz e Guerra entre as Nações” — reflecte a complexidade, as zonas cinzentas e as contradições do mundo actual. Mas o título sugere de imediato uma interrogação: vivemos em paz, vivemos em guerra, ou, paradoxalmente, numa zona híbrida? A resposta depende, desde logo, da parte do mundo em que vivemos. As percepções certamente são diferentes para os que vivem dentro da zona de “paz perpétua” da União Europeia, ou fora dela, por exemplo na Ucrânia, na Síria ou na Coreia Ao mesmo tempo, de uma forma menos óbvia, a resposta depende, também, da maneira como definimos paz e guerra. Não é uma mera questão semântica, nem se trata um jogo de palavras literário. No passado, a guerra era precedida de uma declaração de guerra e terminava com um armistício, ou a rendição (in)condicional de um dos beligerantes. Hoje temos inúmeros conflitos multifacetados, difusos e disputados por vezes na sombra, os quais escapam a uma simples categorização binária. Não há armistício, nem rendição, para guerras que não foram declaradas.

Neste século XXI vivemos um “admirável mundo novo”. Não é exactamente como foi imaginado por Aldous Huxley na distopia escrita nos anos 1930, embora existam traços que o fazem lembrar. Assistimos a uma perigosa luta pelo poder mundial, marcada pela rivalidade sino-americana. A uma extraordinária transformação da geopolítica da energia, onde a América do Norte readquiriu centralidade e o Médio Oriente e a Venezuela perderam influência relativa. E a uma União Europeia que continua com a sua debilidade crónica político-militar, algo que se tornou mais crítico com o Brexite Donald Trump nos EUA. É um mundo globalizado simultaneamente moderno, pré-moderno e pós-moderno. Nele, as fronteiras entre a paz e a guerra, mas também entre a verdade e a mentira diluíram-se assustadoramente. Para a análise destas múltiplas e importantes temáticas que marcam o mundo contemporâneo, o livro foi estruturado em cinco partes autónomas, mas também estreitamente (inter)relacionadas entre si: o “admirável mundo novo” do século XXI; a União Europeia entre a integração e a fragmentação; a “América primeiro” e a globalização descartada; a emergência da China como potência global hegemónica. E a nova geopolítica do petróleo e o colapso da Venezuela  […].

© José Pedro Teixeira Fernandes,  excerto da Nota introdutória ao Livro  “Geopolítica em Tempo de Paz e Guerra” (Almedina, 2019)

©  Imagem: capa do Livro de José Pedro Teixeira Fernandes, “Geopolítica em Tempo de Paz e Guerra” (Almedina, 2019)