Ciberguerra: Quando a Utopia se Transforma em Realidade

Ciberguerra

 

Vivemos um tempo excitante. […] empresas, governos e cidadãos devem trabalhar em conjunto de forma aberta e cooperativa, tal como tem sido feito até agora, para preservar os princípios fundamentais da Web, bem como os da Internet, garantindo que os protocolos tecnológicos e convenções sociais que erigimos respeitam valores humanos básicos. O objetivo da Web é servir a humanidade. Nós construímo-la agora para que aqueles que a encontrem mais tarde sejam capazes de criar coisas que nós próprios não podemos imaginar.

Tim BERNERS-LEE (2010)

Nos cerca de 20 anos desde que David Ronfeldt e eu introduzimos o nosso conceito de ciberguerra, esta nova modalidade de conflito tornou-se uma realidade. […] Tal como a guerra aérea, a ciberguerra vai-se tornar mais destrutiva ao longo do tempo. Por essa razão, foi acertada a decisão do Pentágono, no ano passado, em designar formalmente o ciberespaço como um “domínio de combate.” Estes desenvolvimentos estão muito próximos das nossas próprias previsões feitas há duas décadas atrás.

John ARQUILLA (2012)

 

 

Uma das facetas mais importantes da atual globalização está estreitamente ligada à emergência de uma nova economia e sociedade digital – a “sociedade em rede”, na designação de Manuel Castells (2002) –, baseada na massificação do uso de microchips no hardware de computadores, telemóveis e outros gadgets, e na enorme expansão das comunicações de banda larga e da Internet. Quanto a esta última, o seu número de utilizadores tem crescido de uma maneira avassaladora desde o início da primeira década do século XXI, a uma média de mais de 300% ao ano, abrangendo em 2011 cerca de 2,2 biliões de utilizadores ativos em todo o mundo. Nesse mesmo ano, de acordo com a Internet World Stats[1], a penetração da Internet (percentagem de utilizadores da Internet na população total), foi de 78,6% nos EUA e de 61,3% na Europa continental. Por sua vez, 44,8% dos utilizadores da Internet tem já origem na Ásia. Como se pode verificar por estes dados estatísticos, a sociedade em rede está a adquirir crescente importância, especialmente nos países mais desenvolvidos, mas, também, num significativo número de países em rápido desenvolvimento, especialmente do continente asiático. No plano económico, a emergência de uma nova economia de base digital abriu caminho a inovadoras formas de produção e de comércio, com custos mais baixos e a uma produtividade mais elevada. Permite, ainda, chegar a mercados, públicos e consumidores dificilmente alcançáveis pela maioria das organizações e empresas ainda não há muitos anos atrás. No plano político, a revolução tecnológica e digital trouxe também um conjunto de transformações e de oportunidades importantes. Potenciou uma maior participação dos cidadãos na vida política, podendo ser utilizada como um meio para o aperfeiçoamento ou reforço da democracia direta; deu origem a formas de “ativismo digital” nos mais variados campos (direitos humanos, ambiente, causas humanitárias, etc.), reforçando e ampliando as vias tradicionais. No plano social, a generalização das comunicações por telefone móvel e email, associada ao crescente uso das redes sociais e de blogues para os mais diversos fins, colocou em contacto, e de forma praticamente permanente, indivíduos das mais variadas idades, estratos sociais e nacionalidades. Também aqui estas enormes transformações evidenciam a criação, ampliação e aprofundamento de uma sociedade em rede. Naturalmente que todos estes fenómenos ocorrem com preponderância das gerações mais jovens. Para estas, a tecnologia inerente à sociedade em rede é um dado adquirido e está interiorizada desde a infância. E ocorrem também essencialmente nos países mais desenvolvidos, ou daqueles que estão em rápido desenvolvimento, por razões óbvias ligadas aos recursos disponíveis e massificação da tecnologia.

Apesar dos enormes ganhos de bem-estar e potencialidades que a economia e sociedade em rede traz consigo, esta contém também os germes de uma “sociedade de risco”, num sentido próximo do que foi dado ao conceito por Ulrich Beck (1992). Na origem da sociedade em rede como sociedade de risco está a intrínseca ambivalência do progresso tecnológico, o que também ocorre com a Internet/Web e a tecnologia digital. Esta ambivalência é fácil de constatar. Basta pensar no impacto que a revolução industrial teve, e tem, sobre o ambiente; ou, então, nos diferentes usos, civis e militares, da tecnologia nuclear: esta tanto pode criar bem-estar, pelo seu enorme poder de gerar energia, como pode ter também, por razões voluntárias ou involuntárias, um efeito extraordinariamente destrutivo. No caso da revolução tecnológica e digital em curso, esta ambivalência, ligada aos diferentes usos que podem ser feitos da Internet/Web e da restante tecnologia digital cria, inevitavelmente, riscos, de maior ou menor dimensão. Estes riscos, num cenário de hipotética concretização, podem acabar por dar origem aquilo que Robert Hassan (2009) chamou “pesadelos digitais” da sociedade em rede, ou seja, originar situações em que o lado negativo e potencialmente destrutivo da tecnologia digital se revela.

Importa também notar que, sempre que surge uma tecnologia revolucionária como a aquela que vamos abordar, tendem a surgir naturais questões éticas ligadas à sua utilização e a levantar-se diversos problemas de regulação legal. Por outro lado, uma revolução tecnológica tende a provocar deslocações de poder, existindo, em tais circunstâncias, inexoravelmente, vencedores e vencidos. Esta deslocação de poder verifica-se de forma clara, por exemplo, no campo económico e empresarial. Para além das já referidas vantagens, em termos de custos e de produtividade, a revolução digital implica que países e empresas estejam em constantes adaptações e mudanças, sob pena de serem ultrapassados pelas dinâmicas em curso e sofrerem perdas de bem-estar dificilmente reversíveis. No campo político, os novos meios de comunicação eletrónica e a Internet abriram um novo e importante terreno para a difusão de ideias politicas e de concepções ideológicas, não necessariamente só de perfil democrático. Ironicamente, ideologias e concepções de tipo totalitário, ocidentais e não ocidentais – sobretudo o islamismo radical e o seu extremo violento o jihadismo –, parecem estar a adaptar-se bastante bem e a prosperar com o novo espaço de liberdade de ação que se abriu com a sociedade em rede, especialmente com a Internet. Similares transformações ocorreram, e estão a ocorrer, no campo militar. Também aí as tecnologias de informação e a lógica da sociedade em rede estão a ter um impacto profundo, alterando e sofisticando os equipamentos e as formas convencionais de fazer a guerra.

Mas, em concreto, quais são os riscos de uma economia e sociedade em rede que, de alguma maneira, permitem qualificá-la como uma sociedade de risco? O ponto de partida para uma primeira aproximação ao problema dos riscos é relativamente simples. A própria sofisticação de uma economia e sociedade e a sua dependência crescente da tecnologia digital traz consigo a criação de novas vulnerabilidades. Quer dizer, se os computadores e o acesso à Internet fazem, cada vez mais, parte de qualquer aspecto da vida, isso tem um reverso. No caso que nos vai ocupar diretamente esse reverso (ou seja, a vulnerabilidade que acarreta) resulta da possibilidade de ocorrer aquilo que, com mais ou menos propriedade, hoje é designado como ciberguerra ou guerra cibernética.

A abordagem a esta temática que a seguir é apresentada está dividida em duas partes, simultaneamente autónomas e complementares entre si. A primeira é dedicada à transformação da sociedade em rede numa sociedade de risco. A segunda incide especificamente na emergência de uma nova forma de conflitualidade, que é a ciberguerra, não no sentido livre e fluído do termo – frequentemente sensacionalista –, mas num sentido técnico mais rigoroso. No seu conjunto, o texto desenvolve-se ao longo de quatro tópicos. O livro inicia-se com uma passagem em revista das origens da atual sociedade em rede, a qual está estreitamente ligada à Internet. Esta teve origem numa utopia tecnológica dos 60 do século passado, tendo o seu uso, até inícios dos anos 90, sido limitado aos meios governamentais, sobretudo militares, e académicos. A partir dessa altura, com invenção da World Wide Web (ou, Web, na forma abreviada), extravasou dessas áreas restritas, para a generalidade da economia e da sociedade, com todas as implicações que daí decorreram. Em seguida, é feita uma análise da sociedade em rede, como um espaço onde a utopia tecno-libertária inicial, filiada na contracultura dos anos 60, se confronta com crescente tendência de afirmação de controlo soberano dos estados. A tensão entre o ideal de uma liberdade quase anárquica – para os críticos um “estado de natureza” hobbesiano – e a afirmação da soberania estadual, sobretudo por razões de segurança, é hoje uma constante. Aspeto importante e com óbvias implicações políticas, é o surgimento de técnicas apuradas de controlo na rede, as quais, de alguma forma, fazem lembrar a sociedade imaginada por George Orwell, na sua narrativa distópica, 1984.

No catálogo dos novos riscos ligados à sociedade em rede, ocupa um lugar de destaque a ciberguerra, sendo esta objeto específico da segunda parte do livro. Desde logo, e em termos conceptuais, clarifica-se o significado do termo face à multiplicidade de usos que têm sido feitos do mesmo. Evidencia-se, também, a crescente tendência para os estados encararem o ciberespaço como um novo “território” de conflito, dotando-se, para o efeito, de meios ofensivos e defensivos. Na análise, é dado ainda ênfase ao papel dos atores não estaduais e à possibilidade de estes poderem fazer “(ciber)guerra por procuração”. Em seguida, os aspetos legais da ciberguerra serão objeto de análise própria, pela sua importância nas situações mais críticas de ciberconflito. Em que circunstâncias um ataque com meios informáticos pode ser entendido, juridicamente, como equiparável a guerra? Para a sua qualificação como um ato de (ciber)guerra é necessário que a ação tenha origem num estado soberano, ou a ação poderá ter origem em atores não estaduais (por exemplo, em hackers)? E os ciberataques à Estónia e à Geórgia durante os conflitos ocorridos com a Rússia, ou o caso do vírus Stuxnet que danificou equipamentos do programa nuclear iraniano, ou ainda os múltiplos ciberataques a diversos sites, governamentais e privados, em apoio ao WikiLeaks, podem ser considerados atos de (ciber)guerra?

Por último, quero deixar uma breve nota sobre a forma como foi concebido este livro. Quase sempre os livros são um pouco autobiográficos e este também o é. Provavelmente, a sua génese mais longínqua teve origem na curiosidade que sempre me provocou o tema da ciberguerra, desde que tomei contacto com este pela primeira vez. Isso ocorreu, de forma muito tópica, no meu trabalho de doutoramento[2] efetuado há mais de uma dezena de anos atrás. Mais recentemente, a ideia voltou a ressurgir em contexto académico, agora como tema central de uma ideia de investigação ligada a um projeto de pós-doutoramento. Na base deste livro está, assim, um conjunto de artigos e comunicações associados a essa ideia de pesquisa, os quais foram objeto de apresentação pública, ou publicação, em diversas revistas de perfil académico-científico. Todavia, o meu objetivo com este texto não foi escrever para um público estritamente académico, nem efetuar um livro eminentemente técnico- científico. Isso seria um trabalho redundante. A ideia fundamental foi efetuar uma publicação curta, clara e acessível[3] ao leitor não possuidor de prévio conhecimento especializado, que transmita informação rigorosa e sóbria, propiciando igualmente reflexão. Espero ter conseguido atingir esse objetivo.

 

NOTAS

[1] Ver Internet World Stats, acessível em http://www.internetworldstats.com/stats.htm [Acedido em 12/04/2012].

[2] Ver José Pedro Teixeira Fernandes (2002), A Segurança da Europa Ocidental: uma Arquitetura Euro-Atlântica Multidimensional, Lisboa, FCT/FCG.

[3] Para o efeito, foram evitadas, o mais possível, citações de fontes e autores em línguas que não o português, tendo sido efetuadas, sempre que necessário, traduções desses textos. Foram também usadas apenas as notas e citações estritamente necessárias para manter o rigor expositivo.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes

© QuidNovi/Verso da História, 2014 (excerto, Introdução)

Teorias das Relações Internacionais: da abordagem clássica ao debate pós-positivista

TRInternacionais

 

 

Direi, talvez, à laia de introdução, por que escolhi exactamente este tema. Sou racionalista, e com isto quero dizer que acredito no debate e na discussão. Do mesmo modo acredito na possibilidade, tanto quanto na conveniência, de aplicar a ciência aos problemas que se levantam no campo social.

Karl POPPER[1]

 

O contacto com a abordagem teórico-académica das Relações Internacionais (RI)[2] pode ser um exercício simultaneamente fascinante e decepcionante. Abstraindo do facto de essas sensações contraditórias poderem resultar da motivação e apetência de cada um de nós para esta área do conhecimento, o que ocorre é que a literatura desta área académico-científica, é, desde logo, marcada por uma extrema diversidade de correntes teóricas, com rótulos que podem ser tão sugestivos, quanto desesperantes, para quem inicia o seu estudo: realista, neo-realista, liberal, neo-liberal, tradicionalista, behaviorista, pluralista, globalista, estruturalista, construtivista, feminista, pós-estruturalista, pós modernista, etc… Se, por um lado, isto revela uma aliciante riqueza de perspectivas, por outro lado, traz consigo incertezas teóricas e confusões conceptuais frequentemente geradas por rótulos e classificações teóricas pouco precisas. Par além disso, encontram-se facilmente abordagens tendencialmente incompatíveis, ou, pelo menos, de difícil integração num todo coerente, bem como teorizações e especulações algo primitivas[3] as quais, quer do ponto de vista da solidez científica, quer do ponto de vista do rigor analítico não deixam de merecer naturais reservas e distanciamento crítico.

Para os espíritos que gostam de áreas com séculos de tradição, de autonomia académica longamente estabelecida e inquestionada, e com respostas às questões centrais do seu estudo tendencialmente consensuais, ou, pelo menos assentes em consensos bastante alargados, o contacto com a disciplina de RI pode converter-se facilmente num exercício decepcionante, pois quase nada disto existe. Não só estas são de recente autonomização no quadro da academia, como abundam as perguntas e as teorias que procuram responder às mesmas, mas escasseiam as respostas amplamente partilhadas pelos investigadores e teóricos da disciplina. Mas, por outro lado, não é esta uma situação mais ou menos normal no processo de afirmação duma disciplina recente, e até do processo de conhecimento científico geral, especialmente do que se desenvolve no âmbito Ciências Sociais e Humanas, as áreas de referência privilegiadas para o estudo das RI?

Na Europa, com algumas excepções importantes como é o caso britânico, que, importa sublinhar, foi onde surgiu, pela primeira vez, uma cátedra universitária de RI, no imediato pós-I Guerra Mundial, os problemas atrás apontados sentem-se ainda com mais intensidade, facto ao qual não é certamente estranho uma autonomização muito recente, pelo menos quando comparada com disciplinas académicas clássicas, como a História, a Economia, a Geografia e o Direito. Neste contexto, importa notar ainda que, em Portugal, a sua autonomização é das mais tardias da Europa, só tendo ocorrido nos curricula universitários, a partir da segunda metade da década de 70 do século XX. Assim, não surpreende que estas sofram duma tibieza[4] bastante similar aquela que há duas décadas atrás Jacques Huntzinger (1986: 8) constatava existir no meio académico francês da disciplina. Nem é também muito surpreendente que o diagnóstico que, na altura, este efectuou para tentar explicar essa tibieza, possa também conter pistas que, ainda hoje, são válidas para nós. Estas pistas apontavam duas grandes razões para essa debilidade: (i) uma primeira razão, de tipo exógeno, estava relacionada com o cepticismo e resistência das disciplinas académicas clássicas relativamente à emancipação das RI; (ii) uma segunda razão, de cariz endógeno, e provavelmente mais preocupante, era a da inexistência de verdadeiros teorizadores no âmbito da disciplina[5].

Seja como for, uma coisa é certa, as pistas explicativas de Huntzinger apontam para uma imagem geral da disciplina que é bastante idêntica à que foi traçada por Stanley Hoffmann que, num título bastante conhecido, qualificou-a como An American Social Science (1977), querendo com isto evidenciar a esmagadora predominância da América do Norte, ou seja dos Estados Unidos, em aspectos chave que condicionam o desenvolvimento e a afirmação da disciplina. Estes são: (i) o nível do interesse pela temática das relações internacionais, nos meios políticos, académicos, e no público em geral; (ii) o estímulo e o apoio dado às actividades de investigação nesta área; (iii) o volume e a qualidade da produção teórica. Mais recentemente, já no final dos anos 90 do século XX, Ole Wæver, num artigo sugestivamente intitulado The Sociology of a Not So International Discipline: American and European Developments in International Relations (1998), publicado numa das principais revistas académicas da disciplina, a inevitavelmente norte-americana International Organization, chegou a conclusões mais ou menos similares, chamando, no entanto, à atenção para o facto de existir uma excepção relevante, que resulta dos esforços de autonomia da Escola Inglesa[6], à qual ele próprio se considera ligado intelectualmente.

A primazia anglo-saxónica na disciplina, especialmente pela via do pensamento norte-americano, torna praticamente impossível efectuar um trabalho teórico sem referências mais ou menos alargadas aos debates que marcaram, e marcam, a sua evolução nesse contexto académico, cultural e político. Naturalmente que esta predominância esmagadora tem importantes implicações na maneira como o estudo da disciplina é feito fora desse contexto, como é o caso português. Uma primeira implicação é a de que, como já se pode imaginar, a generalidade das teorias, conceitos e ideias, que marcam a disciplina estão amplamente dependentes da importação desses desenvolvimentos teórico-conceptuais corridos no universo anglo-saxónico, o que, em si mesmo, não é um nenhum fénomeno negativo, bem pelo contrário, é uma fonte de imprescindível inspiração e vitalidade para qualquer esforço sério de teorização. A questão é que, não invulgarmente, se cai num excesso de centragem nesse universo cultural, o que faz perder de vista que há outros desenvolvimentos[7] relevantes, ainda que mais discretos e limitados, fora do mesmo.

Uma segunda implicação é a de que não é fácil efectuar uma filtragem e/ou adaptação crítica dessas teorias e conceitos à realidade portuguesa, pois, a tendência natural, à qual não escapam certamente os académicos e investigadores das RI, até pela enorme apetência sociológica portuguesa pelos produtos importados, sejam eles banais bens de consumo, ou produtos culturais sofisticados, é reproduzir, mais ou menos acriticamente, discursos de moda no país a, b, ou c, os quais, frequentemente, se auto justificam, não tanto pelos seus méritos intrínsecos, mas, mais pela autoridade que lhe é implicitamente conferida pela notoriedade do autor, da corrente teórica, da universidade, ou do país onde foram produzidos, associada à novidade da sua introdução em Portugal.

Por isso, na nossa opinião, um dos desafios mais interessantes e importantes que se levantam à produção teórica portuguesa é o que resulta da possibilidade de se tentar converter a desvantagem que inegavelmente resulta da ausência duma tradição de estudo e investigação autónoma da disciplina, numa certa vantagem, beneficiando do facto do pensamento teórico não estar excessivamente moldado, ou até mesmo deformado, por uma determinada escola de pensamento ou universo cultural. Claro que isto só poderá ser feito com o desenvolvimento de um esforço deliberado e sistemático para aceder a um leque mais alargado de contributos e perspectivas, o que, convenhamos, não é tarefa nada fácil.

Falando, agora, do pequeno contributo que nos propomos dar para o estudo teórico da disciplina, impõe-se efectuar, previamente, algumas observações à sua leitura. A primeira observação é a de que se trata de um trabalho de síntese de teorias e de ideias, de tipo quase introdutório a uma matéria ampla e complexa como é a da(s) Teoria(s) das Relações Internacionais[8] em que os objectivos são os seguintes: (i) funcionar como um elemento de orientação e de reflexão sobre o estudo da disciplina, fornecendo algumas pistas para estudos subsequentes em maior profundidade; (ii) estimular o interesse intelectual pela disciplina aos alunos das diferentes licenciaturas de RI existentes em Portugal, bem como aos alunos em que a sua formação académica não implica uma abordagem sistemática dos seus conteúdos, mas, apenas, contactos mais ou menos selectivo com estas; (iii) e, ainda, aguçar a curiosidade intelectual de todos aqueles que têm apetência suficiente para se poderem interessar pela sua produção teórico-académica, nas suas diferentes facetas.

A segunda observação é que, face à amplitude e complexidade da temática, bem como à diversidade de escolas e correntes que marcam a disciplina, oriundas das mais diversas Ciências Sociais e Humanas, optámos por tentar abranger, sem quaisquer pretensões de exaustividade, uma razoável diversidade teórica, tendo particularmente em conta alguns dos seus desenvolvimentos mais recentes, por nós julgados como os mais representativos da evolução da disciplina. Neste sentido, as escolhas efectuadas são bastante pessoais e resultam de um acumular de leituras, de actividades de investigação, e de experiências docentes, pelo que, naturalmente, também podem ser objecto de críticas e de discordância.

A terceira observação é a de que o facto de termos intitularmos o nosso trabalho Teorias das Relações Internacionais: da abordagem clássica ao debate pós-positivista[9] resulta duma dupla intenção, que é a de chamar à atenção para a extrema diversidade teórica que se pode encontrar no âmbito da disciplina, bem como para o controverso debate que, desde finais dos anos 80 do século XX se instalou na Teoria das Relações Internacionais, por um processo de importação e transposição de ideias, que teve origem em disciplinas como a Filosofia, a Sociologia e a Literatura. A quarta observação é que este debate é, sem qualquer margem para dúvidas, amplamente difundido pelo pensamento anglo-saxónico da disciplina, pelo que, ao procedermos à sua transposição para Portugal, estamos, inevitavelmente, não só em débito intelectual com este, como incorremos no risco, que atrás apontamos, de podermos ser reprodutores acríticos do mesmo e de enviesarmos a imagem da disciplina por um enfoque excessivo na agenda de investigação do universo intelectual anglo-saxónico. Contudo, achamos que vale a pena correr esses riscos. Desde logo, o facto de temos consciência destes, é, em si mesmo, já um bom ponto de partida. Depois, porque este debate, ao contrário dos anteriores que são razoavelmente conhecidos em Portugal, é praticamente desconhecido, ou, pelo menos, bastante ignorado[10]; mas também porque este é marcado, quer por saudáveis preocupações epistemológicas[11] e ontológicas[12], quer por um certo radicalismo de perspectivas que se opõem às abordagens realistas-racionalistas-empiricistas tradicionalmente dominantes na disciplina, cujas implicações vale a pena analisar com alguma profundidade.

Por último, vamos agora fazer uma breve referência à estrutura do trabalho que a seguir apresentamos. Este foi dividido em duas partes que podem ser consideradas essencialmente autónomas entre si. Numa Iª Parte, expomos e analisamos, de uma maneira essencialmente cronológica, os grandes debates (re)fundadores da disciplina desde a célebre controvérsia que opôs realistas a idealistas, e que marcou definitivamente a autonomização do estudo académico das Relações Internacionais, passando pelo debate entre behavioristas a tradicionalistas e pelo debate inter-paradigmático, e terminando com o mais recente debate pós-positivista. Por sua vez, na IIª Parte, são analisadas algumas das teorias gerais ou parciais que, na nossa óptica, representam as principais propostas contemporâneas da disciplina, e que, implícita ou explicitamente, contêm visões prospectivas, por procurarem antever e/o influenciar a construção do Mundo em devir. O objectivo é naturalmente explicar o teor dessas diferentes propostas, mas é também o de enquadrá-las nas grandes correntes teóricas da disciplina. Essas propostas e/ou visões do Mundo em devir são a(s) realista(s), a(s) liberal(ais), a(s) construtivista(s) e a(s) pós-modernista(s). Em ligação com estas «visões do Mundo»[13], apresentamos, no final do nosso trabalho, um estudo de caso teórico sobre a polimorfia das concepções da segurança, cujo objectivo é analisar as diferentes formas de conceptualização dessa realidade e evidenciar a maneira como essas conceptualizações se articulam com as diferentes correntes teóricas da disciplina.

 

NOTAS

[1] Popper (1948 [1964]: 336).

[2] Utilizamos a prática usualmente instituída de usar a sigla «RI» para falar da disciplina e a palavra «relações internacionais», por extenso, para falar do conteúdo da disciplina.

[3] Contrariando o discurso laudatório que habitualmente se pode encontrar nos textos da disciplina, esta é também a opinião do britânico Barry Buzan (1995 [1997]: 214), quando, ao pronunciar-se sobre esta questão, refere que «International Relations theory is still in its infancy, and there is no disguising the fact that the discipline is theoretically primitive».

[4] Ainda assim, importa lembrar há contribuições indubitavelmente meritórias feitas entre nós. Desde logo, o trabalho fundador de Adriano Moreira, ao qual se deve a primeira e única Teoria das Relações Internacionais até agora elaborada por um académico português, a qual foi publicada pela primeira vez no ano de 1996, e já teve várias reedições. Para além deste trabalho fundador, e sem quaisquer preocupações de exaustividade, importa referir que outras publicações de relevo foram feitas nesta área, como, por exemplo, o trabalho de Manuel Gonçalves Martins, especialmente direccionado para o campo da política internacional, intitulado Relações Internacionais (Política Internacional), originalmente publicado em 1995 e também já objecto de uma reedição, em finais do ano transacto., ou o de António José Fernandes, sobre as organizações internacionais, Relações Internacionais. Factos, Teorias e Organizações (1990). Entretanto, outros trabalhos relevantes surgiram recentemente, como o Curso de Relações Internacionais de Adelino Maltez e as Visões do Mundo de João Gomes Cravinho, ambos editados em 2002, e que parecem apontar para um interesse acrescido pela produção teórico-académica no âmbito da disciplina, neste início de século XXI.

[5] Segundo Huntzinger (1986: 8), em França, as únicas excepções dignas de registo eram constituídas pelos trabalhos de cariz sociológico, ou histórico-sociológico, de Raymond Aron e Marcel Merle.

[6] Sobre a agenda de investigação da Escola Inglesa e a sua contribuição para o estudo académico e a produção teórica das RI, ver Barry Buzan (1999) e João Marques de Almeida (1999).

[7] Parece-nos ser bastante razoável admitir que existem, um pouco por toda a Europa, contributos autónomos relevantes para a disciplina, especialmente em França, na Alemanha e nos países Escandinavos, e até em outras áreas do Mundo, como, por exemplo, no Japão, na China, na Índia ou no Brasil. O problema é que estes normalmente não são objecto de divulgação fora dos países onde são produzidos, nem junto do Mundo anglo-saxónico, o que leva a que estes contributos sejam mais ou menos ignorados, dada a enorme predominância na disciplina dos textos escritos em língua inglesa.

[8] Quando nos referimos à Teoria das Relações Internacionais, no singular, estamos a dar-lhe um sentido amplo, que é próximo daquele que lhe é dado por Philippe Braillard [ed.] (1977a: 113), e que abrange quer as teorias gerais, quer as próprias teorias parciais: «Por uma teoria geral das relações internacionais entendemos uma teoria que procura que procura, a partir de uma visão global, esclarecer estas relações no seu conjunto, por oposição a uma teoria parcial que se limita a um aspecto destas relações, a um tipo de processo que elas manifestam, que procura explicar em detalhe certos tipos precisos de comportamento».

[9] O nome debate «pós-positivista» é tomado de empréstimo a um título da autoria de Yosef Lapid The Third Debate: On the Prospects of International Theory in a Post-positivist Era, originalmente publicado na revista académica norte-americana, International Studies Quarterly, no ano de 1989.

[10] Algumas excepções a este statu quo de indiferença ao debate pós-positivista são os artigos de José Manuel Pureza (1998a e 1998b), desenvolvidos, sobretudo, numa perspectiva socológico-jurídica, e, também, o trabalho de investigação de Ana Paula Brandão (1999) sobre a reconceptualização da segurança no âmbito das relações internacionais, onde a diversidade teórica que marca o debate pós-positivista é bem evidenciada.

[11] Epistemológicas, no sentido que habitualmente é dado à palavra no âmbito da Filosofia das Ciências, que é o estudo da origem, da natureza ou do valor do conhecimento, ou seja, o estudo crítico dos princípios, das hipóteses e resultados das diferentes Ciências, procurando determinar-lhes a origem lógica, o valor e o alcance objectivo.

[12] Ontológicas, no sentido em que normalmente é dado no âmbito da Filosofia, que é o de uma reflexão de tipo sobre ser enquanto ser, que aqui é efectuada especificamente sobre a disciplina de RI.

[13] Expressão que tomamos de empréstimo ao título do livro de João Gomes Cravinho, Visões do Mundo. As Relações Internacionais e o Mundo Contemporâneo (2002).

 

© José Pedro Teixeira Fernandes

© Almedina, 2009 (excerto, Introdução)

Os desafios cruciais do Papa Francisco

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Mas é na doutrina social da Igreja, datada de finais do século XIX – Encíclica Rerum Novarum –, que me parece existir o maior reservatório de foça moral e de intervenção social, perfeitamente válida para o mundo que vivemos.

1. A Igreja Católica, à semelhança de outras formas do Cristianismo, está a enfrentar, e vai continuar a enfrentar, dois desafios cruciais. O primeiro é o de uma secularização/descristianização no seu território histórico de referência – a Europa. O segundo é o crescimento, em paralelo, de outras religiões, impulsionadas pela ação conjugada da dinâmica demográfica dos seus crentes e da sua resistência aos atrativos do secularismo à europeia/ocidental. O Islão, uma religião com similar vocação universalista ao Cristianismo, é o caso mais óbvio. Quanto ao primeiro aspecto, para podermos perceber bem o que está em jogo, precisamos de olhar para o mundo no seu conjunto. Está o mundo a tornar-se mais secular e/ou irreligioso, como a Europa, ou está, pelo contrário, a (des)secularizar-se, como sugerem Peter Berger e outros (The Desecularization of the World: Resurgent Religion and World Politics?) e, mais recentemente, Eric Kaufmann (Shall the Religious Inherit the Earth?: Demography and Politics in the Twenty-First Century.)

2. Se as análises prospetivas de Berger e Kaufmann estiverem certas vamos ter, em algumas décadas, uma Europa e um mundo muito diferente do que maioria dos europeus imagina hoje. O europeu tem impregnado, desde o Iluminismo, que a Europa=Civilização=Mundo. Este quadro mental leva a pensar que as outras culturas, mais tarde, ou mais cedo, vão ser como nós. Hoje parece cada vez mais claro que isso não passa de uma falácia intelectual. Em vez de sociedades com indivíduos moldados pelo pensamento racional, científico e secular/ateu (a utopia social e “científica” de Richard Dawkins – ver The God Delusion), o resultado pode muito bem ser outro. O crente no Cristianismo está em retrocesso em solo europeu. As evidências empíricas confirmam-no claramente, quando avaliadas pelo nível de prática religiosa. Mas o que parece ser, numa análise superficial, um rumo face ao triunfo total do indivíduo secular/ateu, pode muito bem mostrar-se uma vitória de Pirro. Só com a Europa isolada do resto do mundo e revertendo, rapidamente, o seu grave problema demográfico é que esse eventual triunfo poderia ser duradouro. Não é essa a realidade que se antecipa no futuro discernível.

3. Num notável discurso proferido em finais de 2010, Václav Havel, sintetizou bem, o drama existencial da atual “sociedade ateísta”. A perda de conexão com o infinito e transcendental, leva a um natural egoísmo de indivíduos e gerações. Este reflete-se, por exemplo, na deterioração do ambiente e na redução da natalidade, vista como um entrave à satisfação hedonista de necessidades do presente. Por outro lado, a sobranceria da “sociedade ateísta” associada à convicção de domínio da natureza e da economia pode transformar-se num caminho para o “inferno”. Václav Havel referia-se, explicitamente, à crise financeira desencadeada em 2007/2008. Explica-a, em grande parte, pela arrogância do capitalismo financeiro. Este convenceu-se que, por mobilizar jovens matemáticos brilhantes e pô-los a conceber produtos financeiros sofisticados, usando programas informáticos e computadores de última geração, tinha resolvido o problema do risco que atormentara os banqueiros das gerações anteriores (ver o livro de Gillian Tett Fool’s Gold: How Unrestrained Greed Corrupted a Dream, Shattered Global Markets and Unleashed a Catastrophe). Esta arrogância revelou-se autodestrutiva e está a pagar-se bem caro. Destruiu milhões de empregos em todo o mundo e lançou milhões de famílias na pobreza, ou próximo dela.

4. Neste contexto, quais deverão ser as prioridades do Papa Francisco I? Numa visão pessoal diria que, para além de resolver os problemas internos – o que já não é uma tarefa fácil pelas situações que têm vindo a público –, terá a árdua tarefa de conduzir a Igreja Católica a enfrentar os desafios da sociedade contemporânea. Uma das prioridades deverá ser o diálogo com outras religiões e os não crentes, para defesa de valores humanistas transversais. Mas este é também um assunto delicado. Implica abertura sem abdicar dos princípios estruturantes singularizam e dão sentido ao Cristianismo. Parece-me fundamental uma abertura em reciprocidade e não lógicas simplistas de concessão, supostamente tolerantes, como sugere a sensibilidade relativista extremada. Esta, sob uma aparência de tolerância – a qual, por vezes, disfarça um conhecimento superficial de outras culturas e dos seus aspectos mais problemáticos –, abre a porta à intolerância. Ainda que involuntariamente, são corroídas as bases universalistas de princípios de dignidade humana, que deveriam ser transversais, como os Direitos Humanos. Mas é na doutrina social da Igreja, datada de finais do século XIX – Encíclica Rerum Novarum –, que me parece existir o maior reservatório de foça moral e de intervenção social, perfeitamente válida para o mundo que vivemos. A Igreja Católica pode, e deve, ser um contrapeso à sobranceria destrutiva da “sociedade ateísta” denunciada por Václav Havel. Pode e deve ser uma força inspiradora e mobilizadora para todos aqueles que não pretendem perder a conexão com o infinito e o transcendental. Pode e deve ser uma força para todos aqueles que não se revêm num neoliberalismo extremado, reduzindo o ser humano à sua faceta de homo oeconomicus. A sua mensagem de justiça social tem de transmitir esperança e ser um incentivo ao não conformismo com o poder económico e político estabelecido.

 

© José Pedro Teixeira Fernandes, 15/03/2015

© José Pedro Teixeira Fernandes, foto do quadro de Marc Chagall, “Abraham et les trois anges”,  Musée National Message Biblique Marc-Chagall, Nice, 2006